terça-feira, 6 de setembro de 2016

Como interpretar Apocalipse?

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Introdução

Os debates sobre o livro de apocalipse são ad infinitum. Dentro da escatologia tupiniquim de nosso país os problemas ainda se agravam. Em geral, a escatologia brasileira é guiada e hipnotizada pelo sensacional e cinematográfico, em vez de ser guiada por uma análise séria do texto. 

Então, como devemos interpretar o Apocalipse de João? Literalmente? Simbolicamente? Ambos? As próprias regras hermenêuticas para a interpretação de textos apocalípticos em geral já responde nossa questão. Entretanto, uma análise cuidadosa do próprio texto esclarece para nós o caminho que devemos tomar. 

Neste breve artigo, veremos o significado e o pano de fundo de uma palavra logo no primeiro verso do livro. A palavra “semaino” (traduzida como notificar, na ARA) significando “comunicação por símbolos” será o objeto de nosso estudo. Não faremos uma análise exegética exaustiva, nem de Ap. 1.1, nem da sua alusão veterotestamentária, mas nos deteremos apenas na palavra semaino (para uma análise completa, ver Beale, 1999).

1. O significado de “semaino” (σημαίνω)

João inicia seu livro dizendo que é uma revelação (Ἀποκάλυψις) de Jesus Cristo, que pela mediação de um anjo, foi notificada a João (Ap. 1.1). A palavra que nós traduzimos como “notificou” (ἐσήμανεν) é o aoristo ativo do verbo σημαίνω. O léxico Inglês-Grego do NT traduz essa palavra como “fazer conhecer, comunicar, reportar, significar” (BAGD, 747). Todas essas definições trazem a ideia de comunicação, mas não especifica a natureza ou o modo dessa comunicação (Beale, 1999).

2. O pano de fundo de “semaino

Para entendermos com maior precisão o significado de semaino, precisamos analisar a clara alusão ao Antigo Testamento presente em Apocalipse 1.1. O texto alude a Daniel 2.28-30, 45. As cláusulas “revelação... Deus mostrou... o que deve acontecer... e fez conhecer (σημαίνω)” aparecem juntas somente em Dn. 2 e em Ap. 1.1 (Beale, ibid.).

σημαίνω de Daniel 2 é a tradução grega do aramaico yĕda (fazer conhecer). O modus da comunicação é definido pelo contexto, que trata sobre uma visão como uma comunicação simbólica por intermédio de um sonho. Essa natureza simbólica da comunicação é atestada em Dn. 2.45:
Porquanto viste que do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro, o grande Deus faz saber (σημαίνω) ao rei o que há de suceder no futuro. Certo é o sonho, e fiel a sua interpretação”.

O contexto fala sobre o sonho que o rei Nabucodonosor teve sobre uma estátua composta de quatro partes feitas de metais diferentes (ouro, prata, bronze e ferro). Daniel interpretou cada parte como sendo grandes reinos mundiais, mas que no fim, foram substituídos/derrotados pelo reino de Deus. A revelação dada ao rei babilônico não era abstrata, mas sim pictórica (
ibid.). 

Portanto, João ao escolher semaino em vez de “gnorizo” (fazer conhecer), faz isso intencionalmente (e não por acaso) demonstrando a natureza simbólica dessa comunicação (o livro de Apocalipse) que é definida pela alusão à Dn. 2.

3. O uso de “semaino” no restante do NT

Semaino” tipicamente traz a noção de comunicação por símbolos quando não tem o sentido mais geral de “fazer conhecer”, e ambos os sentidos são encontrados na LXX (Septuaginta). Dos outros cinco usos no NT, dois tem o sentido de “fazer conhecer” (At. 11.28; 25.27) ainda que um deles (11.28) tenha nuanças de comunicação simbólica (revelação simbólica do profeta).

Os três outros usos estão no evangelho de João (Jo. 12.33; 18.32; 21.19), resumindo a descrição pictórica de Jesus sobre a crucificação (ibid.). Esse evangelho usa o substantivo cognato “semeion” repetidamente para se referir aos milagres de Jesus como “sinais” ou “símbolos” de seus atributos e de sua missão (Ibid.).

4. O paralelo entre “semaino” e “deiknymi” em Ap. 1.1

A definição semântica de semaino como “comunicação por símbolos” é reforçada pelo seu paralelo com a palavra δείκνυμι (mostrar) no mesmo verso: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos...”. Embora essa palavra possa significar algum sinônimo de “fazer conhecer” em outras literaturas gregas, aqui ela tem o sentido de uma “revelação mediada por visões celestiais simbólicas comunicadas por um anjo (Beale, ibid.)”. O significado de “mostrar” para δείκνυμι é corroborado pelos outros sete usos dessa palavra em Apocalipse (4.1; 17.1; 21.9–10; 22.1, 6, 8). O que se é mostrado em cada uma delas é uma visão simbólica, e João escreve que ele “viu” (E eu vi - καὶ εἶδον) essas revelações pictóricas (p. ex. 17.3, 6; 21.22; 22.8; ibid.).

Conclusão

Tanto a semântica como o Background de semaino em Ap. 1.1 é de imensa importância para uma aproximação hermenêutica correta a esse livro. Alguns comentaristas presumem que Apocalipse algumas vezes explica o significado de suas imagens, e que, portanto, onde não há explicações, deve se interpretar conforme o sentido “natural/literal”, a menos que o contexto indique o contrário (Walvoord, Revelation, 30). Conclui-se disso que devemos interpretar Apocalipse literalmente, a menos que sejamos forçados pelo contexto a interpretá-lo simbolicamente. Entretanto, com a análise acima, concluímos exatamente o contrário. O material de Apocalipse é majoritariamente simbólico (no mínimo 1.12-20; 4.1-22.5). Obviamente algumas partes não são simbólicas, mas a essência do livro é figurativa (Ibid.). 

Greg Beale (op. cit.) demonstra que há quatro níveis de comunicação em Apocalipse: 1. Linguístico (o próprio texto); 2. Visionário (as experiências visionárias de João; 3. Referencial (que consiste numa identificação histórica específica dos objetos vistos na visão) e; 4. Simbólico (é o que os símbolos nas visões conotam sobre seu referencial histórico). Então, por exemplo, em Ap. 19.7-8 a descrição textual é o nível linguístico, que pode ser lido e/ou ouvido. As imagens da noiva e do linho fino são o que João viu no nível visionário. 3. No nível referencial, a figura do casamento da noiva com o noivo se refere ao regozijo atual dos cristãos em comunhão com Cristo, provavelmente após sua segunda vinda. Finalmente, o nível simbólico se refere ao que nós determinamos ser o sentido preciso da comunhão da noiva com o noivo e da imagem do casamento em geral (o linho fino é explicitamente interpretado como sendo os atos de justiça dos santos). Pelo menos parte desse simbolismo significa a união espiritual consumada da igreja com Cristo, em Sua presença, e a celebração jubilosa associada a essa união final (Beale).

Concluímos que o próprio autor de Apocalipse (João) determina logo no primeiro verso que devemos interpretar seu livro simbolicamente, a menos que o contexto explicitamente se mostre literal (como o autor, a ilha de Patmos, as sete igrejas, etc).     
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Bibliografia:

- Bauckham, Richard, "The theology of the Book of Revelation" (1993).
- W. Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich, and F. W. Danker, A Greek-English Lexicon of the New Testament. Chicago: University of Chicago, 1979.
- Beale, G. K. (1999). The book of Revelation: a commentary on the Greek text. Grand Rapids, MI; Carlisle, Cumbria: W.B. Eerdmans; Paternoster Press.
- "John´s use of the Old Testament in revelation",(1998).

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Autor: Willian Orlandi
Divulgação: Bereianos

Mantendo a Fé numa Época de Incredulidade: A Igreja como a Minoria Moral

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“A questão mais importante de nosso tempo”, propôs o historiador Will Durant, “não é o comunismo versus o individualismo, nem a Europa versus a América do Norte, nem o Oriente versus o Ocidente. É se os homens podem viver sem Deus”. Essa pergunta, conforme parece, será respondida em nosso próprio tempo.

Durante séculos a igreja cristã foi o centro da civilização ocidental. A cultura, o governo, as leis e a sociedade do Ocidente estavam alicerçados em princípios explicitamente cristãos. Preocupação com o indivíduo, compromisso com os direitos humanos e respeito pelo que é bom, belo e verdadeiro – tudo isso se desenvolveu de convicções cristãs e da influência do cristianismo.

Todas essas coisas, apressamo-nos a dizer, estão sob ataque. A própria noção do certo e do errado tem sido descartada por grandes setores da sociedade. Onde ela não é descartada, é frequentemente depreciada. Agindo à semelhança dos personagens de Alice no País das Maravilhas, os secularistas modernos declaram o errado como certo e o certo como errado.

O teólogo quacre D. Elton Trueblood descreveu a nossa sociedade como uma “civilização sem raízes”. Nossa cultura, ele argumentou, está cortada de suas raízes cristãs, como uma flor cortada de seu caule. Embora a flor mantenha a sua beleza por algum tempo, está destinada a murchar e morrer.

Quando esse teólogo falou tais palavras há mais de duas décadas, a flor podia ser vista com algumas cores e sinais de vida. Mas o botão perdeu há muito a sua vitalidade, e agora é o tempo em que as pétalas caídas devem ser reconhecidas.

“Quando Deus está morto”, asseverou Dostoievsky, “qualquer coisa é permissível”. Não podemos exagerar quanto à permissividade da sociedade moderna, mas tal permissividade tem sua origem no fato de que o homem e a mulher modernos agem como se Deus não existisse ou fosse incapaz de cumprir sua vontade.

A igreja cristã encontra-se agora diante de uma nova realidade. Ela já não representa a essência da cultura ocidental. Embora permaneçam focos de influência cristã, eles são exceções e não a regra. Na maior parte da cultura, a igreja foi substituída pelo domínio do secularismo.

Os jornais cotidianos apresentam um transbordamento constante de notícias que confirmam o estado atual de nossa sociedade. Esta época não é a primeira a contemplar horror e mal indescritíveis, mas é a primeira que nega qualquer base consistente que identifica o mal como mal e o bem como bem.

