quarta-feira, 11 de abril de 2018

LEITURA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DE LUCAS-ATOS - Roger Stronstad


Inserido na literatura do Novo Testamento, Lucas-Atos apresenta diversas características distintivas. Juntamente com o Evangelho de Marcos, no qual se baseou, e com o de Mateus, com o qual compartilha vários dados adicionais, os cristãos tradicionalmente classificam o de Lucas como um dos Evangelhos Sinóticos. A obra é, contudo, a única narrativa histórica autoconscientemente escrita e autodesignada do Novo Testamento. Dessa forma, enquanto Marcos designa seu livro sobre Jesus como um ‘evangelho’ (1.1), Lucas designa a parte I de seu livro de dois volumes como uma narrativa histórica (Lc 1.1, At 1.1). Portanto, por mais que Lucas houvesse tomado emprestado trechos dos Evangelhos, tais como os de Marcos e Mateus, ele transformou seu relato sobre Jesus em uma narrativa histórica. De fato, o livro que leva o seu nome tem muitos pontos em comum com a historiografia sagrada da antiga Israel, e até com a historiografia secular do mundo greco-romano, como ocorre com os outros Evangelhos.
O livro de Lucas é, ainda, o único do Novo Testamento a ser escrito com uma continuação, a saber, o Atos dos Apóstolos. Na realidade, Lucas e Atos são o primeiro e o segundo relatos, ou seja, o primeiro e o segundo elemento do livro com o título ligado por hífen que denominamos Lucas-Atos. Ao escrever Atos como a continuação de seu primeiro relato sobre as origens do Evangelho, Lucas fez o que nem Marcos, Mateus e tampouco João imaginaram ser necessário fazer. Pelo fato de ele escrever Atos como a continuação necessária de seu primeiro relato, a história em dois volumes sobre a origem e disseminação do Cristianismo (Lucas-Atos) é única e ao mesmo tempo (1) o livro mais extenso e (2) a maior parte do Novo Testamento.  Nenhum outro autor, nem mesmo Paulo, escreveu um texto tão longo do Novo Testamento como Lucas.
Claramente essa extensa e peculiar narrativa histórica oferece aos estudiosos um amplo e complexo conjunto de desafios interpretativos. Neste primeiro capítulo, discutirei os seguintes tópicos: (1) ler Lucas-Atos, (2) interpretá-lo e (3) aplicá-lo. Essa discussão forma a base para a exposição a seguir da doutrina lucana do povo de Deus como a profecia de todos os crentes.
Leitura de Lucas-Atos
Ler uma narrativa histórica, especificamente Lucas-Atos, não é simplesmente igual a ler outros textos bíblicos, como a Lei, o Salmos, as epístolas ou o Apocalipse. Essa leitura exige um conjunto peculiar de aptidões e sensibilidades literárias. Para ler Lucas-Atos além de uma mera história, o leitor deve estar atento à forma como Lucas estruturou sua narrativa bipartida e também às estratégias narrativas empregadas. Essas estratégias narrativas incluem, mas não estão limitadas a(o): (1) episódios programáticos, (2) inclusões, e (3) paralelismo.
A Estrutura de Lucas-Atos
Provavelmente, Lucas-Atos é o livro mais cuidadosamente elaborado de toda a literatura bíblica e, com certeza, do Novo Testamento. Por exemplo, ambas as partes desse livro (isto é, Lucas-Atos) apresentam os seguintes elementos temáticos: (1) uma narrativa ‘inicial’, (2) uma narrativa inaugural, que contém relatos sobre o dom do Espírito Santo, acompanhados de um sermão explicativo desse dom, (3) relatos de milagres confirmatórios e uma resposta de aprovação/reprovação complementar, (4) uma narrativa de caminhada e (5) uma narrativa de tentativas.
Os paralelos óbvios de estrutura entre Lucas e Atos não são mera coincidência, e sim o produto do desenho cuidadoso e habilidoso que Lucas imprimiu à obra. Ele selecionou seus dados, tanto por inclusão como exclusão, de modo que a estrutura usada em Atos faz um paralelo com a estrutura de seu [volume] predecessor, Lucas. Essa observação sobre o paralelismo entre as estruturas dos dois volumes é confirmada observando-se que, numa menor escala, Lucas relata as três caminhadas missionárias de Paulo de acordo com a mesma estrutura: (1) episódio(s) introdutórios, (2) o relato central sobre uma cidade e (3) uma série de relatos-resumo. O diagrama a seguir ilustra a estrutura comum que será encontrada nos relatos lucanos sobre as três viagens evangelísticas de Paulo:
Circuito Episódios Introdutórios
Relato Central
(Foco)
Série de Relatos
1 Ênfase na iniciativa do Espírito Santo (13.1-3) Antioquia da Pisídia (13.13-52) A caminhada se dá e termina na Antioquia, com um período subsequente em Jerusalém (14.1-15.30)
2 Ênfase na liderança do Espírito Santo (16.6-8) Filipo (16.11-40) A caminhada se dá e termina na Antioquia, com um apêndice sobre Apolo (17.1-18.28)
3 Ênfase no dom do Espírito Santo (19.1-7) Éfeso (19.8-41) A caminhada se dá e termina em Jerusalém (20.1-22.21)
Esses paralelos entre as estruturas de Lucas e Atos, de um lado, e entre as três caminhadas missionárias de Paulo, de outro, evidenciam que Lucas é um narrador cuidadoso e extremamente habilidoso.
1.2. As Estratégias Narrativas
Lucas incorpora episódios programáticos em sua estratégia narrativa para seus sucessivos relatos sobre Jesus e seus discípulos. O relato que ele faz sobre o batismo de Jesus através de seu sermão complementar explicativo na sinagoga em Nazaré é programático para o seu ministério público. Desde o primeiro momento, Lucas mostra Jesus como o profeta escatológico empoderado, liderado e ungido pelo Espírito Santo. O que é verdade no início de seu ministério público também é verdade para todo o seu ministério que se segue. A menos que alguns leitores deixem de observar a função programática da narrativa inaugural ou percam a visão disso, Lucas lhes oferece lembretes periódicos. Por exemplo, ele relata que Jesus executou ações empoderadas (Lc 5.17), que as pessoas reconhecem Jesus como um grande profeta (Lc 7.16), que Jesus ensina sobre o Espírito Santo (Lc 11.13; 12.11, 12), que Jesus instrui pelo Espírito (Atos 1.2), e, finalmente, que Jesus derrama o Espírito em seus discípulos (Atos 2.33).  Similarmente, como Jesus transferiu o Espírito de si mesmo a seus discípulos no dia de Pentecostes, a narrativa dessa data é programática para seus ministérios subsequentes no Espírito. Em outras palavras, desde o dia de Pentecostes em diante, eles são a comunidade escatológica dos profetas batizados, empoderados e preenchidos pelo Espírito. A função programática da narrativa pentecostal é amplamente reforçada pelos frequentes relatos de Lucas sobre a atividade profética dos discípulos (e suas conversões).
Na estratégia narrativa de Lucas, suas narrativas programáticas são, por sua própria natureza, comparativamente raras. Ele utiliza outra estratégia narrativa, chamada inclusão, com muito mais frequência. Inclusão é a estratégia que insere entre colchetes uma narrativa com episódios ou terminologia similares. O episódio ou termo de abertura é programático para o que se segue. O colchete de fechamento é retrospectivo, lembrando ao leitor do tema enquanto que, ao mesmo tempo, o elimina. Lucas utiliza esse recurso tanto em grande como pequena escala. Seu retrato de Jesus como o profeta escatológico ungido é um exemplo de inclusão em larga escala. Em Lc 4.18-21, o autor apresenta Jesus como o profeta anunciado que cumpre a missão do profeta Isaías (Is 61.1). Em seguida, relata que Jesus identifica-se como um profeta cujo ministério de voltar-se de seu próprio povo para outros ecoa os profetas Elias e Eliseu, que vieram de Israel para ministrar aos gentios (Lc 4.22-27). Finalmente, ele relata que os co-cidadãos de Jesus rejeitam seu filho nativo, e, de fato, tentam matá-lo (Lc 4.28-30) – a punição atribuída a um falso profeta. Esse agrupamento de episódios (Lc 4.16-30) é o colchete de abertura na estratégia de inclusão, identificando Jesus como um profeta. O colchete de fechamento é a descrição retrospectiva de Jesus como um profeta poderoso em ações e palavras, mas rejeitado pelos líderes de Israel (Lc 24.19, 20). A função dessa inclusão é informar aos leitores que Jesus é o profeta escatológico ungido do início ao fim – (Lc 4) a (Lc 24).
Lucas ainda utiliza a inclusão em menor escala. Por exemplo, ele incialmente descreve Estevão como ‘um homem cheio de fé e do Espírito Santo’ (Atos 6.5). Depois, conclui seu breve relato sobre Estevão descrevendo-o como ‘cheio do Espírito Santo’ (At 7.55). Desse modo, o autor define os ‘milagres e sinais’ de Estevão (At 6.8), seu testemunho (At 6.9-14), e sua defesa diante de Sinédrio (At 7.1-53) como sendo as ações e palavras de um profeta cheio do Espírito do início ao fim. Há, também, vários outros exemplos de inclusão, particularmente as referências lucanas ao Espírito Santo que introduzem cada uma das três viagens missionárias de Paulo com as referências introdutórias para a segunda e terceira viagens, formando uma inclusão com as referências introdutórias para a primeira e segunda viagens, respectivamente.
