quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Deus providencia escape para o pecado?


Michelangelo - Martyrdom of St Peter
Cappella Paolina, Palazzi Pontifici, Vatican

Por André R. Fonseca

Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar.” 1Co 10:13 [ARA]

É comum encontrarmos irmãos empregando 1Co 10:13 com o pretexto de assegurar que o cristão pode viver uma vida sem pecar. Afinal, Paulo está categoricamente dizendo que a tentação não está além das minhas forças, isso significa que posso resistir a tentação; e Deus provê o livramento para toda tentação, nunca sou encurralado pela tentação de forma que não tenha como escapar dela porque Deus sempre possibilita a fuga. Será que é isso mesmo?

Meu objetivo com este artigo é demonstrar que existe uma leitura alternativa para o texto bíblico com base no estudo da palavra gregaπειρασμὸς /peirasmos/, que foi traduzida em 1Co 10:13 como “tentação” nas traduções bíblicas em português*, além da análise do próprio contexto do versículo na carta de Paulo aos Coríntios.

Vamos começar analisando a palavra “tentação”, que em grego é πειρασμὸς /peirasmos/. Essa palavra grega pode ser traduzida como “tentação” ou “prova”. A palavra “peirasmos” é traduzida por “prova” ou “provação” nos textos de Lucas 8:13, 22:28; Atos 20:19; Gálatas 4:14; Hebreus 3:8; Tiago 1:2 e 12; 1Pedro 1:6, 4:12; 2Pedro 2:9 e Apocalipse 3:10. É impraticável traduzir a palavra grega “peirasmos” por “tentação” nos texto citados.

A Igreja em Corinto parecia enfrentar alguma perseguição. Pelo menos o apóstolo Paulo demonstra certa preocupação quanto aos dias difíceis que os irmãos em Corinto enfrentariam em breve, se já não fosse uma realidade nos dias de composição da carta. Perceba que essa preocupação parece nortear uma série de recomendações do apóstolo na primeira carta aos coríntios quanto ao casamento, por exemplo. Leia todo o capítulo 7, mas gostaria de ressaltar os versículos abaixo:

Por causa dos tempos difíceis em que vivemos, eu penso que é melhor para o homem ficar como está.” 1Co 7:22

Irmãos, o que eu quero dizer é isto: não nos resta muito tempo, e daqui em diante os casados devem viver como se não tivessem casado...” 1Co 7:29

Outra questão que julgo importante levar em consideração nesta análise da carta de Paulo aos Coríntios é o estilo de redação em zigue-zague do apóstolo. É muito comum, nos escritos de Paulo, ter os tópicos meio entrelaçados. Sua linha de raciocínio parece ir ziguezagueando, e seria importante estar atento a esse detalhe. Só para exemplificar, observe que Paulo aborda o tema de carne sacrificada a ídolos no capítulo 8 e volta a comentar um desdobramento do mesmo assunto dois capítulo à frente. Antes de “retomar” o assunto do capítulo 8 no capítulo 10 ele abre um parênteses para falar da liberdade e os direitos dos apóstolos, fala de sua dedicação e fervor, trata das diversas provações do povo judeu em sua história, fala da idolatria e o culto a demônios para, enfim, retomar o assunto do capítulo 8.

Contudo, podemos ver claramente que esse zigue-zague não perde coesão textual. Os assuntos estão desencadeados de forma lógica. Quando Paulo abre o capítulo 10, relembrando os desvios do povo judeu em sua longa história de rebeldia contra Deus, não custa muito puxar da memória que a principal causa de rompimento do relacionamento de Deus com o seu povo eleito era a idolatria, questão que desemboca na temática dos versículos 14 à 22. A idolatria, por sua vez, se desenrola até voltar ao assunto tratado no capítulo 8: carne sacrificada a ídolos.