Em geral, a igreja fiel é tolerada como uma voz na arena pública, mas somente enquanto não tenta exercer qualquer influência confiável no estado das coisas. Se a igreja fala com veemência sobre um assunto do debate público, é censurada como coerciva e ultrapassada.

O que a igreja pensa a respeito de si mesma em face desta nova realidade? Durante os anos 1980, foi possível pensar em termos ambiciosos, como a vanguarda de uma maioria moral. Essa confiança foi seriamente abalada pelos acontecimentos da década passada.

Podemos detectar pouco progresso em direção ao restabelecimento de um centro de gravidade moral. Em vez disso, a cultura se moveu rapidamente em direção ao abandono completo de toda convicção moral.

A igreja professa tem de contentar-se agora em ser uma minoria moral, se o tempo assim o exige. A igreja não tem mais o direito de atender à chamada do alarme secular tendo em vista o revisionismo moral e posições politicamente corretas sobre as grandes questões do momento.

Não importa qual seja a questão, a igreja tem de falar como aquilo que ela realmente é: uma comunidade de pessoas caídas mas redimidas, que permanecem sob a autoridade de Deus. A preocupação da igreja não é conhecer a sua própria mente, e sim conhecer e seguir a mente de Deus. As convicções da igreja não devem emergir das cinzas de nossa sabedoria decaída, e sim da Palavra de Deus determinativa, que revela a sabedoria de Deus e os seus mandamentos.

A igreja tem de ser uma comunidade de caráter. O caráter produzido por um povo que vive sob a autoridade do soberano Deus do universo estará inevitavelmente em conflito com uma cultura de incredulidade.

A igreja está diante de uma nova situação. Este novo contexto é tão atual como o jornal matutino e tão antigo como as primeiras igrejas cristãs em Corinto, Éfeso, Laodicéia e Roma. A eternidade mostrará se a igreja está ou não disposta a submeter-se apenas à autoridade de Deus ou se ela renunciará sua chamada a fim de honrar deuses insignificantes.

A igreja precisa despertar para o seu status como minoridade moral e apegar-se firmemente ao evangelho, cuja pregação nos foi confiada. Ao fazer isso, as fontes profundas da verdade imutável revelarão a igreja como um oásis doador de vida em meio ao deserto moral de nossa sociedade.

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Autor: Albert Mohler Jr.
Fonte: Albert Mohler 
Tradução: Wellington Ferreira

Ateísmo, Amoralismo e Não-Racionalismo

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Em Abril de 2010, o eticista Joel Marks sentou-se em frente ao seu computador e escreveu uma confissão para os leitores da coluna “Moral Moments” na revistaPhilosophy Now. Sua confissão dizia que ele tinha feito algo imoral. Sua confissão era que ele não poderia ter feito qualquer coisa imoral, em qualquer momento de sua vida, pois não exista coisa como a moralidade. Ou, ao menos, isso foi o que ele concluiu. O autor de “Moral Moments” saiu do armário como um “amoralista. Como ele mesmo coloca na primeira parte do seu “Manifesto Amoral”:
Esse filósofo tem há muito tempo trabalhado sob uma hipótese que nunca foi examinada, isto é, a hipótese de que existe uma coisa como certo e errado. Eu agora acredito que não existe.

Marks imediatamente passa a explicar o raciocínio por trás de sua “epifania chocante” (negrito acrescentado):

Em poucas palavras, eu me convenci que o ateísmo implica em amoralidade; e, uma vez sendo ateu, eu devo, portanto, abraçar a amoralidade. Eu chamo a premissa deste argumento de “ateísmo rígido” porque é análogo a uma tese em filosofia conhecida como “determinismo rígido.” Este último sustenta que se o determinismo metafísico é verdadeiro, então não existe tal coisa como livre arbítrio. Assim, um “determinista suave” acredita que, mesmo que o fato de você estar lendo essa coluna agora esteja seguindo a necessidade causal do Big Bang há quatorze bilhões de anos atrás, você ainda poderia ter livremente escolhido não lê-la. Analogamente, um “ateu suave ‘iria afirmar que alguém pode ser um ateu e ainda assim acreditar na moralidade. E, de fato, todos os que formam o grupo de Neo-Ateísmo … são  ateus “suaves”. Eu também era, até experimentar a minha epifania chocante de que os fundamentalistas religiosos estão corretos: sem Deus, não há nenhuma moralidade. Mas eles estão incorretos, eu ainda acredito, sobre a existência de um Deus. Por isso, eu creio que não há moralidade.

Você entendeu: os neo-ateus como Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Daniel Dennett e Sam Harris, são “ateus suaves”, porque eles negam a Deus mas ainda assim querem afirmar o realismo moral. O problema é que essa posição não é coerente nem estável, porque procura afirmar um fenômeno (neste caso, as normas morais objetivas) e ao mesmo tempo negar a estrutura metafísica que plausivelmente poderia explicar esse fenômeno. Marks resume como ele raciocinou o seu caminho do ateísmo “suave” para o “rígido”:

Por que eu agora aceito o ateísmo rígido? Bem, eu fiquei impressionado com os paralelos marcantes entre a religião e a moral, especialmente com o fato de que ambas valem-se de imperativos ou comandos que são destinados a serem aplicados universalmente. No caso da religião, e mais obviamente o teísmo, estes comandos emanam de um Comandante; “E a este todas as pessoas chamam de Deus”, como Aquino poderia ter escrito. O problema com o teísmo é, claro, são as razões instáveis para se crer em Deus. Mas o problema com a moralidade, eu afirmo agora, é que ela está em forma ainda pior que a religião neste respeito; pois se houvesse um Deus, Seus comandos fariam algum tipo de sentido. Mas se Deus não existe, como obviamente os ateus afirmam, então, que sentido poderia ser feito de haver comandos deste tipo? Em suma, enquanto os teístas assumem a existência óbvia de comandos morais como uma espécie de prova da existência de um Comandante, ou seja, Deus, eu agora tomo a não-existência de um Comandante como uma espécie de prova de que não existem comandos, ou seja, de que não existe a moral.

Em alguns aspectos, a confissão de Marks não é tão surpreendente. Afinal de contas, os teístas têm feito esse mesmo tipo de argumento (sem Deus, sem moral) por séculos. Além disso, um grande número de ateus influentes já fez a “boa confissão”: Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, J. L. Mackie, e (mais recentemente) Alex Rosenberg.


Então eu não vou focar sobre o que acho que deve ser razoavelmente evidente para aqueles que refletiram sobre os fundamentos metafísicos da moralidade. Ao invés disso, quero me concentrar em alguns comentários que Marks faz na segunda parte do seu “Manifesto Amoral” que, embora tangencial às suas preocupações, creio ser bastante revelador e extremamente significativo. Pois o que Marks sugere nestas observações posteriores é que um ateu consistente deveria ser não só um amoralista que nega as normas morais objetivas, mas também um não-racionalista (i.e., alguém que nega a existência de normas racionais objetivas).

Ateísmo e Não-Racionalismo

Em uma seção intitulada “O que é a moralidade?”, Marks argumenta que, se (como ele acredita) o realismo moral é falso, devemos desistir de falar de “moralidade” de uma vez por todas (ao invés de, digamos, adotar uma posição de “como se fosse” ou então reequipar nosso vocabulário moral). A medida que ele explica as suas razões, observe a concessão que ele faz de passagem:
Eu sinto que o novo entendimento da moralidade como sendo mais mito que realidade é suficientemente importante para justificar a inconveniência de largar nossas maneiras habituais de falar e pensar sobre a Moralidade e aprender novas maneiras. Isso por duas razões. A primeira é o valor da própria verdade. Se é verdade que a moralidade metafísica não existe, então por essa razão apenas devemos acreditar que ela não existe. (Estritamente falando, eu deveria dizer: Se é racional acreditar que a moralidade metafísica não existe, então apenas por essa razão devemos acreditar).Observe que quando eu uso termos como “deveria”, “valor” e “garante” aqui, eu estou me referindo às normas epistêmicas, ou seja, aos padrões de conhecimento, e não às normas morais. Vou conceder que, no final, isso pode ser tanto uma questão de valor quanto de desejo subjetivo, pois algumas pessoas podem não se importar muito com a verdade (ou a racionalidade), ou pelo menos não colocam muita importância sobre ela, se, digamos , a alternativa seja a felicidade. Pense na pílula azul em Matrix. Logo, meu primeiro argumento se destina apenas para aqueles que tomariam a pílula vermelha.

Marks distingue aqui entre normas morais e normas epistêmicas. Brevemente definindo, as normas morais são padrões para o comportamento, enquanto que as normas epistêmicas são padrões para a crença; as normas morais estão conectadas com o comportamento correto, enquanto que as normas epistêmicas estão relacionadas ao pensamento correto. Quando falamos de “racionalidade” e “irracionalidade” estamos pressupondo que existem normas epistêmicas, assim como quando falamos de “moralidade” e “imoralidade” estamos pressupondo a existência de normas morais. Mas lembre-se que, como consequência de seu ateísmo, Marks agora nega que existam normas morais objetivas e reais. (“Por isso, creio eu, não há moralidade”.) Em vez de fazermos afirmações morais tradicionais, deveríamos apenas falar apenas de “valores ou desejos subjetivos”. Não existem verdades morais para debater ou aplicar em nossas vidas; tudo o que podemos adequadamente discutir são as nossas preferências e desejos pessoais.


Marks está ciente, no entanto, de que as normas morais e epistêmicas, apesar de distinguíveis, movem-se em órbitas semelhantes. Como o parágrafo anterior deixa claro, existem paralelos entre os dois tipos de normas, ainda que um tipo não possa ser reduzido ao outro. Assim, os motivos que Marks usa para negar a realidade das normas morais podem ser extrapolados (usando o mesmo fundamento) para negar a realidade das normas epistêmicas. Se você acha que falar de “moralidade” é realmente apenas “uma questão de valor ou desejo subjetivo”, o próximo passo natural é pensar que falar sobre “racionalidade” é “no final das contas … tanto uma questão de valor quanto de desejo subjetivo”. Em face disso, é difícil ver a razão pela qual, sob a cosmovisão ateísta, as normas epistêmicas existiriam enquanto que as normais morais não. Por que é que faria sentido falar em pensar corretamente mas não em agir corretamente? Por que haveriam padrões objetivos que governam nossas faculdades cognitivas mas não existiriam padrões objetivos que regem nossas outras faculdades? Para o ateu, existe uma linha muito tênue entre o amoralismo e o não-racionalismo.