Os leitores de Lucas-Atos observaram há muito tempo que Lucas geralmente utiliza a estratégia narrativa do paralelismo. Esse paralelismo, como demonstramos, começa com a estrutura paralela de Lucas e Atos, incluindo paralelos entre a experiência de Jesus e a subsequente experiência de seus discípulos com o Espírito. Os paralelos estão descritos a seguir: (1) Assim como Jesus inicia seu ministério anunciado pelo Espírito Santo (Lc 3.22/4.18), os discípulos não iniciarão seus ministérios até serem batizados no Espírito (At 1.4, 5). (2) Assim como Jesus está cheio do Espírito Santo (Lc 4.1a), os discípulos estarão preenchidos com o Espírito (At 2.4). (3) Assim como Jesus está liderado pelo Espírito (Lc 4.1b), os discípulos como Felipe, Pedro e Paulo, respectivamente, estarão liderados pelo Espírito (At 8.29; 10.19; 16.6, 7 etc.). (4) Assim como Jesus está empoderado pelo Espírito (Lc 4.14), e consequentemente operará milagres e sinais (At 2.22), os apóstolos, Pedro, Estevão, Felipe, Barnabé e Paulo também operarão milagres e sinais (At 2.43; 5.12; 6.8; 8.6, 13; 14.3). Esse paralelismo revela que como Jesus transferiu seu próprio dom de profecia a seus discípulos, eles terão, como comunidade e individualmente, o mesmo tipo de ministério profético que ele próprio tinha.
Lucas retrata Estevão como a figura mais parecida com Cristo em sua longa narrativa. Ele relata a experiência de Estevão com o Espírito Santo e seu complementar ministério cheio do Espírito como paralela à experiência de Jesus com o Espírito e seu complementar ministério, sob certos aspectos incluindo, mas não limitado aos seguintes paralelos: Tanto Jesus como Estevão estão cheios do Espírito Santo (Lc 4.1a; Atos 6.5; 7.55). Depois, Jesus aumenta sua sabedoria e Estevão está pleno de sabedoria (Lc 2.52; Atos 6.3, 10). Ambos são acusados de blasfêmia (Lc 5.21; At 6.11). Ambos também são acusados de atacar o templo (Lc 21.6; Atos 6.13). Além disso, ambos morrem como profetas rejeitados (Lc 24.19, 20; At 7.51-53). Finalmente, ambos oram por seus assassinos (Lc 23.34; At 7.60). Esses e outros pontos de similaridade entre Jesus e Estevão destacam suas posições únicas no desenvolvimento da história da salvação. É por meio do ministério e morte de Jesus como o profeta rejeitado que é feita a provisão da salvação; é por meio do ministério e morte de Estevão como um profeta rejeitado que o Cristianismo começa seu decisivo rompimento com o Judaísmo, e a salvação começa a ser levada para a Samaria e, finalmente, para os gentios.
Conforme reportado por Lucas, a experiência de Paulo com o Espírito e seu complementar ministério geralmente reflete a experiência de Pedro. Por exemplo, como indivíduos e membros de um grupo, Pedro e Paulo são preenchidos com o Espírito Santo três vezes (At 2.4; 4.8, 31; 9.17; 13.9, 52) Eles também são liderados pelo Espírito (por ex. At 10.19; 13.2-4; 16.6, 7). Tanto Pedro como Paulo ministram aos gentios e são criticados severamente por isso (At 10.1-11.18; 13.1-15.38). Ambos operam milagres e sinais (At 5.12; 14.3), que inclui curar o cordeiro (Atos 3.1-10; 9.32-35; 14.8-10) e ressuscitar os mortos (At 9.36-43; 20.9-12). Na pior das hipóteses, Lucas relata esses paralelos entre Paulo e Pedro para estabelecer as credenciais de Paulo como um autêntico e legitimo apóstolo-profeta preenchido com o Espírito apesar de sua história radicalmente diferente dos outros apóstolos-profetas, como Pedro.
Claramente, ao escrever sua história de dois volumes sobre Jesus, o profeta escatológico ungido, e os discípulos e suas conversões como comunidades de profetas batizados no Espírito Santo, Lucas não simplesmente ordena eventos que se encontravam sob uma forma aleatória. A estrutura paralela de seus dois volumes revela que, consciente e cuidadosamente, ele arquitetou sua narrativa sobre a origem do Cristianismo na Galileia e Judeia, além de sua disseminação de Jerusalém à Samária e Judeia e até os confins da Terra. As estratégias narrativas, tais como os episódios programáticos, as inclusões e os paralelismos reforçam esse perfil de Lucas como o mais talentoso dos autores.
Interpretação de Lucas-Atos
Interpretar a narrativa histórica de Lucas (Lucas-Atos) não é simplesmente o mesmo que interpretar os imperativos da Lei, os lamentos ou elogios dos Salmos, as instruções circunstanciais das epístolas ou decodificar as visões do Apocalipse. Além dos princípios hermenêuticos comuns à interpretação de toda a literatura bíblica, independentemente do gênero, interpretar Lucas-Atos coloca em jogo seu próprio conjunto de diretrizes. Elas incluem, mas não estão limitadas a: (1) observar que Lucas-Atos é uma história seletiva, (2) inserir Lucas-Atos no contexto histórico da história greco-romana, e (3) observar o complexo propósito histórico-didático-teológico de Lucas.
Essa arte/ciência da interpretação, que denominamos hermenêutica, tem três elementos. Primeiro, há a faixa de pressuposições que cada estudioso traz para a tarefa de interpretar o texto. Segundo, há aqueles princípios que orientam o estudioso na tarefa da exegese. Terceiro, há aqueles princípios que orientam o estudioso na aplicação do texto à vida cristã contemporânea. Na discussão a seguir, adotarei o modelo hermenêutico que geralmente caracteriza uma interpretação protestante evangélica da Bíblia. No entanto, como estou interpretando Lucas-Atos, um texto que comporta um significado especial para minha experiência como pentecostal, e, mais, como o texto é uma narrativa histórica, um gênero sobre o qual há muita controvérsia relativamente à sua função didática, resumirei brevemente alguns pontos particularmente relevantes para a minha exposição da doutrina lucana do povo de Deus como a profecia de todos os crentes.

2.1. Pressuposições
Independentemente se ele está ou não ciente disso, cada estudioso carrega uma série de pressuposições experimentais, racionais ou espirituais ao fazer a interpretação das Escrituras. Em particular, o estudioso pentecostal, como é o meu caso, traz sua própria experiência de ser preenchido com o Espírito como uma pressuposição para o relato lucano que no dia de Pentecostes os discípulos ‘foram preenchidos com o Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas quando o Espírito lhes concedeu o dom da fala’ (Atos 2.4) e acredita que ele está justificado em entender a experiência dos discípulos sob a luz de sua própria experiência similar. Outras pressuposições são pertinentes ao estudo de Atos: primeiro, que a pneumatologia de Lucas é influenciada pela pneumatologia carismática do Antigo Testamento e é mediada para ele por meio da LXX;[1]segundo, que os dois livros, Lucas e Atos, foram escritos e publicados juntos como uma unidade literária, e, portanto, (1) cada livro compartilha o mesmo gênero, isto é, narrativa histórica (dihvghsin Lc 1.1);[2] e (2) apesar da particularidade histórica de cada livro, eles têm uma perspectiva teológica homogênea comum.
2.2. Diretrizes para Interpretar Lucas-Atos
Para a interpretação de Lucas-Atos, três diretrizes precisam ser observadas: (1) Lucas-Atos é uma história seletiva, (2) a obra deve ser inserida nos contextos histórico, político, religioso e social do mundo greco-romano. (3) o autor teve propósitos complexos ao escrever a obra.
2.2.1. Lucas-Atos é uma História Seletiva
A exemplo de seus predecessores e mentores, dos editores e historiadores da história sagrada de Jesus, Lucas não tenta dar a seu patrono, Teófilo (Lc 1.1-4; Atos 1.1-2), e a todos os leitores subsequentes de seus dois livros, uma história completa sobre Jesus, os apóstolos e seus parceiros trabalhadores, ou sobre a origem e disseminação do Evangelho. Em vez disso, a partir de sua própria participação em alguns dos eventos que ele registrou (note as passagens com ‘nós’ iniciando em Atos 16.10), e, ainda, do vasto conjunto de informações que ele coletou, o autor consegue fornecer uma história seletiva que reflete e suporta a estrutura paralela de seus dois volumes e, também, está relacionada aos propósitos complexos que governam sua escrita. Indubitavelmente, Lucas conhece muito mais do que escreve. E, no entanto, em comparação aos Evangelhos e às epístolas, ele, às vezes, conta mais do que os outros. Como ele é o autor mais prolífico do Novo Testamento, e os dados são tão imensos, as ilustrações do caráter seletivo de Lucas-Atos devem estar limitadas a poucos exemplos.
