Introdução
Os debates sobre o livro de apocalipse são ad infinitum. Dentro da escatologia tupiniquim de nosso país os problemas ainda se agravam. Em geral, a escatologia brasileira é guiada e hipnotizada pelo sensacional e cinematográfico, em vez de ser guiada por uma análise séria do texto.
Então, como devemos interpretar o Apocalipse de João? Literalmente? Simbolicamente? Ambos? As próprias regras hermenêuticas para a interpretação de textos apocalípticos em geral já responde nossa questão. Entretanto, uma análise cuidadosa do próprio texto esclarece para nós o caminho que devemos tomar.
Neste breve artigo, veremos o significado e o pano de fundo de uma palavra logo no primeiro verso do livro. A palavra “semaino” (traduzida como notificar, na ARA) significando “comunicação por símbolos” será o objeto de nosso estudo. Não faremos uma análise exegética exaustiva, nem de Ap. 1.1, nem da sua alusão veterotestamentária, mas nos deteremos apenas na palavra semaino (para uma análise completa, ver Beale, 1999).
1. O significado de “semaino” (σημαίνω)
João inicia seu livro dizendo que é uma revelação (Ἀποκάλυψις) de Jesus Cristo, que pela mediação de um anjo, foi notificada a João (Ap. 1.1). A palavra que nós traduzimos como “notificou” (ἐσήμανεν) é o aoristo ativo do verbo σημαίνω. O léxico Inglês-Grego do NT traduz essa palavra como “fazer conhecer, comunicar, reportar, significar” (BAGD, 747). Todas essas definições trazem a ideia de comunicação, mas não especifica a natureza ou o modo dessa comunicação (Beale, 1999).
2. O pano de fundo de “semaino”
Para entendermos com maior precisão o significado de semaino, precisamos analisar a clara alusão ao Antigo Testamento presente em Apocalipse 1.1. O texto alude a Daniel 2.28-30, 45. As cláusulas “revelação... Deus mostrou... o que deve acontecer... e fez conhecer (σημαίνω)” aparecem juntas somente em Dn. 2 e em Ap. 1.1 (Beale, ibid.).
O σημαίνω de Daniel 2 é a tradução grega do aramaico yĕda (fazer conhecer). O modus da comunicação é definido pelo contexto, que trata sobre uma visão como uma comunicação simbólica por intermédio de um sonho. Essa natureza simbólica da comunicação é atestada em Dn. 2.45:
O contexto fala sobre o sonho que o rei Nabucodonosor teve sobre uma estátua composta de quatro partes feitas de metais diferentes (ouro, prata, bronze e ferro). Daniel interpretou cada parte como sendo grandes reinos mundiais, mas que no fim, foram substituídos/derrotados pelo reino de Deus. A revelação dada ao rei babilônico não era abstrata, mas sim pictórica (ibid.).
Portanto, João ao escolher semaino em vez de “gnorizo” (fazer conhecer), faz isso intencionalmente (e não por acaso) demonstrando a natureza simbólica dessa comunicação (o livro de Apocalipse) que é definida pela alusão à Dn. 2.
3. O uso de “semaino” no restante do NT
“Semaino” tipicamente traz a noção de comunicação por símbolos quando não tem o sentido mais geral de “fazer conhecer”, e ambos os sentidos são encontrados na LXX (Septuaginta). Dos outros cinco usos no NT, dois tem o sentido de “fazer conhecer” (At. 11.28; 25.27) ainda que um deles (11.28) tenha nuanças de comunicação simbólica (revelação simbólica do profeta).
Os três outros usos estão no evangelho de João (Jo. 12.33; 18.32; 21.19), resumindo a descrição pictórica de Jesus sobre a crucificação (ibid.). Esse evangelho usa o substantivo cognato “semeion” repetidamente para se referir aos milagres de Jesus como “sinais” ou “símbolos” de seus atributos e de sua missão (Ibid.).
4. O paralelo entre “semaino” e “deiknymi” em Ap. 1.1
A definição semântica de semaino como “comunicação por símbolos” é reforçada pelo seu paralelo com a palavra δείκνυμι (mostrar) no mesmo verso: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos...”. Embora essa palavra possa significar algum sinônimo de “fazer conhecer” em outras literaturas gregas, aqui ela tem o sentido de uma “revelação mediada por visões celestiais simbólicas comunicadas por um anjo (Beale, ibid.)”. O significado de “mostrar” para δείκνυμι é corroborado pelos outros sete usos dessa palavra em Apocalipse (4.1; 17.1; 21.9–10; 22.1, 6, 8). O que se é mostrado em cada uma delas é uma visão simbólica, e João escreve que ele “viu” (E eu vi - καὶ εἶδον) essas revelações pictóricas (p. ex. 17.3, 6; 21.22; 22.8; ibid.).