Vamos nos aprofundar um pouco mais para estender o suporte para esta suposição. Por que o ateísmo convida o não-racionalismo? É comumente afirmado que o naturalismo metafísico é a cosmovisão ateísta mais consistente e parcimoniosa. De qualquer forma, eu acho que é seguro dizer que é a cosmovisão mais proeminente entre os intelectuais ateus de hoje. Como Alvin Plantinga observou, o naturalismo “é eminentemente atacável”:
Seu calcanhar de Aquiles (além de sua falsidade deplorável) é que não possui espaço para normatividade. Não há espaço, no naturalismo, para o certo ou o errado, o bom ou o ruim. (Alvin Plantinga, “Afterword,” in The Analytic Theist, ed. James F. Sennett (Eerdmans, 1998), p. 356.)

Eu acho que Plantinga está certo nesse ponto. Se o naturalismo implica que a única realidade é uma realidade cientificamente circunscrita (onde “ciência” é entendida em termos das ciências naturais: física, química e biologia). Tudo o que existe é suscetível às descrições e explicações científicas. No entanto, a ciência, por sua própria natureza, está restrita a afirmações descritivas. A ciência pode nos dizer qual é o caso, mas não pode nos dizer qual deveria ser o caso. A ciência não trata de afirmações normativas. Portanto, a ciência (e, por extensão, o naturalismo) não dá espaço para normas reais e objetivas da moralidade e racionalidade. “Não furtarás” não é uma afirmação científica. “Você não deve acreditar no que é logicamente inconsistente” também não é uma afirmação científica.


É certo que, apesar de o naturalismo ser a expressão mais natural do ateísmo, o ateísmo em si não implica no naturalismo. Existem alguns ateus não-naturalistas. De todas as maneiras, o ateísmo está, seguramente, comprometido com a ideia de que a realidade última (o que quer que ela seja) não é pessoal e é não-racional. Como tal, é difícil ver como uma cosmovisão ateísta poderia explicar a existência de normas epistêmicas objetivas, especialmente uma vez que ela já admite a ausência de normas morais objetivas.

LEVANTANDO AS OPÇÕES

Mas, novamente, vamos tentar ser mais específicos. Que tipo de opções o ateu tem quando se trata de compreender e explicar as normas epistêmicas? Aqui estão sete respostas possíveis; em cada caso, eu irei brevemente indicar a razão pela qual essa resposta não deve ser satisfatória para o ateu. (Nota: Não tenho a pretensão de dizer que estas opções são exaustivas ou mutuamente excludentes, apenas que elas são as únicas que se apresentam mais imediatamente).

Opção #1: As normas epistêmicas são apenas um subconjunto das normas morais. A partir desse ponto de vista, ser irracional é apenas ser imoral só que de uma maneira específica, isto é, ser intelectualmente irresponsável ou culpável. Esta é provavelmente a opção menos atraente para o ateu, porque isso significaria que o amoralismo implica no não-racionalismo. Qualquer dificuldade em explicar as normas morais sob o ponto de vista ateísta iria imediatamente aparecer nas tentativas de explicação das normas epistêmicas. (Existem outros problemas com esta opção, mas não irei tratar deles aqui).

Opção #2: As normas epistêmicas não são um subconjunto das normas morais, no entanto, são análogas. Isso não parece ser mais atraente para o ateu do que a primeira opção, uma vez que ainda conecta os dois tipos de normas de tal forma que elas tendem a permanecer juntas. Se os dois tipos de normas são análogos, então, presumivelmente, eles terão origens ou bases análogas. Mas se o ateísmo convida o amoralismo, então (por um argumento análogo) irá convidar o não-racionalismo também.

Opção #3: As normas epistêmicas são deontológicas na natureza; elas tratam de deveres ou obrigações intelectuais. Menciono isto como uma opção separada, embora eu suspeite que ela se reduz a #2 e #3. Em todo caso, essa não parece ser uma boa opção para o ateu. Deveres e obrigações só podem surgir em um contexto pessoal. Então quais são as pessoas que dão origem aos nossos direitos e obrigações intelectuais? Será que a raça humana como um todo de alguma forma impõe obrigações aos seus membros individuais? Ou alguns membros impõem obrigações a outros membros? Se assim for, com que autoridade? Por que eu devo isso a você ou a qualquer outra pessoa Porque devo usar minhas faculdades cognitivas de uma certa maneira? As funções intelectuais não parecem ser mais explicáveis, sob o ponto de vista ateísta, do que os deveres morais. Se um ateu poderia explicar último, presumivelmente, deveria explicar o primeiro. Mas não é esse precisamente o problema?

Opção #4: As normas epistêmicas são teleológicas na natureza; elas pertencem a finalidade ou função natural de nossas faculdades intelectuais.Eu acho que faz sentido entender algumas normas epistêmicas como teleológica na natureza. A epistemologia de função adequada de Alvin Plantinga é um caso em questão: pensar racionalmente é essencialmente usar as faculdades cognitivas da maneira que elas foram destinadas (leia-se: projetadas) a serem utilizadas, com a finalidade de adquirir crenças verdadeiras e evitar falsas. Mas, como Plantinga e outros observaram, enquanto que a epistemologia de função adequada se encaixa confortavelmente com o teísmo, ela não faz o mesmo com o ateísmo. É fácil perceber o porquê: o ateísmo não é amigo da teleologia na natureza. O apelo principal do darwinismo para os ateus é que ele pretende explicar a aparência de propósito e função na natureza sem qualquer apelo a causas finais (especificamente, sem qualquer causa final sobrenatural). Eu presumo que a única opção para um ateu aqui seria apelar para algum designer prévio dentro do universo natural, isto é, organismos não-humanos com consciência e inteligência (extraterrestres?) que de alguma forma despejaram sobre nós as nossas faculdades intelectuais. A falha em tal explicação é óbvia: ela só iria empurrar o problema um passo para trás. O que iria explicar as faculdades intelectuais desses organismos? Quais seriam os fundamentos de suas normas epistêmicas? (Aqueles que leram isso e acham que os teístas enfrentam o mesmo problema, não entenderam ainda as diferenças relevantes entre Deus e os organismos naturais).

Opção #5: As normas epistêmicas são de natureza subjetiva; elas estão fundamentadas em desejos, sentimentos, preferências, objetivos, ou algo humano nesse sentido. Deste ponto de vista, uma norma epistêmica como “a crença deve ser proporcional a evidência” é verdadeira por causa de certos estados psicológicos humanos (individuais ou coletivos). O problema, claro, é que essa posição é totalmente consistente com o não-racionalismo; que basicamente admite que não existem normas epistêmicas objetivas. O que estamos procurando aqui é uma explicação ateísta das normas epistêmicas objetivas. Essa opção está mais para uma rendição do que uma solução.

Opção #6: As normas epistêmicas são descrições de como nós normalmente pensamos. De acordo com essa resposta, ser racional é pensar normalmente, e ser irracional é pensar de forma anormal. O problema imediato aqui é a ambiguidade do termo “normal”. Isso pode significar simplesmente “comum” ou “regular” (como em “é normal haver trovoadas nesta época do ano”). Mas essa leitura não nos dará uma explicação adequada para as normas epistêmicas. Certamente não queremos dizer que ser racional é pensar da maneira que os seres humanos frequentemente ou regularmente pensam, como se o pensamento racional fosse apenas aquilo que é estatisticamente dominante. Isso seria confundir o descritivo com o prescritivo; confundir a epistemologia (como as pessoas devem pensar) com a psicologia (como as pessoas, de fato, pensam). Apenas considere o seguinte: se as pessoas regularmente formulassem suas crenças com base no achismo, isso faria o achismo ser algo racional?

Alternativamente, “normal” poderia significar “normativo”. Mas, então, essa resposta não seria nada mais que uma declaração vazia “as normas epistêmicas são descrições do que é epistemologicamente normativo”. A opção #6 desapareceria numa nuvem de tautologia, fazendo o ateu procurar outro lugar para uma explicação significativa das normas epistêmicas.

Opção #7: As normas epistêmicas são normas evolutivas, no sentido de que elas tem metas ou fins evolutivos; elas caracterizam operações e processos cognitivos que são vantajosos em termos evolutivos. Eu suspeito que muitos ateus irão gravitar em torno dessa opção pela mesma razão que eles gravitariam em torno de uma explicação evolutiva da moralidade. Na ausência de Deus, a pessoa tem pouca escolha a não ser buscar explicações puramente naturalistas do que somos, de onde viemos, e por que nos comportamos do jeito que nos comportamos. A Mãe Natureza e o Pai Darwin, em conjunto, entregarão as mercadorias.

A ideia básica, então, é que as faculdades cognitivas humanas evoluíram através de processos puramente naturais, com a seleção natural agindo sobre variações genéticas, e as normas epistêmicas caracterizam como essas faculdades cognitivas operam para nos dar verdadeiras crenças que servem ao propósito “final” de eficazmente se reproduzir e sobreviver. As operações ou processos cognitivos são racionais ou irracionais apenas no caso de tender a produzir, respectivamente, crenças verdadeiras ou falsas. As crenças verdadeiras promovem a sobrevivência. As falsas crenças dificultam a sobrevivência. Assim aquilo que é epistemologicamente normativo se reduz, em última análise, aquilo que é biologicamente vantajoso.

Existem vários problemas graves com esta explicação. Em primeiro lugar, a suposição de que a seleção natural tenderá a favorecer as faculdades cognitivas apontadas para a verdade é altamente questionável. Os organismos podem sobreviver eficazmente com falsas crenças assim como com crenças verdadeiras; na verdade, a maioria dos organismos do planeta se reproduzem e sobrevivem de forma muito eficaz, sem possuir qualquer tipo de crenças.