Uma comparação entre o ‘primeiro livro’ de Lucas com os Evangelhos de Mateus, Marcos e João revela que Lucas incluiu muito mais material distintivo que os outros. Por exemplo, a narrativa inicial dele (Lc 1.5-2.52) tem poucos paralelos com a de Mateus (Mt 1.18-2.33) e nenhum com os Evangelhos de Marcos ou de João, porque falta a esses dois uma narrativa da infância. Ainda, a denominada ‘narrativa de viagem’ lucana (Lc 9.5-19.27) contém muito material exclusivo, incluindo o relato da missão dos 70 (Lc 10.1-24) e uma série de parábolas, como a do Bom Samaritano (Lc 10.25-37). Além disso, a narrativa lucana da ressurreição é notoriamente independente dos relatos dos outros Evangelhos, contendo, por exemplo, o episódio do aparecimento da ressurreição de Jesus aos dois discípulos no caminho para Emaú (Lc 24.13-35) e a promessa de Jesus do empoderamento divino que esperava os discípulos em Jerusalém (Lc 24.49).
Não apenas Lucas inclui vários dados independentes e exclusivos, mas a seleção do autor também é evidente pelo que ele exclui de sua narrativa, seja ou não um fator da natureza limitada de seus dados, ou se é uma questão de sua estratégia editorial. Por exemplo, a narrativa da infância de Lucas informa pouco ao leitor sobre as vidas de Zacarias e Elizabete, agora idosos e em breve pais de João, o Batista, ou de Maria e José, que breve serão os pais terrenos de Jesus, o Filho de Deus. Depois, com a exceção da visita de Jesus a Jerusalém com seus pais quando tinha 12 anos (Lc 2.41-51), ele não conta nada sobre sua infância ou o início da idade adulta antes de seu batismo. É o silêncio tentador sobre essas e outras questões em Lucas e nos outros Evangelhos que no final provaram ser uma motivação tão poderosa na criação dos apócrifos evangelhos infantis dos séculos II e III.
O que é verdade quanto à seletividade de Lucas ao escrever seu ‘primeiro livro’ vale também para a escrita de sua continuação, o Atos dos Apóstolos. Por exemplo, dos 120 discípulos, entre homens e mulheres, que esperam o dom triplamente prometido do Espírito Santo (Lc 24.49; Atos 1.5-8), Lucas não nos informa nada mais sobre Maria, a mãe de Jesus, ou sobre a conversão e as vidas cristãs dos irmãos de Jesus. James é a única exceção a isso, e ele aparece na narrativa apenas duas vezes (At 15.12-21; 21.17-26). Ele também não conta nada a seus leitores sobre os Onze [Apóstolos] (At 1.13), exceto brevemente sobre James e João, e mais extensivamente sobre Pedro. Também mantém silêncio sobre a história do Cristianismo na Galileia, e, além disso, faz o mesmo sobre a experiência profética, carismática, das igrejas em Tessalônica e Corinto.  Finalmente, sobre a disseminação do Evangelho às três principais cidades do Império Romano, a saber, Roma, Alexandria e Antioquia, Lucas apenas conta sobre o movimento nessa última. Alexandria jamais entrou no foco de seu interesse, e Roma é o objetivo do ministério de Paulo, que, ao ser atingido, finaliza a sua narrativa.
Como essa breve pesquisa é limitada por restrições de espaço, isso claramente demonstra a seletividade trazida por Lucas na escrita de seus dois volumes. De fato, é verdade que toda histografia é necessariamente seletiva e interpretativa. E isso se consumou no caso de Lucas quando ele escreveu seu relato sobre a origem e disseminação do Cristianismo, da mesma forma que para todos os historiadores, sejam antigos ou modernos, sagrados ou seculares. Tanto no que ele inclui ou exclui em sua narrativa, Lucas relata somente aqueles ditados e eventos que se conformam a, desenvolvem ou ilustram seus propósitos.
2.2.2. Lucas-Atos deve ser Inserido no Contexto do Mundo Greco-Romano
A exemplo dos historiadores da época do Antigo Testamento que inseriram a história sagrada de Israel no contexto da história política das nações do Oriente primitivo, Lucas insere sua narrativa sobre a origem e disseminação do Cristianismo no contexto cultural, político e religioso do mundo greco-romano, que, certamente, inclui o Judaísmo palestino do período do Segundo Templo. Como Jesus e seus discípulos eram judeus na Galileia e pregavam quase que exclusivamente entre judeus na Galileia e Judeia, essa, a princípio, pode parecer ser uma questão a ser discutida. Tal observação, no entanto, é validada, em parte ao menos, pelo fato de que Jesus nasceu em Belém da Judeia em consequência de um decreto de César Augusto com base num censo que exigiu que José visitasse sua antiga moradia (Lc 2.1-7), e foi executado com a autorização de Pôncio Pilatos, o governador romano da Judeia (Lc 23.24) e pelas mãos de soldados romanos (Lc 23.33-38).
Em eventos menos dramáticos que o nascimento e a morte de Jesus sob a influência romana, a igreja novata, conforme reportado por Lucas, assentou suas raízes no vasto solo multinacional do Império Romano. Após a ressurreição e ascensão de Jesus, os discípulos ficaram inicialmente restritos à Jerusalém e à Judeia, formando uma seita dentro do Judaísmo. Assim, a Igreja antiga inicialmente teve pouco contato direto com o mundo greco-romano. Conforme reportado por Lucas, isso mudou principalmente, mas não exclusivamente, por meio das viagens missionárias de Paulo. Por exemplo, em Chipre, onde Barnabé e Saul começaram seu testemunho peripatético, eles foram convocados para comparecer diante do pró-cônsul, Sérgio Paulo (At 13.7), que acreditavam, estar maravilhado com os ensinamentos do Senhor (At 13.12). De alguma forma, passado um tempo, em Filipo, Paulo e Silas foram acusados por seus co-cidadãos de ‘proclamarem costumes que, por serem romanos, legalmente não poderiam aceitar’ (At 16.21; nota 16.37). Pouco tempo depois, em Tessalônica, Paulo e Silas foram acusados de agir ‘contrariamente aos decretos de César’ (At 17.7).
Tendo viajado de Tessalônica para Bereia e Atenas, e depois para Corinto, Paulo conheceu Áquila e Priscila, que tinham sido expulsos de Roma (49 d.C.) quando ‘Cláudio ordenara que todos os judeus deixassem a cidade’ (At 18.2). Além disso, enquanto Paulo estava em Corinto, ele foi acusado pelo pré-cônsul, Gálio, de persuadir pessoas a adorar Deus de modo contrário à Lei (At 18.12-13). Visto que Gálio foi nomeado pró-cônsul de Acaia no verão de 51 d.C., o estudioso fixou uma data para sincronizar a história do Novo Testamento com a história romana.
Do testemunho de Paulo aos povos gentios de Listra, Atenas e Éfeso (At 14.8-15; 17.16-34; 19.23-41) ao seu apelo para obter a cidadania romana para fins de proteção e justiça (p. ex., At 16.37-40; 22.25-29; 25.10) e ao longo de sua detenção em Jerusalém e posteriores prisão e julgamentos em Cesareia (At 21.27-26.32) mais a viagem para Roma (At 27-28), a interação entre o Cristianismo e a cultura greco-romana da região mediterrânea aumentaria constantemente. Teófilo e a maior parte dos leitores de Lucas-Atos no século I teriam entendido o texto sem grandes dificuldades, pois seu conteúdo fazia parte de suas experiências originais. Em contrapartida, o estudioso que interpreta Lucas-Atos no século XX deve desenvolver um conhecimento operacional da história e cultura do mundo greco-romano de modo a entendê-lo como seu autor pretendia.
2.2.3. Lucas-Atos Tem Propósitos Complexos
Era normal entre os estudiosos de outrora afirmar que a intenção autoral, ou seja, o propósito do autor de escrever um documento, é o critério essencial que governa o entendimento do texto pelo leitor.[3] Mas a questão da intenção autoral é complicada por uma série de fatores. Eles incluem se o propósito é explícito ou implícito, e se ele é simples ou complexo – ou seja, se há um propósito principal ou uma combinação de propósitos, principal, secundário e inclusive terciário. Consequentemente, há vários desafios para quem busca determinar a intenção autoral. Um deles é a tendência geral na direção do reducionismo, enfatizando um dos propósitos com a exclusão de todos os outros. Outro desafio é confundir a utilização que será dada ao documento, parcial ou totalmente, em relação ao seu propósito. O desafio mais assustador é identificar os interesses e a agenda tanto do estudioso como do autor.
Lucas-Atos é o documento mais extenso do Novo Testamento, e também apresenta duas partes e dois focos sucessivos, porém complementares. De um lado, o primeiro livro foca em Jesus. Ele está configurado essencialmente no mundo do Judaísmo, e seu tema é a origem do Cristianismo. Por outro lado, o segundo livro foca nos discípulos de Jesus e em suas conversões. Sua configuração muda progressivamente do Judaísmo para o mundo greco-romano, e seu tema é a disseminação do Cristianismo. Devido a esses fatores, a questão do propósito de Lucas, como qualquer pesquisa de literatura relevante mostrará, é problemática.[4]
Embora a questão do propósito de Lucas comprovadamente seja problemática, não se trata de um assunto que gere desespero. A resposta mais satisfatória para a questão do propósito de Lucas reside no reconhecimento de que ele seja complexo. Esse tipo de propósito não somente tem uma dimensão histórica, pois o leitor esperaria visto que o gênero adotado em Lucas-Atos é o da narrativa histórica, mas também uma dimensão didática, ou instrucional, e teológica. O autor identifica-se com esses propósitos, iniciando a obra com seu prólogo (Lc 1.1-4).