Conclusão
Tanto a semântica como o Background de semaino em Ap. 1.1 é de imensa importância para uma aproximação hermenêutica correta a esse livro. Alguns comentaristas presumem que Apocalipse algumas vezes explica o significado de suas imagens, e que, portanto, onde não há explicações, deve se interpretar conforme o sentido “natural/literal”, a menos que o contexto indique o contrário (Walvoord, Revelation, 30). Conclui-se disso que devemos interpretar Apocalipse literalmente, a menos que sejamos forçados pelo contexto a interpretá-lo simbolicamente. Entretanto, com a análise acima, concluímos exatamente o contrário. O material de Apocalipse é majoritariamente simbólico (no mínimo 1.12-20; 4.1-22.5). Obviamente algumas partes não são simbólicas, mas a essência do livro é figurativa (Ibid.).
Greg Beale (op. cit.) demonstra que há quatro níveis de comunicação em Apocalipse: 1. Linguístico (o próprio texto); 2. Visionário (as experiências visionárias de João; 3. Referencial (que consiste numa identificação histórica específica dos objetos vistos na visão) e; 4. Simbólico (é o que os símbolos nas visões conotam sobre seu referencial histórico). Então, por exemplo, em Ap. 19.7-8 a descrição textual é o nível linguístico, que pode ser lido e/ou ouvido. As imagens da noiva e do linho fino são o que João viu no nível visionário. 3. No nível referencial, a figura do casamento da noiva com o noivo se refere ao regozijo atual dos cristãos em comunhão com Cristo, provavelmente após sua segunda vinda. Finalmente, o nível simbólico se refere ao que nós determinamos ser o sentido preciso da comunhão da noiva com o noivo e da imagem do casamento em geral (o linho fino é explicitamente interpretado como sendo os atos de justiça dos santos). Pelo menos parte desse simbolismo significa a união espiritual consumada da igreja com Cristo, em Sua presença, e a celebração jubilosa associada a essa união final (Beale).
Concluímos que o próprio autor de Apocalipse (João) determina logo no primeiro verso que devemos interpretar seu livro simbolicamente, a menos que o contexto explicitamente se mostre literal (como o autor, a ilha de Patmos, as sete igrejas, etc).
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Bibliografia:
- Bauckham, Richard, "The theology of the Book of Revelation" (1993).
- W. Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich, and F. W. Danker, A Greek-English Lexicon of the New Testament. Chicago: University of Chicago, 1979.
- Beale, G. K. (1999). The book of Revelation: a commentary on the Greek text. Grand Rapids, MI; Carlisle, Cumbria: W.B. Eerdmans; Paternoster Press.
- "John´s use of the Old Testament in revelation",(1998).
***Os debates sobre o livro de apocalipse são ad infinitum. Dentro da escatologia tupiniquim de nosso país os problemas ainda se agravam. Em geral, a escatologia brasileira é guiada e hipnotizada pelo sensacional e cinematográfico, em vez de ser guiada por uma análise séria do texto.
Então, como devemos interpretar o Apocalipse de João? Literalmente? Simbolicamente? Ambos? As próprias regras hermenêuticas para a interpretação de textos apocalípticos em geral já responde nossa questão. Entretanto, uma análise cuidadosa do próprio texto esclarece para nós o caminho que devemos tomar.
Neste breve artigo, veremos o significado e o pano de fundo de uma palavra logo no primeiro verso do livro. A palavra “semaino” (traduzida como notificar, na ARA) significando “comunicação por símbolos” será o objeto de nosso estudo. Não faremos uma análise exegética exaustiva, nem de Ap. 1.1, nem da sua alusão veterotestamentária, mas nos deteremos apenas na palavra semaino (para uma análise completa, ver Beale, 1999).
1. O significado de “semaino” (σημαίνω)
João inicia seu livro dizendo que é uma revelação (Ἀποκάλυψις) de Jesus Cristo, que pela mediação de um anjo, foi notificada a João (Ap. 1.1). A palavra que nós traduzimos como “notificou” (ἐσήμανεν) é o aoristo ativo do verbo σημαίνω. O léxico Inglês-Grego do NT traduz essa palavra como “fazer conhecer, comunicar, reportar, significar” (BAGD, 747). Todas essas definições trazem a ideia de comunicação, mas não especifica a natureza ou o modo dessa comunicação (Beale, 1999).
2. O pano de fundo de “semaino”
Para entendermos com maior precisão o significado de semaino, precisamos analisar a clara alusão ao Antigo Testamento presente em Apocalipse 1.1. O texto alude a Daniel 2.28-30, 45. As cláusulas “revelação... Deus mostrou... o que deve acontecer... e fez conhecer (σημαίνω)” aparecem juntas somente em Dn. 2 e em Ap. 1.1 (Beale, ibid.).
O σημαίνω de Daniel 2 é a tradução grega do aramaico yĕda (fazer conhecer). O modus da comunicação é definido pelo contexto, que trata sobre uma visão como uma comunicação simbólica por intermédio de um sonho. Essa natureza simbólica da comunicação é atestada em Dn. 2.45:
“Porquanto viste que do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro, o grande Deus faz saber (σημαίνω) ao rei o que há de suceder no futuro. Certo é o sonho, e fiel a sua interpretação”.