Além disso, como Plantinga e outros argumentaram, a evolução como um processo puramente naturalista seria totalmente cego ao conteúdo proposicional de nossas crenças e, assim, ao fato de elas serem verdadeiras ou falsas. (Veja, e.g., Alvin Plantinga, Where the Conflict Really Lies (Oxford University Press, 2011), pp. 316ff.) Dado o naturalismo, apenas as propriedades físicas dos nossos cérebros e as consequências físicas de nossos processos cerebrais poderiam ter qualquer influência causal sobre os resultados evolutivos. Em suma, a evolução não presta atenção ao que um organismo acredita que, apenas à maneira como ele se comporta. Como o filósofo Stephen Stich (entre outros) francamente admitiu, “a seleção natural não se preocupa com a verdade; se preocupa apenas com o sucesso reprodutivo”. (Stephen Stich, The Fragmentation of Reason (MIT Press, 1990), p. 62.)

Mas há um problema mais fundamental aqui. Mesmo se admitirmos que a evolução tenderia a favorecer faculdades cognitivas voltadas a crenças verdadeiras, uma explicação evolucionista das normas epistêmicas ainda seria aquém do esperado por esta simples razão: não há nada objetivamente normativo sobre os resultados evolutivos. A teoria evolucionista procura dar uma explicação naturalista sobre os organismos, de onde eles vieram e por que eles são do jeito que são. Mas é uma teoria descritiva – como deve ser quaisquer explicação derivada dessa teoria (como a explicação de nossas faculdades cognitivas). Do ponto de vista ateísta, não há nada objetivamente “certo” ou “errado” sobre o que a evolução produz. Os resultados da evolução não são objetivamente bons (ou objetivamente maus). Eles simplesmente são o que são.

O máximo que um ateu poderia dizer sobre a “bondade” ou o “acerto” de certos resultados evolutivos é que eles são subjetivamente bons: eles são bons porque nós mesmos os valorizamos (presumivelmente porque valorizamos coisas como nossa própria sobrevivência, crenças verdadeiras, experiências prazerosas, e assim por diante). Mas, nesse caso, a opção #7 entra em colapso com a opção #5 e o ateu não poderá seguir em frente. Da mesma forma, falar de “objetivos” ou “fins” evolutivos deve ser tratado como algo metafórico, uma vez que a evolução naturalista é, por definição, não direcionada e não intencional. Assim, se as “normas” epistêmicas devem ser explicadas em termos de tais “metas” ou “fins”, eles não podem ser tomados como literalmente normativos.

RESUMINDO

Como eu disse antes, eu não estou afirmando que essas são as únicas opções que o ateu poderia contemplar, mas elas parecem ser as principais. Sendo assim, eu diria que o ateu carrega o fardo da responsabilidade de indicar como as normas epistêmicas podem ser consistentemente explicadas sob um ponto de vista ateísta, especialmente se o ateu em questão já jogou as normas morais pela janela.

O que eu forneci aqui é pouco mais do que o esboço de um argumento. Mas a sua visão central pode ser simplesmente declarada da seguinte forma: dados os paralelos existentes entre as normas morais e as normas racionais, uma cosmovisão que luta para dar uma explicação consistente das primeiras também irá lutar para explicar as últimas.

Por conseguinte, eu afirmo que um ateu consistente deveria abraçar tanto o amoralismo (a negação das normas morais objetivas) quanto o não-racionalismo (a negação de normas epistêmicas objetivas). Ao menos os ateus que abraçaram abertamente o amoralismo também devem, por uma questão de coerência, defender o não-racionalismo, pois a lógica que leva do ateísmo ao amoralismo continua a avançar para o não-racionalismo. Alguns leitores podem levantar a questão de que eu não mostrei qualquer inconsistência lógica entre o ateísmo e a existência de normas epistêmicas objetivas. Isso é verdade, mas é igualmente irrelevante. O que temos aqui não é uma questão de consistência lógica rigorosa, mas sim de fundamento metafísico adequado.
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Autor: James N. Anderson
Fonte: Analogical Thoughts – Atheism, Amoralism and Arationalism 
Tradução e adaptação: Erving Ximendes

Comentário de João Capítulo 6

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Nota do tradutor:

Provavelmente você já ouviu alguém dizer que Romanos 9 é a kryptonita do Arminianismo. Se esse é o caso, então João 6 é certamente o golpe de misericórdia. Neste fascinante comentário elaborado pelo Dr. James White, temos a refutação de duas ideias errôneas — porém bastante distintas — que se propagaram no Cristianismo: a transubstanciação e a depravação parcial do homem. Assim como o autor, eu espero que este comentário seja útil para os crentes do Brasil e que ele ajude a Igreja brasileira a buscar um material teológico são. 

Erving Ximendes, agosto de 2016.



Introdução

Em nossa constante tentativa de satisfazer a necessidade de um material teológico saudável para a comunidade cristã, estamos disponibilizando esta tradução e comentário sobre o sexto capítulo de João. Nossa razão para isso é que queremos deixar a poderosa luz das Escrituras incidir sobre duas questões bastante distintas. Em primeiro lugar, as palavras de Jesus em João 6 são vitais para a nossa compreensão da doutrina da eleição dos santos de Deus. João 6: 38 é uma das mais claras exposições que temos da doutrina da salvação do Senhor. Por isso, a proclamação da verdade chegará ao ponto de corrigir os muitos erros — tanto dentro quanto fora — da comunidade cristã. Em segundo lugar, João 6:48 é uma passagem importante para lidar com a teologia sacramental e especificamente com os ensinamentos da Igreja Católica Romana no que diz respeito à transubstanciação e toda a sua doutrina da salvação. Esperamos que este comentário e tradução literal elaborada por James White, diretor do Ministério Alpha & Omega, sejam úteis para o ministério dos santos.

O sexto capítulo do Evangelho de João é um trecho fascinante de literatura — aparentemente narrado com grandes propósitos. Ele tem o dobro do tamanho médio dos capítulos de (registrados por) João. O capítulo narra dois grandes milagres — a alimentação dos 5.000 e Jesus andando sobre as águas — e os conecta para formar a introdução a um diálogo cristológico muito importante. Este diálogo, em seguida, termina na confissão de fé dos verdadeiros discípulos de Jesus.

COMENTÁRIO

1 - Algum tempo depois Jesus partiu para a outra margem do mar da Galiléia (ou seja, do mar de Tiberíades). 2 - E grande multidão continuava a segui-lo, porque vira os sinais miraculosos que ele tinha realizado nos doentes.

Comentário: Boa parte do ministério de Jesus está intimamente ligado ao Mar da Galiléia. João dá o que provavelmente seria o nome "romano" oficial para uma grande quantidade de água, embora este nome apareça com pouca frequência. A cidade de Tiberíades — nomeada conforme o imperador — tinha obtido esse nome apenas alguns anos antes da época do ministério de Jesus, daí a menção secundária feita por João. João fala de uma grande multidão que segue a Jesus, presumivelmente por terra e não pelo mar, por causa dos poderes de cura que Jesus possuía. Nenhuma menção é feita a uma suposta presença de enfermidade no meio desta multidão; as pessoas parecem muito mais atraídas à possibilidade de um milagre do que a qualquer outra coisa.

3 Então Jesus subiu ao monte e sentou-se com os seus discípulos. 4 - Estava próxima a festa judaica da Páscoa.

Comentário: Há possivelmente uma figura de retórica no verso 3, reminiscente do Sermão da Montanha, em Mateus 5: 1. Aparentemente, o Senhor e Seus discípulos chegaram à parte e subiram a montanha sozinhos. Se Jesus queria ter uma conversa particular com os discípulos, João não menciona isso. O que ele menciona, no entanto, é o fato de que a Páscoa estava próxima. Levando em conta o caráter não judaico de sua audiência, João menciona que a Páscoa é a festa dos judeus — um item que seria certamente desnecessário se o seu público fosse, em sua maioria, judaico. João pode apenas estar colocando os eventos em seus contextos históricos. Ou, ele pode estar atribuindo importância às ações de Jesus naquilo que vai acontecer mais adiante. Será que Jesus está colocando a si mesmo como o portador da verdadeira Páscoa? Se a Páscoa estava se aproximando, por que essas pessoas não estavam subindo a Jerusalém? Será que Jesus estava apontando para si mesmo como o cumprimento da Páscoa? O próximo capítulo começa com a Festa dos Tabernáculos — quase seis meses depois. Assim, parece haver um intervalo de tempo entre os dois capítulos, e, portanto, um propósito real por trás da menção da festa da Páscoa.

5 - Levantando os olhos e vendo uma grande multidão que se aproximava, Jesus disse a Filipe: "Onde compraremos pão para esse povo comer?" 6 - Fez essa pergunta apenas para pô-lo à prova, pois já tinha em mente o que ia fazer.


Comentário: João retrata Jesus vendo a multidão que vinha ter com Ele de longe. A princípio parece que Ele percebe que essa multidão estará com fome, pois teria viajado uma longa distância. Os evangelhos sinópticos, no entanto, indicam que um período de ensino interveio e até que esse ensinamento acabasse já seria tarde demais para que as pessoas voltassem as suas casas — daí a necessidade de comida.

Filipe parece ter sido a melhor escolha para o questionamento feito pelo Senhor, uma vez que ele era de Betsaida e, se isso aconteceu "na outra margem do mar", oposta a Cafarnaum, sua cidade natal estaria bem perto. Assim, voltando-se para o menino local, Jesus pergunta sobre as fontes de alimentação na vizinhança. Mas João é rápido em apontar que Jesus sabia o tempo todo o que iria fazer, a questão estava em testar a compreensão de Filipe sobre Sua própria pessoa e sobre Seu poder.

7 - Filipe lhe respondeu: "Duzentos denários não comprariam pão suficiente para que cada um recebesse um pedaço!" 8 - Outro discípulo, André, irmão de Simão Pedro, tomou a palavra: 9 - "Aqui está um rapaz com cinco pães de cevada e dois peixinhos, mas o que é isto para tanta gente?”.

Comentário: A resposta de Filipe é de surpresa: todo o tesouro dos apóstolos provavelmente não continha dinheiro suficiente para comprar uma quantidade tão grande de alimentos, ainda que estivessem disponíveis. Ainda sem perceber o propósito do Senhor, André — que parece ter sido uma pessoa observadora, sempre levando as pessoas a Jesus — traz à atenção do Senhor a única fonte aparente de sustento: um menino que tinha cinco pães de cevada — o alimento do homem pobre — e dois peixinhos. Mas até mesmo André tem que acrescentar: "Mas o que é isso para tanta gente?". Ele ainda não conhece a suficiência daquilo que é pequeno nas mãos de Jesus.