No prólogo de sua obra de dois volumes, Lucas identifica o gênero de sua escrita. Trata-se de um[a] dihvghsin  (relato, Lc 1.1); trata-se também de um[a] lovgon (relato, Atos 1.1). Esses termos identificam Lucas-Atos como narrativa histórica, e ao identificar seus documentos dessa forma, o autor imediatamente alerta seus leitores sobre o propósito histórico de seus textos. À medida que ele informa seus leitores, esse propósito histórico refere-se ‘aos acontecimentos ocorridos entre nós’ (Lc 1.1). Esses acontecimentos começam com os anúncios do nascimento de João (Lc 1.5-25) e Jesus (Lc 1.26-38) e continuam pelo encarceramento de dois anos de Paulo em Roma (At 28.30-31) – eventos nos quais ele foi um participante ocasional. Não apenas ele identifica seu gênero como narrativa histórica, mas também identifica seu histórico, ou seja, que ele tem seguido tudo [quer mentalmente ou como um participante] desde o início (Lc 1.3). O propósito histórico de Lucas é, então, narrar os eventos referentes à origem do Cristianismo e sua disseminação em um movimento ao noroeste de Roma.
Não apenas os vários propósitos de Lucas têm uma dimensão histórica, mas também uma dimensão didática ou instrucional;[5] ou seja, ele escreve para instruir Teófilo e qualquer outro leitor que subsequentemente formará seu público. Especificamente, ele escreve para convidar Teófilo e outros a obter um conhecimento confiável ou exato da verdade das coisas que já haviam sido ensinadas (Lc 1.4). Portanto, utilizando a narrativa histórica como um meio, Lucas pretende dar a Teófilo uma instrução mais confiável do que sua instrução anterior (kathchvqh”) tinha lhe fornecido.  Se considerado em seus próprios termos, Lucas faz uma declaração clara de sua intenção didática. Claramente, conforme praticado por ele mesmo, a escrita da narrativa histórica foi um meio e método de instrução confiável. Portanto, na condição de historiador, Lucas também se vê como um professor ou instrutor.
Utilizando o gênero, ou meio, de narrativa histórica, Lucas instrui Teófilo e seu público estendido sob diversos aspectos. Eles incluem, mas não estão limitados a: (1) prova de profecia, (2) precedentes e padrões, (3) relatos dos ensinamentos de Jesus, (4) relatos dos ensinamentos e preces dos apóstolos, e (5) uso de terminologia teológica estabelecida. Primeiro, Lucas usa prova de profecia periodicamente ao longo de sua narrativa. Os dois exemplos mais importantes de prova de profecia podem ser encontrados em suas duas narrativas inaugurais (ou seja, o endereço de Jesus em Nazaré [Lc 4.16-30] e o recebimento do Espírito Santo pelos discípulos [Atos 2.1-41]. Em seu endereço de Nazaré, Jesus lê um texto do profeta Isaías (Is 61.1) e declara, ‘Hoje essa Escritura foi concluída em sua audição’ (Lc 4.21). Similarmente, no dia de Pentecostes, Pedro utiliza o princípio ‘definidor’ da pesher[6]para interpretar o derramamento do Espírito Santo (At 2.2-4) com um texto do profeta Joel (At 2.17-21; Jl 2.28-32). Portanto, ao incluir, respectivamente, os dois textos de Isaías e Joel, Lucas ensina que Jesus é o profeta escatológico ungido pelo Espírito Santo e que, subsequentemente, seus discípulos se tornarão a comunidade escatológica de profetas preenchidos pelo Espírito.
Além dos ensinamentos por prova de profecia, Lucas também ensina por precedentes e padrões. Por exemplo, o testemunho de Pedro para Cornélio e sua família (At 10.1-48) é o precedente histórico que justifica a salvação dos gentios pela graça e não por ações da Justiça (At 15.6-11). Esse mesmo episódio ainda explicita o padrão do batismo no Espírito que Lucas anteriormente implicara em sua narrativa pentecostal programática. O recebimento do Espírito por Cornélio e sua família (At 10.44-48) é a mesma experiência do recebimento do Espírito pelos discípulos no dia de Pentecostes. Pedro reconhece que ‘eles receberam o Espírito tal como nós o recebemos’ (At 10.47). Depois, ele relata que o ‘Espírito Santo caiu sobre eles, tal como [Ele fez] sobre nós no início’ (At 11.15), e ‘Deus, portanto, deu-lhes o mesmo dom que havia [nos dado]’ (At 11.17). Especificamente, eles foram batizados no Espírito Santo (At 11.16), e, como consequência, ‘estavam falando em línguas e exaltando a Deus’ (At 10; 46), razão por que ‘Deus guarda testemunho a eles, concedendo-lhes o Espírito Santo, como fizera também a nós’ (At 15.8). Assim, ao relatar o derramamento do Espírito, primeiro sobre os discípulos e, subsequentemente, sobre Cornélio e sua família, e também por relatar as declarações de Pedro que conectam o ultimo dom do espírito ao primeiro, Lucas ensina que há um padrão de batismo no Espírito. Trata-se de um recebimento inaugural do dom de profecia atestado pelo sinal de falar em línguas.
Lucas ensina reportando os ensinamentos de Jesus bem como os precedentes, padrões e provas de profecia. Por exemplo, quando Jesus ensina seus discípulos a orar, o faz dizendo que o Pai daria o Espírito Santo a aqueles que pedissem-No (Lc 11.13). Em outras palavras, Jesus ensinou os discípulos a orar para receberem o Espírito Santo. Que os discípulos entenderam o ensinamento de Jesus dessa forma é evidenciado pela oração de Pedro e João que os crentes na Samaria poderiam receber o Espírito Santo (At 8.15-17). Jesus, além do mais, identificou esse dom prometido do Espírito Santo como eles sendo ‘batizados no Espírito Santo’ (At 1.4-5) e, ainda, identificou o propósito para o Espírito Santo descer sobre os discípulos. Era dessa forma que eles receberiam ‘poder’ para dar seu testemunho mundial (At 1.8). Assim, Lucas ensinou seu público sobre o Espírito Santo registrando o ensinamento de Jesus sobre o Mesmo.
Lucas não apenas ensina reportando os ensinamentos de Jesus, mas também reportando os sermões e ensinamentos dos apóstolos.  Por exemplo, em Atos 2 ele relata os sinais do derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecostes (At 2.2-4), o espanto da multidão que testemunhou esse milagre (At 2.5-1.3), e o sermão de Pedro (At 2.14-21). Em seu sermão, e na sua aplicação para os presentes (Atos 2.37-41), Pedro aponta seis pontos principais sobre o dom do espírito: (1) Esse derramamento do Espírito é seu dom escatológico (At 2.17a). (2) Ele é (potencialmente) universal – cruzando todas as fronteiras de idade, gênero e socioeconômicas (At 2.17b-18a). (3) É o derramamento do espírito de profecia (At 2.17b-18). (4) Falar em línguas é o sinal do derramamento do espírito de profecia (At 2.19, cf At 2.4). (5) Esse dom do espírito é o batismo prometido no Espírito (At 2.33, cf 1.4, 5). (6) Esse derramamento do espírito de profecia está disponível de geração a geração (Atos 2.38, 39). Lucas ensina um conjunto complexo de verdades teológicas ao reportar o sermão de Pedro.
Finalmente, Lucas ensina utilizando termos teológicos estabelecidos. Por exemplo, o termo lucano mais frequente para relatar a atividade do Espírito Santo é ‘cheio do Espírito Santo’ (pivmplhmi: Lc 1.15, 41, 67; At 2.4; 4,8, 31; 9.17; 13.9; plhrovw: 13.52). Esse termo aparece cinco vezes na LXX (embora nessa obra a forma é ejmpivmplhmi, em vez do pivmplhmi lucano); aparece individualmente na LXX em um contexto carismático (Ex 28.31; 31.3; 35.31; Dt 34.9; e Is 11.1-3).[7] Na narrativa histórica de dois volumes de Lucas sobre Jesus e seus discípulos, a terminologia ‘preenchidos com o Espírito Santo’ aparece no contexto de um ministério profético (Lc 1,15-17) ou de inspiração profética (Lc 1.41, 67; Atos 2.4; 4.8, 31; 13.9). Não apenas o termo ‘preenchido com o Espírito Santo’, mas todo termo usado por Lucas para relatar a atividade do Espírito Santo, com a única exceção da terminologia ‘batizado com o Espírito Santo’, devem ser encontrados em contextos carismáticos na LXX. Claramente, o significado desses termos não é derivado exclusivamente da narrativa lucana em si, mas sim condicionado pelo modo que esse mesmo termo é utilizado na LXX, a Bíblia de Lucas e seus primeiros leitores. E, assim, ao descrever a atividade do Espírito Santo na vida de Jesus, e nas vidas de outros homens e mulheres de Deus, utilizando terminologia septuagintaniana, Lucas ensina que essa atividade é, da mesma forma, invariavelmente carismática. Esses exemplos, que são meramente a ponta de um enorme iceberg de potenciais exemplos, ilustram os vários modos como Lucas usa a narrativa histórica para fins didáticos.