O versículo objeto de nossa análise está inserido nesse contexto de retomada do assunto tratado no capítulo 8. Quando Paulo relembra as dificuldades e provações que o povo judeu enfrentou em sua história na primeira parte do capítulo 10, ele faz conexão de tudo aquilo com o que os irmãos em Corinto estavam passando. Ele diz que tudo aquilo que aconteceu no passado foi para benefício deles, que viviam o fim dos tempos, um exemplo que não deveria ser seguido - “Tudo isso aconteceu a fim de nos servir de exemplo, para nós não querermos coisas más como eles quiseram” 1Co 10:6.

Os corpos ficaram prostrados no deserto (1Co 10:5), mas os irmãos em Corinto que estavam de pé precisavam cuidar para não cair. Aqueles que cometeram idolatria e imoralidade sexual caíram em um só dia vinte e quatro mil deles (1Co 10:7-8), mas os irmãos em Corinto que estavam de pé precisavam cuidar para não cair.

Quando o povo passou dificuldade, murmuraram contra Cristo, e foram picados por serpentes. Os irmãos em Corinto, apesar das dificuldades que já mencionei acima, deveriam permanecer fiéis e esperançosos sem murmuração para não ganharem o mesmo fim.

Essa dificuldade que os irmãos em Corinto deveriam passar sem murmuração não era nenhuma “provação” πειρασμὸς /peirasmos/ que não fosse humana. É nesse contexto que encontro o melhor emprego da tradução como “provação” para o termo grego. Até mesmo porque o termo “humano” - ἀνθρώπινος /anthropinos/ - sugere que a “provação” pertence ao que é próprio da vida humana. A vida é feita de canseira debaixo do sol – o pregador de Eclesiastes não me deixa mentir!

Além do mais, a vida cristã exige não somente fé em Cristo, mas também o padecer por Ele – Filipenses 1:29. A perseverança na vida cristã em meio os sofrimentos e provações também é tema de outros escritores neotestamentários: 2Timóteo 3:12; Tiago 1:2 e 12; 1Pedro 1:6, 4:12-13; 2Pedro 2:9 e Apocalipse 3:10.

A Nova Aliança de Deus com o seu povo eleito por meio de Cristo garante a fidelidade de Deus em preservar o seu povo. Diferente do contexto veterotestamentário, Deus não abandonará o seu povo até que ele caia diante da provação. Deus proverá o socorro, além da garantia de fazer o seu povo perseverar dando a força necessária para permanecer de pé. Ele não nos deixará sofrer uma provação maior do que podemos suportar; e, antes que a gente caia do Caminho, Ele providenciará uma saída.

Essa leitura do texto corrobora a doutrina da Perseverança dos Santos. É Deus quem sustenta o crente e providencia as saídas para que o crente nunca caia. Uma vez salvo, salvo para sempre! Essa interpretação do texto como declaração de perseverança dos santos está em consonância com a declaração de Pedro: “Tudo isso nos mostra que o Senhor sabe como livrar das aflições as pessoas dedicadas a ele...” 2Pe 2:9.

Conclusão, minha leitura do texto revela uma belíssima declaração de Paulo sobre a doutrina da Perseverança dos Santos. Deus não nos deixará passar por aflição que não possamos suportar. Ele sabe como livrar das aflições os crentes dedicados a Ele. Se a aflição é grande demais, Ele proverá uma saída. Deus age em favor da perseverança de seus escolhidos para a revelação de sua glória!

"Meus queridos amigos, não fiquem admirados com a dura prova de aflição pela qual vocês estão passando, como se alguma coisa fora do comum estivesse acontecendo a vocês. Pelo contrário, alegrem-se por estarem tomando parte nos sofrimentos de Cristo, para que fiquem cheios de alegria quando a glória dele for revelada. As tentações (provações) que vocês têm de enfrentar são as mesmas que os outros enfrentam; mas Deus cumpre a sua promessa e não deixará que vocês sofram tentações (provações) que vocês não têm forças para suportar. Quando uma tentação (provação) vier, Deus dará forças a vocês para suportá-la, e assim vocês poderão sair dela. Tudo isso nos mostra que o Senhor sabe como livrar das aflições as pessoas dedicadas a ele!" 1Pe 4:12-13; 1Co 10:13 e 2Pe 2:9.

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Autor: André R. Fonseca 
Twitter: @andreRfonseca

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