10 - Disse Jesus: "Mandem o povo assentar-se". Havia muita grama naquele lugar, e todos se assentaram. Eram cerca de cinco mil homens. 11 - Então Jesus tomou os pães, deu graças e os repartiu entre os que estavam assentados, tanto quanto queriam; e fez o mesmo com os peixes.

Comentário: João enraíza firmemente na história o mais popular dos milagres de Jesus — a julgar pela inclusão deste relato em cada um dos evangelhos. Jesus dá ordens — Lucas, o historiador, observa que eles deveriam ser separados em grupos de 50 — e João se lembra de detalhes visuais, i. e., havia muita grama naquele lugar. A imagem é impressionante: um dia frio de primavera com um grande grupo de homens e mulheres — em um número maior que 5.000 — reclinando sobre a relva verde. Enquanto isso, os discípulos se perguntam o que o Senhor iria fazer nesse momento. Pode-se até imaginar o sorriso de João à medida que ele escreve — ou dita — esta parte do seu livro. Quão grande anseio ele deve ter tido de estar ali novamente!

Jesus tomou o pão e, como era seu costume, deu graças por isso. Infelizmente, a formulação exata desta oração não nos é fornecida — o máximo que podemos fazer é nos perguntar como foi que Jesus agradeceu por aqueles pequenos pães e peixes secos. João atribui importância a este ato, uma vez que ele o menciona novamente no verso 23.

No estilo típico, o milagre é narrado sem enfeites ou fantasias. É simplesmente afirmado que a comida foi distribuída aos que se reclinavam sobre a grama — com cada um tendo sua porção. O milagre está mais implícito do que diretamente declarado, embora não haja dúvidas de que ele realmente tenha acontecido.

2 - Depois que todos receberam o suficiente para comer, disse aos seus discípulos: "Ajuntem os pedaços que sobraram. Que nada seja desperdiçado". 13 - Então eles os ajuntaram e encheram doze cestos com os pedaços dos cinco pães de cevada deixados por aqueles que tinham comido.

Comentário: João continua a projetar outro ponto: que não só a comida havia sido suficiente para todos, mas, na verdade, havia sido mais do que o necessário. A graça de Deus era maior do que a própria necessidade. Em seguida, os discípulos ajuntam doze cestos cheios. Curiosamente, na narrativa dos evangelhos sinóticos, quando Jesus alimenta os 4.000, sete cestas maiores são retomadas, aparentemente indicando um excesso ainda maior do que a que aconteceu com os 5000.

14 - Depois de ver o sinal miraculoso que Jesus tinha realizado, o povo começou a dizer: "Sem dúvida este é o Profeta que devia vir ao mundo".

Comentário: Como resultado do sinal — não do ensino —, os homens estão convencidos de que Jesus é "o Profeta". Muitos veem isso como uma referência a uma crença do primeiro século no "Profeta" — como Moisés era em Deuteronômio 18: 18 — e que ela deve ser distinguida da crença de que Jesus era o próprio Messias. Outros veem uma relação similar entre Messias e Profeta. Eu prefiro a primeira opção.

15 - Sabendo Jesus que pretendiam proclamá-lo rei à força, retirou-se novamente sozinho para o monte.

Comentário: Jesus sempre é retratado por João como tendo a capacidade de conhecer os pensamentos dos homens. Parece, sem sombra de dúvidas, que essa capacidade é apresentada como um poder sobrenatural. Ainda assim, João não é o único a fazer isso. Marcos (2: 4-8) dá a mesma informação, embora não da maneira tão forte que João a fornece.

Os homens estavam prestes a vir e fazer de Jesus "rei". As multidões, como sempre, estavam procurando o conquistador político/militar que poderia livrá-los da tirania romana. No entanto, se estes homens estavam procurando o "Profeta", ao invés do Messias, existe a possibilidade de termos aqui a conexão feita posteriormente pelo próprio Jesus: o "Profeta" será semelhante a Moisés, e Moisés deu ao povo o maná no deserto. Assim, se Jesus é capaz de dar o "maná" no deserto moderno, Ele não deveria ser "profeta" assim como Moisés? A maneira que as expressões "o Profeta" e "fazê-lo rei" se encaixam é difícil de determinar, e depende da teoria que você adere quanto às crenças messiânicas do primeiro século. Embora o aspecto militar seja forte nos evangelhos sinóticos, ela não parece ser tão prevalente aqui.

Jesus se desvia dos planos precipitados dos homens e vai sozinho para a montanha. Possivelmente os próprios discípulos corriam o perigo de serem levados pelo frenesi da multidão. Nos relatos dos evangelhos sinópticos, eles nunca desistem da ideia de um herói/messias militar, e isso pode estar presente aqui também.

16 - Ao anoitecer seus discípulos desceram para o mar, 17 - entraram num barco e começaram a travessia para Cafarnaum. Já estava escuro, e Jesus ainda não tinha ido até onde eles estavam. 18 - Soprava um vento forte, e as águas estavam agitadas. 19 - Depois de terem remado cerca de cinco ou seis quilômetros, viram Jesus aproximando-se do barco, andando sobre o mar, e ficaram aterrorizados.

Comentário: João faz uma transição muito natural até a próxima parte deste dia agitado — e ao próximo milagre também. Os discípulos decidiram ir a Cafarnaum. A repentina isolação de Jesus bem no momento em que eles esperavam que Ele fosse aceitar os elogios da multidão deve ter-lhes causado consternação. Será que Jesus tinha dado instruções de atravessar a Cafarnaum? Será que eles descobriram que Jesus queria que eles fossem para lá? Será que eles estavam abandonando a Jesus? João não diz nada a respeito e somos deixados apenas com perguntas. João observa que já estava escuro quando eles entraram no barco — uma coisa perigosa a se fazer sobre as águas traiçoeiras do mar da Galiléia. Talvez eles tivessem esperado o máximo que puderam, e só agora haviam cedido e começado a atravessar o mar.

Enquanto estavam no mar, um "grande vento" surgiu — uma ocorrência comum em climas desérticos. João nos diz que os homens estavam quase na metade do caminho quando Jesus veio a eles — não muito longe dado o fato de que muitos deles eram pescadores e seriam habilidosos em viagens aquáticas. O vento estava, obviamente, contrário a eles. Os evangelhos sinópticos nos dizem que a essa hora já era muito tarde da noite. Marcos nos diz que estavam na quarta vigília (Marcos 6:48).

Não sabemos quem foi o primeiro a ver Jesus andando sobre as águas, mas o choque certamente deve ter sido grande. Todo tipo de possível explicação naturalista tem sido oferecida para este milagre, mas o texto simplesmente não as permite. Jesus vem em direção ao barco, andando sobre as águas, e os homens ficam com medo — o que é bastante compreensível, dada a situação.

20 - Mas ele lhes disse: "Sou eu! Não tenham medo!" 21 - Por isso eles quiseram recebê-lo no barco e logo após Ele entrar, se encontraram na costa para a qual estavam indo.

Comentário: Jesus rapidamente se identifica ao perceber o medo de Seus discípulos. João não fornece tantos detalhes quanto Mateus (14: 22-27). Sua narrativa é bastante autodisciplinada. A identificação de Jesus acalma os medos dos discípulos e Ele então entra no barco.

A próxima cláusula parece indicar mais um evento miraculoso: o transporte imediato do barco e dos homens para o seu local de destino. Os relatos sinópticos não dão qualquer indício disso e Mateus 14: 34 parece indicar exatamente o contrário. O milagre observado pelos escritores sinópticos é a cessação imediata da tempestade — que pode ser o que João está fazendo alusão aqui —, i. e., uma vez que o mar havia se acalmado, eles chegaram ao destino rapidamente  — ou "imediatamente".

22 - No dia seguinte, a multidão que tinha ficado no outro lado do mar percebeu que apenas um barco estivera ali, e que Jesus não havia entrado nele com os seus discípulos, mas que eles tinham partido sozinhos. 23 - Então alguns barcos de Tiberíades aproximaram-se do lugar onde o povo tinha comido o pão após o Senhor ter dado graças. 24 - Quando a multidão percebeu que nem Jesus nem os discípulos estavam ali, entrou nos barcos e foi para Cafarnaum em busca de Jesus. 

Comentário: Este parágrafo introduz um novo cenário e ainda assim fornece continuidade com o que foi dito anteriormente. A multidão, que parece ter passado a noite na zona rural circunvizinha, vê que os discípulos partiram sem Jesus. Eles obviamente ficam perplexos quanto ao local onde o Senhor poderia estar. Então, embarcando em pequenos barcos provenientes de Tiberíades, eles atravessam o mar e voltam para Cafarnaum em busca dEle.

A frase "... após o Senhor ter dado graças" no verso 23 é um pouco estranha e gerou algumas variações textuais. Uma possibilidade seria "depois de dar graças ao Senhor", embora o genitivo não seja normalmente encontrado nesta forma.

25 - Quando o encontraram do outro lado do mar, perguntaram-lhe: "Mestre, quando chegaste aqui?" 26 - Jesus respondeu: "A verdade é que vocês estão me procurando, não porque viram os sinais miraculosos, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos.


Comentário: Aqui a multidão encontra o Senhor Jesus e obviamente faz a seguinte pergunta: "Como você chegou aqui?". Ao invés de respondê-la, o Senhor trata diretamente da motivação que a multidão tinha para buscá-Lo. Ele declara que o que Ele havia feito não tinha como propósito apenas a alimentação de um grande grupo de pessoas, mas sim uma razão especial. Parece óbvio que o milagre foi realizado para apontar Jesus como o novo Moisés — e ainda mais que isso — e como o cumprimento da Páscoa — e ainda mais que isso. Como Jesus irá em breve falar, o pão que Ele deu aos homens representa muito mais —na verdade, ele representa o "pão da vida".

27 - Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem lhes dará. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação.

Comentário: Jesus aconselha seus ouvintes a priorizarem aquilo que é valioso. A ênfase errada que eles tinham — claramente vista na motivação para buscá-Lo — é comparada aqui a busca pelo pão que se estraga, ao invés do pão que "permanece para a vida eterna". Este pão, por sua vez, é encontrado em apenas um: o Filho do Homem. Este é o pão que o Pai — o próprio Deus — selou/separou — colocou sua marca nele, por assim dizer. Ao longo deste discurso, Jesus irá fazer uma conexão íntima entre Sua pessoa e a vida eterna que Ele dá. Não se pode ter a vida eterna sem ter uma compreensão adequada dAquele que a dá: o Senhor Jesus Cristo.