A dimensão didática do propósito complexo de Lucas é complementada por uma dimensão teológica. Ele identifica seu tema como sendo ‘tudo o que Jesus começa a fazer e ensinar’ (At 1.1, cf Lc 1.5-24.51) e, como ele continua sua narrativa sobre os atos de Jesus com uma narrativa sobre os atos dos apóstolos, Atos é por implicação o tema complementar do que os apóstolos, empoderados pelo mesmo Espírito de seus Messias, também fizeram e ensinaram. Assim, o principal tema é teológico; de modo específico, é essencialmente sobre Cristo, salvação e o Espírito Santo. Portanto, da mesma maneira que Lucas concebeu a escrita da narrativa para fins de instrução ou ensinamento, ele também concebeu a escrita da narrativa histórica para fins de ensinar a verdade teológica. Através do uso do complexo propósito histórico-didático-teológico, Lucas se coloca na tradição histórica dos editores e cronistas da história sagrada de Israel.
Essa discussão do propósito complexo de Lucas é manifestadamente elogiável pelas seguintes razões: (1) Ela escapa da carga do reducionismo. (2) Não confunde o uso pastoral imaginado ou real do público original, ou o uso apologético de Lucas-Atos com o propósito do autor por escrever esse documento. (3) Não identifica os interesses dos intérpretes subsequentes com o propósito lucano.
Aplicação de Lucas-Atos
A aplicação de um ensino direcionado com narrativa histórica (Lucas-Atos) na vida cristã contemporânea não se limita a aplicar os imperativos da Lei, os lamentos ou venerações dos Salmos, a instrução e teologia complementares das epístolas, nem as visões do Apocalipse. A aplicação de Lucas-Atos requer seu próprio conjunto de diretrizes, que incluem, mas não estão limitadas ao seguinte: (1) Aplicar o paradigma. (2) Não aplicar o que é historicamente particular. (3) Aplicar o princípio, mas não a prática.
O estudo das Escrituras é uma tarefa dupla; primeiro, interpretação, e depois aplicação. No entanto, essas duas tarefas interdependentes nem sempre são mantidas em um equilíbrio complementar. A interpretação sem aplicação é como preparar uma refeição e, depois, não comê-la; a aplicação sem interpretação é como comer os ingredientes da refeição sem cozinhá-los. A questão da aplicação é de pertinência e relevância, e contrariamente às aplicações simples que com frequência são feitas, é, talvez, a dimensão do estudo das Escrituras mais desafiadora e difícil. Portanto, da mesma forma que deve haver diretrizes apropriadas para se interpretar Lucas-Atos a fim de que o intérprete entenda o documento como Lucas pretendia que ele fosse entendido, também é necessário haver diretrizes apropriadas para se aplicar a mensagem de Lucas-Atos para que os cristãos possam fazer as coisas que Lucas pretendia que fossem aplicáveis para gerações de cristãos subsequentes àquela geração de seu público imediato.
3.1. Aplicar o Paradigma
Se considerarmos seriamente a estrutura narrativa de Lucas como uma pista para sua intenção didática, então é manifesto que cada episódio se encaixa em sua narrativa sob uma variedade de aspectos. Por exemplo, as duas narrativas inaugurais lucanas (Lc 3.1-4.30); At 1.12-2.41) são programáticas para os ministérios subsequentes de Jesus e, depois, de seus discípulos, e suas conversões. Os relatos de Lucas sobre milagres confirmatórios e as respostas de aprovação/reprovação complementares, as narrativas de viagens, e de tentativas, ilustram, desenvolvem e estendem os temas sobre o ministério profético escatológico que Lucas inseriu em suas duas narrativas inaugurais. Há um amplo e crescente consenso entre estudiosos sobre isso. No entanto, ainda temos um considerável desacordo sobre como aplicar a mensagem de Lucas sobre o dom do espírito de profecia na Igreja contemporânea.
Há duas abordagens básicas, porém antagônicas, para se aplicar a mensagem de Lucas sobre o dom do espírito de profecia para a vida cristã contemporânea. Uma abordagem, característica de muitos, mas nem todos, não pentecostais, insiste que como Lucas fez uma narrativa histórica, Lucas-Atos tem pouco a dizer para a experiência contemporânea. John R.W. Stott, por exemplo, escreve:
A revelação do propósito de Deus nas Escrituras deve ser buscada mais em seu caráter didático do que em seu caráter histórico. Mais precisamente, devemos procurar pela revelação nos ensinamentos de Jesus, e nos sermões e escritos dos apóstolos, em vez de o fazermos nas partes puramente narrativas de Atos.[8]
Similarmente, Gordon Fee afirma:
A menos que as Escrituras explicitamente nos informem que devemos fazer algo, o que é meramente narrado ou descrito jamais poderá funcionar de forma normativa.[9]
Intérpretes como Stott e Fee, que escrevem sobre ‘partes puramente narrativas de Atos’, ou sobre o que Lucas ‘meramente narrou’ têm, acredito, uma perspectiva não-lucana sobre a narrativa histórica. Ambos defendem e praticam uma hermenêutica de negação. Sob a luz da estratégia narrativa de Lucas e de seu claro e complexo propósito histórico-didático-teológico, não há ‘partes puramente narrativas’; e, além do mais, Lucas jamais ‘meramente narrou’ algo.
Contrariando os defensores desse tipo de hermenêutica, vários intérpretes, principalmente pentecostais e carismáticos, defendem uma hermenêutica de afirmação. Embora ela possa ser expressa sob vários modos, acadêmicos e populares, os defensores da hermenêutica de afirmação afirmam que o recebimento inaugural do espírito de profecia por Jesus é um paradigma para o recebimento do espírito de profecia pelos discípulos, e, além disso, afirmam que o recebimento inaugural do espírito de profecia pelos discípulos é um paradigma para novas conversões, como a de Cornélio e sua família (At 10.44-48) e dos discípulos em Éfeso (At 19.1-7), também para receberem o espírito de profecia.9 Essas afirmações são baseadas nas observações de que Pedro identifica o dom do espírito para Cornélio como o mesmo do derramamento anterior do espírito de profecia no dia de Pentecostes (At 11.15-17) e de que Lucas relata sobre os discípulos em Éfeso recebendo o Espírito em língua que ecoa e efetivamente resume sua descrição do derramamento do espírito de profecia no dia de Pentecostes – ‘eles [começam] falando em línguas [cf Atos 2.4] e fazendo profecias [cf At 2.17, 18]’. Esses estudiosos que, além de defender, praticam essa hermenêutica de afirmação também afirmam que Lucas pretende que esse paradigma sobre o derramamento do espírito de profecia seja estendido a todos os crentes, porquanto ele reportou Pedro anunciando, ‘Pois, a promessa de [que vós recebereis o dom do espírito] é para vós, vossos filhos e para todas as gerações subsequentes’ (At 2.39).
Cada intérprete de Lucas-Atos deve, portanto, decidir se a hermenêutica de negação ou a de afirmação é a que mais bem descreve a intencionalidade narrativa de Lucas.
3.2. Não Aplicar o Que é Historicamente Particular
Estreitamente relacionada à questão da estrutura e da estratégia narrativa no problema da aplicabilidade da narrativa histórica encontramos a questão da particularidade histórica. As histórias de Jesus e dos discípulos são historicamente particulares inclusive quando têm uma função paradigmática/programática. Por exemplo, tanto Jesus como os discípulos são ungidos/batizados com o Espírito Santo para inaugurar seus ministérios. Jesus, no entanto, está no [rio] Jordão quando é batizado pelo Espírito, enquanto que os discípulos estão em Jerusalém quando recebem seu batismo. Depois, a voz vinda do alto e a descida do Espírito na forma corpórea como uma pomba, são os sinais auditivos e oculares que atestam que Jesus foi ungido, enquanto que o som de uma violenta rajada de vento dos céus e as línguas de fogo são os sinais auditivos e oculares que atestam o batismo no Espírito Santo dos discípulos. Essas diferenças de particularidade histórica não significam que o recebimento inaugural do Espírito por Jesus difere funcionalmente do recebimento inaugural do Espírito pelos discípulos.