O contexto fala sobre o sonho que o rei Nabucodonosor teve sobre uma estátua composta de quatro partes feitas de metais diferentes (ouro, prata, bronze e ferro). Daniel interpretou cada parte como sendo grandes reinos mundiais, mas que no fim, foram substituídos/derrotados pelo reino de Deus. A revelação dada ao rei babilônico não era abstrata, mas sim pictórica (ibid.).
Portanto, João ao escolher semaino em vez de “gnorizo” (fazer conhecer), faz isso intencionalmente (e não por acaso) demonstrando a natureza simbólica dessa comunicação (o livro de Apocalipse) que é definida pela alusão à Dn. 2.
3. O uso de “semaino” no restante do NT
“Semaino” tipicamente traz a noção de comunicação por símbolos quando não tem o sentido mais geral de “fazer conhecer”, e ambos os sentidos são encontrados na LXX (Septuaginta). Dos outros cinco usos no NT, dois tem o sentido de “fazer conhecer” (At. 11.28; 25.27) ainda que um deles (11.28) tenha nuanças de comunicação simbólica (revelação simbólica do profeta).
Os três outros usos estão no evangelho de João (Jo. 12.33; 18.32; 21.19), resumindo a descrição pictórica de Jesus sobre a crucificação (ibid.). Esse evangelho usa o substantivo cognato “semeion” repetidamente para se referir aos milagres de Jesus como “sinais” ou “símbolos” de seus atributos e de sua missão (Ibid.).
4. O paralelo entre “semaino” e “deiknymi” em Ap. 1.1
A definição semântica de semaino como “comunicação por símbolos” é reforçada pelo seu paralelo com a palavra δείκνυμι (mostrar) no mesmo verso: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos...”. Embora essa palavra possa significar algum sinônimo de “fazer conhecer” em outras literaturas gregas, aqui ela tem o sentido de uma “revelação mediada por visões celestiais simbólicas comunicadas por um anjo (Beale, ibid.)”. O significado de “mostrar” para δείκνυμι é corroborado pelos outros sete usos dessa palavra em Apocalipse (4.1; 17.1; 21.9–10; 22.1, 6, 8). O que se é mostrado em cada uma delas é uma visão simbólica, e João escreve que ele “viu” (E eu vi - καὶ εἶδον) essas revelações pictóricas (p. ex. 17.3, 6; 21.22; 22.8; ibid.).
Conclusão
Tanto a semântica como o Background de semaino em Ap. 1.1 é de imensa importância para uma aproximação hermenêutica correta a esse livro. Alguns comentaristas presumem que Apocalipse algumas vezes explica o significado de suas imagens, e que, portanto, onde não há explicações, deve se interpretar conforme o sentido “natural/literal”, a menos que o contexto indique o contrário (Walvoord, Revelation, 30). Conclui-se disso que devemos interpretar Apocalipse literalmente, a menos que sejamos forçados pelo contexto a interpretá-lo simbolicamente. Entretanto, com a análise acima, concluímos exatamente o contrário. O material de Apocalipse é majoritariamente simbólico (no mínimo 1.12-20; 4.1-22.5). Obviamente algumas partes não são simbólicas, mas a essência do livro é figurativa (Ibid.).
Greg Beale (op. cit.) demonstra que há quatro níveis de comunicação em Apocalipse: 1. Linguístico (o próprio texto); 2. Visionário (as experiências visionárias de João; 3. Referencial (que consiste numa identificação histórica específica dos objetos vistos na visão) e; 4. Simbólico (é o que os símbolos nas visões conotam sobre seu referencial histórico). Então, por exemplo, em Ap. 19.7-8 a descrição textual é o nível linguístico, que pode ser lido e/ou ouvido. As imagens da noiva e do linho fino são o que João viu no nível visionário. 3. No nível referencial, a figura do casamento da noiva com o noivo se refere ao regozijo atual dos cristãos em comunhão com Cristo, provavelmente após sua segunda vinda. Finalmente, o nível simbólico se refere ao que nós determinamos ser o sentido preciso da comunhão da noiva com o noivo e da imagem do casamento em geral (o linho fino é explicitamente interpretado como sendo os atos de justiça dos santos). Pelo menos parte desse simbolismo significa a união espiritual consumada da igreja com Cristo, em Sua presença, e a celebração jubilosa associada a essa união final (Beale).
Concluímos que o próprio autor de Apocalipse (João) determina logo no primeiro verso que devemos interpretar seu livro simbolicamente, a menos que o contexto explicitamente se mostre literal (como o autor, a ilha de Patmos, as sete igrejas, etc).
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Bibliografia:
- Bauckham, Richard, "The theology of the Book of Revelation" (1993).
- W. Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich, and F. W. Danker, A Greek-English Lexicon of the New Testament. Chicago: University of Chicago, 1979.
- Beale, G. K. (1999). The book of Revelation: a commentary on the Greek text. Grand Rapids, MI; Carlisle, Cumbria: W.B. Eerdmans; Paternoster Press.
- "John´s use of the Old Testament in revelation",(1998).
Autor: Willian Orlandi
Divulgação: Bereianos