28 - Então lhe perguntaram: "O que precisamos fazer para realizar as obras que Deus requer?" 29 - Jesus respondeu: "A obra de Deus é esta: crer naquele que Ele enviou".

Comentário: O uso do termo "trabalho" no versículo 27 induz a pergunta feita ao Senhor: "O que devemos fazer para realizar as obras de Deus?". Parece haver uma mudança de foco aqui, uma vez que é provável que a multidão ainda estivesse presa ao milagre ao invés de seu significado. Ou seja, o que eles queriam realmente saber era como poderiam realizar os milagres que Jesus fazia. A resposta de Jesus, assim como suas respostas à mulher no poço, redireciona magistralmente a conversa aos seus objetivos. A obra de Deus, Jesus diz, é crer nEle! Esta é a obra de Deus. Nossos sentidos são frequentemente insensíveis ao tremendo impacto de declarações como esta, devido à nossa familiaridade com a pessoa do Senhor Jesus. Mas é importante tentar entender esse tipo de declaração no contexto em que ela foi originalmente proferida. Nenhum profeta de Israel ousou proferir tais palavras! Eles sempre colocavam o foco exclusivamente em Deus e bem longe deles. Jesus, no entanto, igualou as "obras de Deus" com a fé em Sua pessoa. Quão impetuoso! A menos, é claro, que Jesus seja quem Ele afirme ser nos relatos de João. Os conceitos modernistas de um profeta/professor visionário da Galiléia que era um homem bom, mas certamente não um Messias divino são ridicularizas se expostas a declarações como estas. Nenhum "homem bom" iria igualar a obra de Deus com a fé depositada nele mesmo! A imensidão desta Pessoa Divina é claramente retratada aqui, embora muitas vezes esquecida em uma leitura casual!

30 - Então lhe perguntaram: "Que sinal miraculoso mostrarás para que o vejamos e creiamos em ti? Que farás? 31 - Os nossos antepassados comeram o maná no deserto; como está escrito: ‘Ele lhes deu a comer pão do céu’".

Comentário: Se nós, os modernos, deixamos escapar a importância das palavras de Jesus, os ouvintes de sua época certamente não deixaram. Eles imediatamente responderam — observe a conexão de suas perguntas com o que foi dito antes —  pedindo por sinais e argumentando o seguinte: "Se temos que acreditar em você, precisamos de mais sinais. Você nos deu apenas um e, ainda assim, os nossos pais comeram o maná no deserto não apenas uma vez, mas por muitos anos!". Jesus terá que fazer mais do que um único jantar para poder disputar com o maná!

32 - Declarou-lhes Jesus: "Digo-lhes a verdade: Não foi Moisés quem lhes deu pão do céu, mas é meu Pai quem lhes dá o verdadeiro pão do céu. 33 - Pois o pão de Deus é aquele que desceu do céu e dá vida ao mundo".

Comentário: A citação retirada de Salmos 78: 24, dada pelo povo, identifica especificamente o Senhor como o "Ele" que havia dado o pão no deserto. Possivelmente o povo estava relacionando isso — diretamente ou por implicação — a Moisés, e, portanto, Jesus os corrige. Ou isso ou eles estão fazendo a comparação entre Ele — a quem alguns tinham dito "este é verdadeiramente o Profeta" — e Moisés, e, portanto, Jesus está corrigindo a incompreensão deles em relação a Sua pessoa. Ao invés disso, a fonte do "verdadeiro pão" é o Pai. O Pai deu o maná no deserto, mas agora está dando — tempo presente— o "verdadeiro pão do céu" que não é um alimento perecível, mas sim uma pessoa: "aquele que desceu do céu". Mais uma vez a magnitude destas palavras deve ser aproveitada. Em todo caso, as primeiras coisas —tão preciosas para o povo de Israel — são ofuscadas pela vida e pelo ministério de Jesus, e ainda mais por Sua própria pessoa! O verdadeiro pão é uma pessoa que desceu do céu. Não é de se admirar que os intérpretes liberais, que desejam manter suas opiniões míticas e"psychologizcd" sobre Jesus e sua suposta falta de conhecimento sobre Sua própria missão divina até mais tarde em seu ministério, rejeitam a historicidade da obra de João. Um homem que se descreve como alguém que "desceu do céu” obviamente tem uma visão divina acerca de suas origens!

Existe também outro paralelo — mas incompleto, é claro —: assim como o maná desceu do céu e forneceu o sustento para o povo de Deus durante a sua permanência, Jesus também desceu do céu para ser o sustento do povo de Deus — e de sua salvação. Jesus irá utilizar este tipo de simbologia dualista durante todo esse discurso, referindo-se à realidade física do maná para representar a realidade espiritual da fé nEle. Lamentavelmente, esse dualismo foi perdido pela igreja romana, que lê nesta passagem a sua própria doutrina errônea da transubstanciação, e, assim fazendo, inverte a direção que o próprio Senhor está tomando na conversa. Eles, assim como os ouvintes do primeiro século, não conseguem enxergar a realidade por trás do símbolo.

34 - Disseram eles: "Senhor, dá-nos sempre desse pão!" 35 - Então Jesus declarou: "Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá sede.

Comentário: A multidão continua em sua cegueira, incapaz de ver o verdadeiro significado das palavras de Jesus. Ainda lembrando da alimentação dos 5.000, eles clamam pelo fornecimento contínuo do pão celestial. Em resposta, Jesus é bem específico: Ele mesmo é o pão. Aquele que "vem a mim", uma clara referência à fé — como o paralelo irá mostrar —, não terá fome — daí, o pão é espiritual, não natural — e aquele que "crê em mim" nunca mais terá sede. A referência à sede parece um pouco fora de contexto aqui, uma vez que até este ponto apenas temos tratado de alimento. Mas a verdade é que não existe nenhuma dificuldade, pois Jesus não está se referindo ao consumo físico de alimentos, Ele está se referindo à necessidade espiritual. O homem tem uma necessidade espiritual — símbolo: fome e sede — e Jesus atende a essa necessidade por completo e para sempre. Os termos "vir" e "acreditar" irão se tornar "comer" e "beber" no verso 54. Existe uma clara progressão nestes termos que será registrada no comentário.

36 – Mas como já vos disse, vós me tendes visto, e contudo não credes.

Comentário: O Senhor conhece os seus corações, seus pensamentos, suas mentes. Apesar de eles terem confessado que Jesus era um profeta (verso 14), Ele sabe que eles não "creram", pois este não é o nível mais alto e mais verdadeiro de fé que João descreve em seu evangelho. Apesar de eles terem visto o pão da vida, não acreditaram nEle. Eles foram confrontados com a revelação do próprio Deus, mas não a aceitaram. No versículo 40, Jesus irá dizer que todos os que "olham" (theoron) para o Filho têm a vida eterna. Aqui Ele diz que eles têm visto (heorakate) a Ele. Mais uma vez temos aqui o dualismo de João. O que se segue, até o versículo 47, parece ser uma explicação para a rejeição por parte desses discípulos distintos (v. 66) quando confrontados com a realidade da Sua pessoa. A diferença entre aqueles que irão ficar com Jesus e aqueles que se afastam é simplesmente essa: a atração do Pai.

37 - Todo o que o Pai me dá, virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora; 38 - porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. 39 - A vontade daquele que me enviou é esta, que eu nada perca de tudo o que ele me tem dado, mas que eu o ressuscite no último dia.

Comentário: Esta seção continua o pensamento do versículo 36. Jesus apresenta a completa soberania de Deus na salvação. Todo o que o Pai dá a Jesus virá a Ele. O fator operativo em responder à pergunta do por que alguns vêm a Jesus e outros — quando expostos a mesma oportunidade — não é simplesmente a natureza da escolha do Pai. O Pai "dá" pessoas ao filho — um presente de amor, com certeza. Quando o Pai "dá" ao Filho uma pessoa, essa pessoa virá a Cristo — que é o único caminho para o Pai. Não há dúvida de que se uma pessoa é dada a Cristo — ou, usando a terminologia do verso 44, é atraída pelo Pai — ela virá a Ele. Este é o lado divino da salvação: absoluta certeza e segurança. No entanto, Jesus também menciona a resposta humana — não que o ser humano possa mudar a decisão de Deus, mas que a resposta humana também está lá. O homem não é retratado apenas como uma "coisa" pulando de um lado para outro, mas sim como uma pessoa muito importante que vem a Cristo para a salvação, e isso conforme o resultado da obra da Graça de Deus em sua vida.

Jesus continua dizendo que quando alguém é dado a Ele pelo Pai — e vem a Ele —, esse alguém está seguro em seu relacionamento com Ele. Ele nunca irá lançá-lo fora. O subjuntivo aorista de forte negação deixa claro que a suposta rejeição de quem busca refúgio em Cristo é uma impossibilidade completa e total. Que palavras bonitas para o coração do pecador! Aqueles que vêm a Cristo irão descobrir que Ele é um Senhor amoroso que nunca lançará fora os que confiam nEle!

Por que o Senhor nunca lançará fora aqueles que vêm até Ele? O verso 38 explica: o Filho veio para fazer a vontade do Pai. E qual é a vontade do Pai? Que eu não perca nenhum de todos aqueles que me deu, mas que eu o ressuscite no último dia. Será que podemos duvidar que Cristo fará aquilo que promete? Será que o Senhor Jesus irá falhar e não realizar a vontade do Pai? Aqui temos, sem sombra de dúvidas, a segurança eterna do crente. Mas note que, mais uma vez, tudo está preeminentemente equilibrado. A segurança do crente é baseada em duas coisas: a vontade do Pai de que nenhum se perca e, em segundo lugar, o fato de que aqueles que não se perdem são os mesmos que são dados ao Filho pelo próprio Pai. Assim, na realidade, há segurança no Pai — Ele nos dá a Cristo — e segurança no Filho — Ele sempre faz a vontade do Pai.