O que é verdade para o dom do espírito primeiro para Jesus (Lc 3-4) e, subsequentemente, para os discípulos (At 1-2), é similarmente verdade para os subsequentes dons do espírito reportados em Atos. Assim, as ocasiões do dom do espírito para os crentes na Samaria (At 8), a família de Cornélio, o centurião Romano (At 10), ou para os discípulos em Éfeso (At 19) são reportadas de acordo com a particularidade histórica de cada evento, e não de acordo com alguma formulação teológica. Por exemplo, o dom do espírito para os crentes na Samaria segue seus batismos por um lapso significativo de tempo e é administrado pela imposição das mãos, enquanto que o dom do espírito para Cornélio e sua família é no mesmo dia de suas conversões, e é o sinal que justifica seus batismos nas águas, e o dom do espírito para os discípulos em Éfeso segue seus rebatizados e é administrado pela imposição das mãos).  Esses episódios contrastam com o dom do espírito para os discípulos no dia de Pentecostes (que não foi administrado pela imposição das mãos). Eles apenas tinham recebido o batismo de João, e eram discípulos há menos de três anos. No entanto, cada episódio subsequente, apesar das diferenças de particularidade histórica, ilustra a extensão do mesmo dom do espírito para samaritanos, gentios e discípulos de João, como se tivesse sido recebido pelos discípulos no dia de Pentecostes. Essa conclusão é indiscutível, pois Pedro identifica explicitamente a experiência de Cornélio e sua família com a dos discípulos no dia de Pentecostes (At 11.17). Portanto, da mesma forma que o dom significou empoderamento carismático para Jesus, e para seus discípulos no dia de Pentecostes, ele também deve significar empoderamento carismático, não apenas para Cornélio e sua família, mas também para o anterior dom do espírito aos crentes na Samaria e para o último dom do espírito aos discípulos em Éfeso.
Do agora descrito, é claro que a particularidade histórica associada a esses cinco recebimentos do Espírito Santo desafia todas as tentativas de redução do dom do espírito a alguma fórmula teológica envolvendo: (1) a questão da oração, (2) o relacionamento com o batismo de João, (3) o intervalo cronológico entre a crença e o recebimento do Espírito, e (4) a administração do dom pela imposição das mãos. Portanto, nenhum desses fatores é para ser aplicado ao recebimento contemporâneo do Espírito. De preferência, esses episódios simplesmente revelam que independentemente para onde o Evangelho é disseminado, o povo de Deus pode e deve receber o empoderamento carismático do Espírito para seus serviços cristãos. Esse dom do espírito ou empoderamento carismático pode ser recebido como uma experiência individual ou como parte de uma experiência em grupo; pode ser ou não no contexto da oração; pode ser administrado pela imposição das mãos ou distante de qualquer fator humano; pode ser praticamente simultâneo com a conversão ou posteriormente a ela; e, finalmente, pode preceder ao batismo nas águas, ou segui-lo. Claramente, o recebimento contemporâneo do empoderamento carismático do espírito terá sua própria particularidade contemporânea, da mesma forma que teve sua particularidade histórica para as primeiras comunidades cristãs.
3.3. Aplicar o Princípio, Mas Não a Prática
A necessidade de distinção entre a práxis, ou seja, [a série de] práticas, da Igreja primitiva relatadas no Atos e o princípio é um exemplo particular da necessidade de reconhecimento da particularidade histórica de cada episódio na narrativa lucana. Isso é especialmente importante para a questão de que se ou não a práxis da Igreja primitiva pode ser aplicada à Igreja contemporânea e, se puder, como ela pode ser aplicada adequadamente.
Em Atos, Lucas relata várias práticas ou costumes entre os primeiros cristãos. Isso não causa surpresa, pois o Cristianismo nasceu do Judaísmo com seu legado de costumes religiosos. Com o passar do tempo, o Cristianismo se separou do Judaísmo e estabeleceu sua própria identidade, mas, no entanto, manteve muitas características essenciais da práxis religiosa do Judaísmo. Pelo fato de conhecerem Jesus como a entidade eterna do sacrifício para os pecadores, os discípulos abandonaram a dimensão sacrificial da adoração. No entanto, continuaram a perpetuar práticas ou costumes, como definir horários para orações, um encontro regular para veneração, batismo de convertidos, refeições comunitárias etc. Essas práticas foram reconhecidas como compatíveis com a expressão de suas novas vidas na era messiânica, e, a exemplo da transformação da refeição da Páscoa na Ceia do Senhor, foram transformadas e adaptadas à nova realidade cristã. Conforme reportado em Atos, as práticas da Igreja primitiva incluíam: (1) estabelecer uma liderança apropriada para a comunidade, (2) batismo nas águas (3) refeições comunitárias, (4) reuniões regulares, (5) a imposição das mãos, (6) profecia realizada por parábola, e, adicionado por alguns intérpretes, (7) falar em línguas.
A prática da fé na Igreja contemporânea refere-se à essa prática da Igreja primitiva em dois aspectos. De um lado, algumas deveriam ser perpetuadas na Igreja contemporânea; ou seja, elas são aplicáveis atravessando culturas e épocas. De modo específico, são a Ceia do Senhor e o batismo nas águas. Elas devem ser executadas pela Igreja contemporânea, pois são estabelecidas pelo Senhor. O modo e a maneira da Ceia do Senhor e do batismo nas águas, no entanto, variam com o tempo e o lugar. Os evangélicos admitem isso de facto para a Ceia do Senhor, que eles não celebram como uma refeição comum.  Os seguidores da tradição da Igreja Batista ou dos Crentes são mais relutantes em abrir concessão para o modo do batismo nas águas. Claramente, no entanto, o elemento essencial é o significado da práxis, que supera o significado do modo.
Por outro lado, várias práticas da Igreja primitiva não são comandadas pelo Senhor, e suas práticas continuadas nas Igreja contemporânea são muito mais uma questão de indiferença com o modo pelo qual podem ser realizadas. Elas incluem, entre outras, regras como definir horários de oração, horários costumeiros para as reuniões, e o(s) método(s) de estabelecimento de liderança. Em outras palavras, na Igreja contemporânea não há necessidade de rezar na nona hora (At 3.1), escolher seus líderes por sorteio (At 1.21), estabelecer liderança em unidades de 12 pessoas (At 1.16-26), ou em unidades de sete pessoas (Atos 6.3), ou deter propriedade em comum (At 2.44; 4.32-37). Essas são questões da particularidade histórica da Igreja primitiva, e a Igreja contemporânea não está sob nenhuma compulsão hermenêutica/bíblica para aplicar qualquer uma das regras da Igreja primitiva à sua própria situação.
Embora a Igreja contemporânea não tenha nenhuma obrigação de perpetuar essas práticas, elas contêm princípios obrigatórios para os cristãos contemporâneos. Por exemplo, Atos não obriga os cristãos a rezar em uma hora determinada ou costumeira, como p.ex. às 15h, mas ensina o princípio de que os cristãos deveriam rezar regularmente. De forma similar, embora Atos não obrigue os cristãos a escolher um líder por qualquer método, como o aleatório, ele ensina o princípio de que a Igreja deveria ter uma liderança propriamente estabelecida e certa organização. E mais, embora Atos não obrigue que os cristãos contemporâneos pratiquem voluntariado comunitário, é ensinado o princípio de que a Igreja, constituída de seus membros individual e coletivamente, deveria pregar seu ministério com foco nas necessidades de seus membros mais desassistidos e/ou pobres. Concluindo, de um lado os cristãos contemporâneos deverão aplicar a práxis da Ceia do Senhor e do batismo nas águas, embora o modo da prática possa ser indiferente; por outro lado, no caso dos costumes ou práticas não obrigatórias encontradas na Igreja primitiva, a Igreja contemporânea deverá aplicar preferencialmente os princípios inerentes à prática do que a própria prática.
Falar em línguas, conforme reportado por Lucas, é às vezes incluída no debate pertinente à aplicabilidade da prática da Igreja primitiva à experiência cristã contemporânea.[10] Esse tema, portanto, exige um comentário especial. Incluir a fala em línguas na discussão das regras é uma confusão de categorias. Falar em línguas, conforme reportado por Lucas (At 2.4; 10,46; 19.6), não é uma prática similar a estabelecer o governo da Igreja ou até mesmo celebrar a Ceia do Senhor ou realizar o batismo nas águas. Falar em línguas é uma realidade espiritual objetiva. Trata-se de um dom divino e não um ritual humano. Portanto, é inapropriado incluí-la em uma discussão de como aplicar práticas inseridas na Igreja primitiva à prática cristã contemporânea, pois alguns procedem dessa forma, geralmente com uma motivação implícita ou explicita de desacreditar a teologia pentecostal.
Para resumir, a questão hermenêutica da aplicabilidade da narrativa histórica, ou seja, Atos, à experiência e à prática cristã contemporânea é comprovadamente complexa. Dessa forma, essa posição hermenêutica que reduz ‘a revelação do propósito de Deus nas Escrituras… [para] seus textos didáticos, e não para seus textos históricos’, ou que assegura que ‘o que é meramente narrativo ou descrito jamais poderá operar de modo normativo’ é vista como um caso de alegação especial e precisa ser rejeitada pelo princípio arbitrário que efetivamente comporta. Quando o intérprete, tendo feito sua exegese da narrativa em Atos, aborda o desafio de aplicar a mensagem desse texto à vida cristã contemporânea, ele deverá ser orientado por várias diretrizes complementares e interdependentes: (1) aplicar as lições de uma narrativa paradigmática; (2) aplicar o princípio inerente em um episódio relevante em vez de nos detalhes da particularidade histórica; e (3) aplicar o princípio inerente em uma particular prática em vez de na prática em si. Quando aplicadas sob a luz dessas diretrizes, as narrativas de Atos enriquecerão espiritualmente as vidas cristãs contemporâneas. Entretanto, nos locais em que Atos permanecer impedido de ter uma relevância contemporânea por conta de uma hermenêutica hostil ou contrária à aplicabilidade contemporânea da narrativa histórica, continuaremos a ter um empobrecimento espiritual.
Ler, interpretar e aplicar Lucas-Atos sob os aspectos ora discutidos – e há outros aspectos, ainda mais sofisticados -, denota ser uma tarefa incrivelmente enriquecedora e iluminadora. Consegue desdobrar em novos e refrescantes meios a mensagem de um quarto do Novo Testamento, e possibilita ao leitor descobrir propósitos históricos-didáticos-teológicos de Lucas suprimidos por uma hermenêutica de narrativa histórica mais tradicional. Uma das maiores descobertas é a teologia carismática de Lucas, mais especificamente seu retrato do povo de Deus como a profecia de todos os crentes.
Tradução: Celso Paschoal
NOTAS
[1]Roger Stronstad, ‘A Influência do Antigo Testamento na Teologia Carismática de São Lucas’, Pneuma 2.1, pp. 28-50, (32-50); idem, The Charismatic Theology of St Luke (Peabody, MA: Hendrickson, 1984), pp. 17-20.
[2] Contra Gordon D. Fee e Douglas Stuart, How to Read the Bible for All its Worth; A Guide to Understanding the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1982), p. 90. Fee escreve que ‘Atos é o livro especial do Novo Testamento’, e essa é uma declaração surpreendente de um defensor da hermenêutica de gênero. É surpreendente, pois o termo lucano dihvghsin/narrativa (Lc 1.1) aplica-se a toda a história contida nos dois volumes. Assim, Lucas e Atos têm o mesmo tipo de gênero – o único título dessa espécie no Novo Testamento.
[3] G.D. Fee, ‘Hermenêutica e Precedente Histórico: Um Problema Importante na Hermenêutica Pentecostal’, em Russel P. Spittler (ed.), Perspectives on the New Pentecostalism (Grand Rapids: Baker Book House, 1976), pp. 118-32 (125-26); Fee e Stuart, How to Read the Bible, pág. 89.
[4] Cf. Robert Maddox, The Purpose of Luke-Acts (Edimburgo: T. & T. Clark, 1982); W.W. Gasque, ‘Um Campo Frutífero: Estudo Recente dos Atos dos Apóstolos’, adendo a idem, A History of the Interpretation of the Acts of the Apostles (Peabody, MA: Hendrickson, 1980), pp. 342-59; e I. Howard Marshall, ‘O Presente Estado dos Estudos Lucanos’, Themelios 14.2 (1989), pp. 52-57.
[5] Fee minimiza o propósito didático da narrativa de Lucas. Ele escreve, ‘para um precedente bíblico justificar uma ação presente, os princípios da ação devem estar ensinados em outras partes, em que há a intenção primária de ensinar’ (‘Hermenêutica’, pp. 128-29); Fee e Stuart, How to Read the Bible, p. 101.
[6] Pesher (pl. pesharim) é uma palavra hebraica que significa “interpretação”, com o sentido de “solução”. Tornou-se conhecida a partir de um grupo de textos encontrados entre os Pergaminhos do Mar Morto. [N.E]
[7] Utilizo o termo “carismático’ aqui e ao longo de todo o livro com o específico e limitado contexto do ministério de uma pessoa empoderado pelo Espírito Santo.
[8] John R.W. Stott, Baptism and Fullness (Londres: Inter-Varsity Press, 1975), pp. 8-9. Em resposta às minhas críticas do que ele escreveu aqui, Scott esclareceu e qualificou sua posição em seu recente comentário, The Spirit, the Church and the World (Downers Grove, IL: Inter-Varsity Press, 1990). Ele escreve: ‘Não estou negando que narrativas históricas tenham propósito didático, pois, certamente, Lucas era um historiador e teólogo; o que estou afirmando é que o propósito didático de uma narrativa nem sempre é aparente na própria obra e, portanto, geralmente precisa da ajuda interpretativa de algum outro ponto nas Escrituras’ (p. 8). Essa declaração representa uma mudança significativa em relação ao que ele escrevera em seu anterior trabalho, Baptism and Fullness. No entanto, até que Stott efetivamente declare como a narrativa histórica opera de um modo didático e teológico, ele não descartou realmente a impressão que havia deixado a seus leitores, isto é, que a narrativa histórica efetivamente transmite o propósito de Deus para os leitores posteriores das Escrituras.
[9] Em Fee e Stuart, How to Read the Bible, p. 97.
10 Fee e Stuart, How to Read the Bible, p. 88. Fee inclui a ‘prática’ do batismo do Espírito Santo acompanhada pelo falar em línguas e juntamente com práticas como o batismo, a Ceia do Senhor, a política da Igreja, etc..
Via: Teologia Carismática

terça-feira, 10 de abril de 2018

Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? - D. M. Lloyd Jones

Nestes versículos, 25 a 30 (Mateus capítulo 6), temos estado a considerar a declaração geral de nosso Senhor no que concerne ao terrível perigo que nos ameaça nesta vida, devido à nossa tendência de nos interessarmos exageradamente, e de várias maneiras, pelas coisas deste mundo. Tendemos por ficar ansiosos acerca de nossa vida, acerca do que comeremos, acerca do que beberemos, e também por ficar ansiosos acerca do corpo, quanto àquilo que vestiremos. É assustador observar-se quantas pessoas parecem viver inteiramente dentro desses estreitos limites: alimento, bebida e vestuário parecem representar a totalidade de sua vida. Passam todo o seu tempo disponível pensando sobre essas coisas, falando sobre elas, discutindo com outros a respeito delas, argumentando e lendo acerca delas em vários livros e revistas. E este nosso mundo está se esforçando ao máximo para que todos vivamos exclusivamente nesse nível. Demos uma olhada casual nas estantes das livrarias e verificaremos como essas coisas são abundantemente providas. Pois essa é a mentalidade do mundo, e nisso se resume o seu interesse. Os homens vivem para essas coisas, e ficam preocupados e apreensivos acerca delas de diversas maneiras. Sabendo disso, pois, e tendo plena consciência desses perigos, nosso Senhor primeiramente nos fornece uma razão abrangente para evitarmos essa armadilha.
Todavia, tendo-nos advertido que não devemos ficar ansiosos acerca do que comeremos, beberemos ou vestiremos, em seguida Cristo prosseguiu dando uma consideração separada para cada aspecto da questão. O primeiro desses aspectos é considerado nos versículos 26 e 27, abordando nossa existência, a continuação e o sustento de nossa vida neste mundo. Eis o argumento: “Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida?” (v. 26 e 27). Alguns estudiosos preferem pensar que o versículo 27 pertence à seção seguinte; mas parece-me perfeitamente claro que, por razões que abordaremos a seguir, esse versículo necessariamente pertence à presente seção. No que concerne à questão inteira da alimentação, bem como da manutenção da vida, nosso Senhor nos proveu um duplo argumento, ou, se você assim o preferir, dois argumentos principais. O primeiro deles deriva-se das aves do céu. Pode-se notar que, neste ponto, o argumento do Senhor Jesus já não se alicerça sobre a ideia do maior em relação ao menor; antes, dá-se justamente o contrário. Tendo estabelecido a proposição em um nível inferior, Ele então eleva-se a um nível superior. Antes de tudo, Ele começa fazendo uma observação geral, chamando a nossa atenção para algo que é um fato da vida neste mundo. “Observai as aves do céu...” Olhai para elas. “Observar”, neste caso, é verbo que não implica em intensa contemplação. Jesus meramente pedia que olhássemos para uma coisa que sucedia diante de nossos olhos. Veja o que está diante de você – esses pássaros, essas aves do céu. Qual é o argumento que podemos deduzir dessas aves? É que essas aves, como é evidente, têm sua alimentação garantida pela providência divina.
Há uma grande diferença entre os modos de como as aves e os homens são sustentados. No caso das aves, esse alimento lhes é providenciado. No caso do homem, um determinado processo está claramente envolvido. O homem lança a semente na terra, e mais tarde colhe a safra resultante da semente que fora semeada. Então, o homem recolhe o produto da terra em celeiros, a fim de guardá-lo até momento de necessidade. Esse é o método de que o homem se utiliza; e é o método certo para o ser humano. Foi assim que Deus ordenou ao homem, após sua queda no pecado: “No suor do rosto comerás o teu pão...” (Gênesis 3:19). Lá nos primórdios da história, Deus determinou o tempo da semeadura e o tempo da colheita; isso não foi determinado pelo homem, em razão do que a semeadura, a colheita e o armazenamento do produto da terra em celeiros são atividades perfeitamente legítimas para o homem. Espera-se do homem que ele faça isso, e é assim que lhe cumpre viver neste mundo. Eis a razão pela qual a injunção “não andeis ansiosos” não pode significar que devamos sentar-nos a esperar que o nosso pão chegue miraculosamente pela manhã. Isso não é bíblico, e todos quantos imaginam que isso corresponde à vida da fé compreenderam muito mal o ensinamento bíblico.