Uma observação interessante é encontrada no fato de que no versículo 37, o termo "todo" significa, literalmente, "todas as coisas" — i. e, temos um termo grego neutro não masculino. Mas na frase seguinte, onde se lê e o que vem a mim, de modo nenhum lançarei fora..., o primeiro "o" é masculino — i. e., pessoal. Para mim, isso parece ser proposital da parte de João, e a mesma diferenciação de neutro/masculino, coisa/pessoa é encontrada no verso 39. Eu acho que essa diferenciação ocorre pela seguinte razão: quando se está na perspectiva do decreto absoluto e eterno de Deus, João usa o termo neutro para se referir ao conjunto desse decreto — que inclui todos os indivíduos eleitos por Deus. Mas quando estamos na perspectiva da resposta pessoal do indivíduo, ele volta a usar o pronome pessoal masculino.

40 - Porque a vontade de meu Pai é que todo o que olhar para o Filho e nele crer tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia".

Comentário: A "vontade do Pai" para o Filho foi expressa no verso 39 e agora é expressa de forma diferente. Mais uma vez, é apresentado o equilíbrio perfeito e completo entre o papel de Deus e a resposta do homem na salvação. No versículo 39 temos a garantia do sucesso do Filho em salvar aqueles que foram dados pelo Pai. No versículo 40 temos a promessa de que todos os que olharem para o Filho e acreditarem n'Ele terão a vida eterna. Pelo que lemos acima, é evidente que muitos olham para o Filho, mas não acreditam. A diferença operativa está na atração — ou "capacitação" — do Pai. Aqui está claro que o termo "todo" refere-se aqueles mencionados no contexto imediato, ou seja, todos aqueles que o Pai deu ao Filho. Para esses, é o olhar e o acreditar que traz a vida eterna — uma vez que a atração do Pai é invisível para eles —, eles veem somente a Cristo.

Deve-se notar que uma "doutrina" excepcionalmente elevada acaba de ser apresentada aqui. Será que ela não está fora de lugar? Seria de se esperar que este tipo de ensino estivesse em Efésios ou Filipenses — ou talvez estivesse mais "em casa" nas Institutas de Calvino —, mas entre uma multidão de galileus na sinagoga de Cafarnaum? Será que realmente devemos nos assustar com o fato de que as pessoas acharam as falas de Jesus "difíceis de ouvir"? Por que então essa "doutrina elevada" se encontra aqui?

Eu sinto que a resposta dos homens, que tentava projetar um plano puramente físico a partir dos ensinamentos espirituais de Cristo — o que é demonstrado pela sua incapacidade de enxergar a realidade espiritual por trás do símbolo físico —, induziu uma explicação da parte de Jesus. Por que as pessoas respondem de maneiras tão diferentes a Suas palavras e obras? Jesus não está à procura de seguidores no nível que eles se encontravam: eles precisavam saber a verdade de sua missão. Ele veio buscar e salvar o perdido — mas não todos os perdidos. Aquele que o Pai deixa em sua própria escuridão irá responder a Cristo de maneira muito diferente daquele que foi dado a Ele pelo Pai. É hora de separar os verdadeiros dos falsos discípulos, os chamados daqueles que são caprichosamente interessados. A "doutrina elevada" não é nada mais do que a verdade em sua forma mais pura. Ela foi criada tanto para o teólogo como para o agricultor.

41 - Com isso os judeus começaram a criticar Jesus, porque dissera: "Eu sou o pão que desceu do céu". 42 - E diziam: "Este não é Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como ele pode dizer: ‘Desci do céu’?”.

Comentário: A reação humana da multidão não é surpreendente. A afirmação de Jesus finalmente a penetrar suas mentes, embora eles pareçam estar fugindo da mensagem do Senhor! Eles começam a criticá-lo por causa de Sua reivindicação de origem celeste. As perguntas são simples: Não é este Jesus, o filho de José? Podemos nos opor ao termo "filho de José", uma vez que Jesus nasceu de uma virgem, mas isso pode não estar na mente de João — ao menos não aqui. A ênfase está mais sobre o fato de que a família e as origens de Jesus eram conhecidas na sinagoga de Cafarnaum — eles conheciam a família do Senhor. Pensando em termos estritamente humanos — não entendendo a declaração do próprio João de que o Verbo se tornou carne, ou seja, da natureza dual do Senhor — como poderia este cujos pais conhecemos afirmar que "desceu do céu"?

43 - Respondeu Jesus: "Parem de fazer-me críticas. 44 - Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o ressuscitarei no último dia.


Comentário: Jesus deixa de lado as queixas e acusações dos homens ao apontar a incapacidade deles aceitarem Suas afirmações sobre si mesmo. Em termos ainda mais fortes Ele reitera que o que havia dito antes: ninguém tem a capacidade de vir a Ele a menos que o Pai o traga. A formulação é precisa: ninguém é capaz — ou dunatai, uma frase de capacidade. Como Paulo mais tarde afirma, o fato de o homem natural não ser capaz de entender as coisas espirituais é um princípio da esfera espiritual. Isso foi expresso por Jesus como a razão das pessoas serem incapazes de entender ou aceitar sua origem divina. A "atração" do Pai é absolutamente necessária. O termo helkuso é usado em outras partes do evangelho de João: quando Jesus atrai todos para Ele mesmo ao ser levantado da terra — João 12:32, embora aqui seja Jesus quem esteja atraindo — e no final do evangelho, quando Pedro "arrasta" a rede cheia de peixes para a praia. É impossível afirmar que a atração seja "universal" aqui, pois todos os que são atraídos são também ressuscitados: o Pai atrai e o Filho ressuscita aqueles que são atraídos. Isso é exatamente paralelo aos versículos 37-39 acima, só que em termos mais gritantes. Esta é a eleição de acordo com Efésios 1 e Romanos 8-9.

45 - Está escrito nos Profetas: ‘Todos serão ensinados por Deus’. Todos os que ouvem o Pai e dele aprendem vêm a mim. 46 - Ninguém viu o Pai, a não ser aquele que vem de Deus; somente ele viu ao Pai.

Comentário: Em defesa do ensino presente no verso 44, Jesus salienta que as próprias Escrituras haviam indicado isso: Isaías 54: 13 é a referência. Neste contexto Jesus está especificamente relacionando isso ao "ouvir" as palavras do Pai. "Ouvir" é mais uma daquelas palavras usadas por João de maneira dualista: alguns ouvem, mas não "ouvem". Outros ouvem e creem. Todos os que "ouvem" desta maneira — a partir do Pai — vão a Cristo. Eleição divina mais uma vez! Jesus afirma que os que ouvem o Pai e aprendem com ele, vem a Cristo, continuando a ideia principal dessa seção, i. e., de que o "Pai dá ao Filho". Mais uma vez, a resposta do homem é vir a Cristo. Este formato é visto novamente no capítulo 17, quando Jesus ora e diz: Eles — os discípulos — eram teus; tu os deste a mim, e eles têm guardado a tua palavra. A fórmula é a mesma aqui: 1 - o Pai possui os eleitos de forma soberana; 2 - Ele graciosamente dá os eleitos ao Filho; 3 - os eleitos respondem pela fé no Filho. A repetição desta verdade ao longo do livro é uma prova de sua importância para Jesus.

O verso 46 é paralelo a João 1:18: Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, o que existe eternamente no seio do Pai, o tornou conhecido. Jesus é a única avenida de conhecimento do Pai — Mateus 11:27, João 14:6. Isto tem grandes implicações no estudo de "outras" religiões, na rejeição do relativismo e no exclusivismo arraigado do Cristianismo.

47 - Asseguro-lhes que aquele que crê tem a vida eterna. 48 - Eu sou o pão da vida. 49 - Os seus antepassados comeram o maná no deserto, mas morreram. 50 - Todavia, aqui está o pão que desce do céu, para que não morra quem dele comer. 51 - Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. Este pão é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo".


Comentário: Quem crê, diz Jesus, tem — tempo presente, ação contínua — a vida eterna. A vida eterna não está relacionada simplesmente à duração da vida, mas também à qualidade de vida — não é apenas algo futuro, mas presente também. Mas no que essa pessoa "crê"? Na Bíblia a fé sempre tem um objeto — nunca existe num vácuo. A fé não é uma entidade separada com existência própria. Parece que, no contexto, o principal objeto da fé é a pessoa de Jesus Cristo — o que é visto de várias maneiras. Primeiro, no versículo 46 Ele afirma ser "aquele que vem de Deus". No versículo 48 Ele fala que é o pão da vida. Ambas as declarações são afirmações sobre quem Jesus é — e, portanto, são objetos próprios da fé. Além disso, a maior parte da tradição textual lê "crê em mim" no verso 47. Aparentemente muitos escribas posteriores viram a fé como sendo aquela exercida no Senhor Jesus, e isso se encaixa muito bem no contexto.

Após a repetida afirmação de Ele ser o pão da vida, parece que estamos voltando à conversa original depois de tratarmos (com necessidade) daquilo que diz respeito à origem da fé verdadeira: o Pai. Jesus agora recomeça a busca do tópico original. Os pais do êxodo comeram o maná no deserto e morreram, mas o pão que desce do céu — Ele mesmo — é muito superior — Ele toma a comparação anterior entre o maná e o milagre da alimentação dos 5.000 — ao maná, pois esse era simplesmente um retrato daquilo que viria posteriormente em Cristo. Aquele que "come" deste pão nunca morrerá. O "comer" aqui é paralelo ao "crer" do verso 47: qualquer tentativa de tornar isso uma ação física perde todo o propósito da fala do Senhor. Aquele que crê tem a vida eterna: quem come do verdadeiro pão do céu nunca morrerá. Comer = acreditar.

Esta fé é uma questão pessoal, pois envolve "comer" o verdadeiro pão — que é o próprio Jesus, verso 51. Comer o verdadeiro pão significa ter vida eterna, e este pão, diz Jesus, é a Sua carne "que será dada pela vida do mundo". Não é a carne de Jesus, por si só, que é o objeto aqui. É a Sua carne como dada em sacrifício que traz a vida eterna. É o sacrifício que dá a vida e não a carne simplesmente. Ao doar a Sua vida, o Filho fornece vida ao mundo. O contexto novamente exige uma interpretação estrita do termo "mundo". João usa kosmos em muitas maneiras diferentes, mas aqui está bem claro quekosmos se refere apenas aqueles que são atraídos pelo Pai, dados pelo Pai ao Filho, e que respondem pela fé no Filho. Para ser consistente, é necessária uma ênfase contínua sobre este grupo.

52 - Então os judeus começaram a discutir exaltadamente entre si: "Como pode este homem nos oferecer a sua carne para comermos?”.

Comentário: Os judeus, ainda interpretando a conversa no plano físico, e recusando seguir a Jesus acerca da verdade espiritual subjacente a simbologia de Suas palavras, começam a discutir entre si acerca disso. É intrigante que frequentemente os homens brigam entre si por causa de teologia ao invés de deixarem a Palavra decidir a questão. Isso é verdade ainda hoje. As coisas mudam muito pouco ao longo do tempo. Os homens perguntam como Jesus pode dar a sua carne para eles comerem. É claro que Jesus não está dizendo que Ele irá fazer isso. Ele está falando de Seu sacrifício vindouro, do resultante perdão de pecados e da vida eterna para todos aqueles que estão unidos a Ele.

53 - Jesus lhes disse: "Eu lhes digo a verdade: Se vocês não comerem a carne do Filho do homem e não beberem o seu sangue, não terão vida em si mesmos. 54 - Todo o que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia.

Comentário: Jesus decide descer ao nível deles em uma tentativa de levá-los até o Seu. Ele prossegue com a metáfora, já firmemente estabelecida, de "comer = crer". O único caminho para a vida eterna é através da união com o Filho do Homem. Trata-se de uma relação vital de fé com Ele, simbolizada aqui por comer sua carne e beber seu sangue. Para completar a equação, Jesus coloca "comer a minha carne e beber o meu sangue" exatamente na mesma posição de ouvir a Sua palavra e crer naquele que enviou Jesus em João 5:24, ou de serem atraídos pelo Pai em 6:44, ou de olhar para o filho e crer em 6:40, ou simplesmente de acreditar em 6:47. O resultado é o mesmo em cada caso: a vida eterna — i. e., ser ressuscitado no último dia. Por isso, nós temos aqui uma indicação clara do uso da metáfora de comer sua carne e beber seu "sangue", em João 6. Graficamente teríamos:
Portanto, a interpretação sacramental desta passagem é deixada sem fundamento algum. Obviamente, Jesus não está falando de um "sacramento" da "Eucaristia" estabelecido anos mais tarde. Sua referência a Seu corpo e Seu sangue aqui é claramente paralela à crença no filho e a atração do Pai — os mesmos temas tratados acima. Para ser consistentes devemos rejeitar uma interpretação sacramental desta passagem.

55 - Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. 56 - Todo o que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. 57 - Da mesma forma como o Pai que vive me enviou e eu vivo por causa do Pai, assim aquele que se alimenta de mim viverá por minha causa.

Comentário: A razão pela qual se pode ter vida eterna ao comer a carne e beber o sangue do Filho é, simplesmente, que o Filho é a "verdadeira comida e a verdadeira bebida". Ele é a única fonte de sustento espiritual verdadeiro. É pela fé vital que se une a Cristo (João 15:4-8). Este é o lugar onde a vida pode ser encontrada. À parte de Cristo, o crente não pode fazer nada (15:5), pois Jesus é a fonte de toda a vida. A vida vem do Pai, que é dada a nós no Filho e é nossa somente nEle e por meio dEle. Sabendo que a vida eterna vem pela fé, o comer e beber são símbolos da dependência contínua na fé em Cristo. Aqui está a chave para a vida cristã: a dependência no Senhor Jesus Cristo em todas as coisas. Não há outro caminho para a vida eterna.

58 - Este é o pão que desceu do céu. Os antepassados de vocês comeram o maná e morreram, mas aquele que se alimenta deste pão viverá para sempre". 59 - Ele disse isso quando ensinava na sinagoga de Cafarnaum.

Comentário: Este discurso fantástico termina com uma advertência solene: os pais não comeram deste pão e morreram. Será que seus ouvintes irão compreender esse aviso? João irá nos dizer que dentre os homens são poucos os que irão ouvir e crer — e isso porque eles foram escolhidos por Deus. Os homens continuarão a buscar o natural — o pão físico — e a ignorar o verdadeiro pão espiritual oferecido em Jesus Cristo.

João enraíza a extremidade oposta deste sermão na história novamente, pois estas palavras foram pronunciadas na sinagoga de Cafarnaum, um lugar real, em uma época real. O mistério do Divino proferindo estas palavras na história: o maior de todos os mistérios.

60 - Ao ouvirem isso, muitos dos seus discípulos disseram: "Dura é essa palavra. Quem consegue ouvi-la?" 61 - Sabendo em seu íntimo que os seus discípulos estavam se queixando do que ouviram, Jesus lhes disse: "Isso os escandaliza? 62 - Que acontecerá se vocês virem o Filho do homem subir para onde estava antes!

Comentário: É triste ver o uso de João do termo "discípulo" aqui: muitos tinham seguido a Jesus de uma forma que poderia ser chamado de "discipulado", mas que não era uma convicção sincera, pois não havia a "atração" ou a capacitação do Pai dentro deles. Eles ficaram "escandalizados" pela dureza das palavras de Jesus. Muitas pessoas ficam. Muitos odeiam o forte ensinamento da Bíblia. O relativismo é o veneno mortal do homem moderno. A pergunta, "Quem consegue ouvi-la?" entra na categoria de duplo uso da palavra "ouvir" no evangelho de João. Somente aqueles que "ouvem" do Pai e aprendem com Ele tem a vida eterna.

Jesus conhece os pensamentos desses discípulos superficiais e faz a eles uma simples pergunta: Se eles estão escandalizados com essas verdades básicas sobre Sua pessoa, o que eles irão fazer se o verem em Sua glória, a mesma glória que Ele compartilhou com o Pai antes de o mundo vir a existir (João 17:5)? Certamente isso seria ainda mais difícil de eles lidarem. Como Jesus disse a Nicodemos: Se eu falo com você das coisas terrenas e você não acredita, como é que você irá acreditar quando eu falar você das coisas celestiais?

63 - O Espírito dá vida; a carne não produz nada que se aproveite. As palavras que eu lhes disse são espírito e vida. 64 - Contudo, há alguns de vocês que não creem". Pois Jesus sabia desde o princípio quais deles não criam e quem o iria trair.

Comentário: Pode haver de fato uma nota de exasperação na voz de Jesus aqui. Será que nem mesmo esses discípulos entendem a diferença entre espírito e carne? Porventura, elas não entenderam a óbvia dualidade aqui? É o Espírito que dá vida — a carne não produz nada que se aproveite. Estas palavras de Jesus são espírito e vida — mas ainda assim eles não entendem, porque não acreditam. Jesus sabia quem não acreditava assim como sabia quem iria traí-lo.

65 - E prosseguiu: "É por isso que eu lhes disse que ninguém pode vir a mim, a não ser que isto lhe seja dado pelo Pai". 66 - Daquela hora em diante, muitos dos seus discípulos voltaram atrás e deixaram de segui-lo.

Comentário: O uso do tempo imperfeito aqui indica uma ação continuada — ou, neste caso, provavelmente uma ação iterativa — no passado. Jesus não disse isso a eles apenas uma vez, mas muitas vezes: "ninguém é capaz de vir a Mim, a não ser que isto lhe seja dado pelo Pai". Algumas traduções dizem "a menos que o Pai o capacite". Vir a Cristo não é o resultado de uma conversa persuasiva. Jesus foi o maior orador de todos os tempos, no entanto, muitos de seus discípulos "voltaram atrás e deixaram de segui-lo". Se o homem pudesse ser convencido desta forma, essa multidão certamente teria sido convencida. No entanto, o fator operativo estava faltando: a capacitação do Pai. A soteriologia de Jesus é, sem sombra de dúvidas, centrada em Deus. Pode-se explicitamente ver o fundamento da teologia de Paulo expresso bem aqui.

67 - Jesus perguntou aos Doze: "Vocês também não querem ir?” 68 - Simão Pedro lhe respondeu: "Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eterna. 69 - Nós cremos e sabemos que és o Santo de Deus".

Comentário: Pode-se ver o Senhor Jesus se voltando a seu pequeno grupo de discípulos. Foi um dia bem difícil para eles. Eles viram o milagre da alimentação dos 5.000 e, logo depois, o Seu Mestre rejeitar a realeza oferecida. Eles viram Jesus andar sobre as águas. Mas depois disso viram as falas mais difíceis que Jesus tinha proferido até então. Este Messias é bem diferente do que o que eles estavam esperando! Nesse momento, a grande multidão estava saindo. Muitos estão indo embora. Tudo parece estar terminando em fracasso. E Jesus se volta para eles e pergunta: "Vocês também não querem ir?".

O impetuoso Simão Pedro responde por toda a equipe de discípulos: "Senhor, para quem iremos?" Quão valiosas essas palavras devem ter sido para o Senhor! Pedro confessa que estes homens compreendiam que Suas palavras eram referentes à vida eterna, e que eles têm acreditado e conhecido — ambos no presente perfeito — que Jesus é o Santo de Deus. Que conforto isso foi ao Seu coração. Os propósitos de Deus serão cumpridos. Estes homens são alguns dos dados ao Filho pelo Pai, e o Pai está mantendo sua promessa de ensiná-los. Ele tem feito isso, e eles respondem seguindo a Cristo, mesmo estando em minoria.

70 - Então Jesus respondeu: "Não fui eu que os escolhi, os Doze? Todavia, um de vocês é um diabo!" 71 - (Ele se referia a Judas, filho de Simão Iscariotes, que, embora fosse um dos Doze, mais tarde haveria de traí-lo.).

Comentário: Há amor na voz de Jesus quando Ele fala de que escolheu estes homens. Ainda assim, mesmo aqui, a terrível traição não é deixada fora de vista. Um desses homens não entende o amor de Jesus. Um desses homens é o "filho da perdição". Somente depois de Judas deixá-los na noite da traição foi que Jesus teve total liberdade de abrir Seu coração para estes homens a quem ele amava "completamente" (João 13:1).

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Autor: Dr. James R. White
Fonte: Alpha & Omega Ministries 
Tradução/Adaptação: Erving Ximendes
Revisão: Bruno Matias