Não obstante, o ser humano jamais deveria preocupar-se com essas coisas. Não deveria passar a totalidade do seu tempo perscrutando o céu, indagando como serão as condições atmosféricas, ou se haverá alguma coisa para armazenar no seu celeiro. É precisamente esse tipo de preocupação que o Senhor Jesus condenou. O homem precisa semear; foi Deus quem lhe ordenou que assim fizesse. Contudo, ele deve depender de Deus, o único Ser capaz de lhe conferir prosperidade. Nosso Senhor chama a nossa atenção para as aves. Nada existe de tão patente quanto o fato que elas são mantidas com vida, e que o alimento é fornecido a elas pela natureza – vermes, insetos e todas aquelas coisinhas que constituem o regime alimentar dos pássaros. Na natureza, tudo isso está à espera deles. De onde provém esse sustento? A resposta é que Deus provê para as aves o seu sustento diário. Aí, pois, está um fato simples da vida, e Cristo pede de nós que consideremos essa realidade. Essas pequenas aves, que não fazem provisão, no sentido de prepararem ou produzirem o alimento por si mesmas, recebem a provisão necessária. Deus cuida delas, e delas não se olvida. Deus providencia para que haja alguma coisa para as aves se alimentarem. Deus providencia para que a vida dos pássaros seja sustentada.
Essa é a simples declaração do fato. Em seguida, nosso Senhor toma esse fato e extrai daí duas deduções vitais. Deus trata os animais e as aves dessa maneira, mediante a Sua providência geral, e nada mais. Deus, porém, não é o Pai celeste dessas aves: “Observai as aves do céu... contudo, vosso Pai celeste as sustenta”. Essa é uma interessantíssima observação. Deus é o Criador e o Sustentador de tudo quanto existe no mundo; e Ele trata do mundo inteiro, não apenas do homem, através de Suas providências gerais, agindo dessa forma no tocante à natureza. Então é notória a sutil modificação na linguagem de Jesus, introduzindo o mais profundo argumento de todos: “contudo, vosso Pai celeste as sustenta”.

Trecho extraído do livro: D. M. Lloyd Jones, Estudos no Sermão do Monte , edição comemorativa da Editora Fiel

Os perigos de um evangelho ultra simplificado - John MacArthur






O que precisa ser transmitido aos incrédulos para que possam entender e abraçar a salvação?
Muitas das tendências modernas no evangelismo propendem a adotar uma abordagem minimalista para a questão. Infelizmente, o desejo legítimo de expressar o coração do evangelho deu lugar a um esforço menos saudável. É uma campanha para destilar os elementos essenciais da mensagem para os melhores termos possíveis.
O glorioso evangelho de Cristo – que Paulo chamou de “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Romanos 1:16) – inclui toda a verdade sobre Cristo. Contudo, o evangelicalismo atual tende a considerar o evangelho como um “plano de salvação”. Reduzimos a mensagem para uma lista de fatos declarados nas palavras mais triviais possíveis: “Seis Passos para a Paz com Deus”. “Cinco coisas que Deus quer que você conheça”. “Quatro Leis Espirituais”. “Três verdades com as quais você não pode viver”. “Duas maneiras de viver”. Ou, “Um Caminho Para o Céu”. (Esta não é uma crítica a essas apresentações específicas, mas é meramente uma observação que parecemos ansiosos para produzir e usar como “planos de salvação” que enumeram e consolidam a mensagem do evangelho).
Outra tendência, igualmente perigosa, é reduzir o evangelismo a um script memorizado. Muitas vezes, o treinamento de evangelismo consiste em fazer com que os cristãos memorizem uma série de perguntas, antecipando que cada pergunta cairá em uma das poucas categorias que tem uma resposta pré-planejada.
Todavia, o evangelho não é uma mensagem que pode ser capsulada, abreviada, encolhida e depois oferecida como um remédio genérico para todo o tipo de pecador. Os pecadores ignorantes precisam ser instruídos sobre quem é Deus e por que Ele tem o direito de exigir obediência deles. Os pecadores justos devem ter o seu pecado exposto pelas demandas da lei de Deus. Os pecadores despreocupados precisam ser confrontados com a realidade do julgamento iminente de Deus. Os pecadores temerosos precisam ouvir que Deus, em Sua misericórdia, forneceu um meio de libertação. Todos os pecadores devem entender o quão Deus é completamente santo. Eles devem compreender as verdades básicas da morte sacrificial de Cristo e o triunfo de Sua ressurreição. Eles precisam ser confrontados com a exigência de Deus de que eles se voltem do seu pecado para abraçar Cristo como Senhor e Salvador.
Além disso, em todos os casos que Jesus e os apóstolos evangelizaram – seja ministrando a indivíduos ou multidões – não houve dois incidentes em que eles apresentaram a mensagem precisamente na mesma terminologia. Ambos sabiam que a salvação é uma obra soberana de Deus. O papel deles era pregar a verdade, pois o Espírito Santo é quem aplica a mensagem individualmente aos corações dos Seus eleitos.
A forma da mensagem será diferente em cada caso. Mas o conteúdo deve sempre conduzir ao lar da realidade da santidade de Deus e da condição impotente do pecador. Então, aponte os pecadores para Cristo como um Senhor soberano, mas misericordioso, que pagou a expiação total por todos os que se voltam para Ele em fé.
Os cristãos de hoje são muitas vezes advertidos sobre o perigo de falar demais para os perdidos. Certos problemas espirituais são rotulados como tabu ao falar com os não-convertidos, como a lei de Deus, o senhorio de Cristo, o arrependimento, a rendição, a obediência, o julgamento e o inferno. Tais coisas não devem ser mencionadas, para que não “adicione algo à oferta do presente gratuito de Deus”.
Pior ainda, há alguns que levam esse evangelismo reducionista ao seu extremo mais distante. Aplicando erroneamente a doutrina reformada do sola fide (somente a fé), eles fazem da fé o único assunto permitido para falar aos não-cristãos sobre o dever perante Deus. Assim, eles tornam a fé completamente sem sentido, extraindo-a de tudo, exceto de seus aspectos nocionais. Isso, alguns acreditam, preserva a pureza do evangelho. Mas o que realmente faz é diminuir o poder da mensagem da salvação.
Falsos convertidos também habitam na igreja, cuja fé é falsa e cuja esperança mantém uma falsa promessa. Dizendo que “aceitam a Cristo como Salvador”, eles descaradamente rejeitam Sua legítima reivindicação como Senhor. “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Marcos 7:6). “Afirmam que conhecem a Deus, mas o negam por meio do que fazem; é por isso que são abomináveis, desobedientes e reprovados para qualquer boa obra” (Tito 1:16). Aproximam-se de Cristo superficialmente chamando-o de “Senhor, Senhor!” (Lucas 6:46). Tais pessoas se encaixam na descrição trágica dos “muitos” em Mateus 7:22-23, que no dia final ficarão  aterrorizados ao ouvir Jesus dizer: “Eu nunca conheci vocês. Afastem-se de mim, vocês que praticam o mal”.
Se não há uma descrição simples para uma conversa evangelística, então, o que o evangelista deve falar ao proclamar o evangelho? Quais são os pontos que precisamos deixar claros se quisermos articular o evangelho tão precisamente quanto possível? A santidade de Deus, a depravação do homem, a obra de Cristo e as determinações de Deus sobre o pecador. Estas são verdades que precisamos abraçar como povo de Cristo e dominar como suas testemunhas.

Fonte: Grace to You
Tradução: Leonardo Dâmaso
Via: Reformados 21

O Retorno à Escravidão - R.J.Rushdoony

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Um dos erros mais prevalecentes é a tendência de considerar a escravidão como um aspecto basicamente da história passada, sobrevivendo no século vinte apenas como uma relíquia. Mas a escravidão, um fato importante em toda a história, não é um fato consumado. A escravidão é um fato importante da condição humana, um fator contínuo, e um aspecto inescapável do presente cenário.
Três formas de escravidão devem ser distinguidas. Mas, antes dessas formas poderem ser analisadas, é importante definir em primeiro lugar o que é escravidão. A definição comum é que escravidão é “a propriedade do homem sobre o homem”. Essa definição, contudo, como John Murray assinalou, é defeituosa; além do mais, casamento e paternidade, bem como os poderes de um Estado sobre os seus cidadãos, envolve uma propriedade do homem sobre o homem. Mas a definição é muito ampla, e evita o aspecto básico da escravidão, o trabalho. De acordo com Murray, “escravidão é a propriedade do homem sobre o trabalho de outro”. Sob certas condições, tal propriedade no trabalho de outro é apropriada e legítima. “Acaso vamos dizer que é impróprio o credor ter propriedade no trabalho do devedor até que a dívida seja paga?” Além disso,
A propriedade de alguns homens sobre o trabalho de outros e a propriedade de instituições no trabalho daqueles que estão associados com elas é algo do qual não podemos nos livrar. O empregador tem propriedade sobre o trabalho de seus empregados; a presença de contrato não elimina esse fato. Uma vez que o contrato é celebrado, o trabalhador está obrigado a realizar o trabalho como contratado. O Estado tem propriedade sobre o trabalho dos cidadãos. Nesse caso não é por contrato; é uma necessidade inerente na instituição. Às vezes, um grande número de cidadãos são compelidos, durante muito tempo, a prestar serviço e tempo integral ao Estado sob condições muito mais rigorosas, e envolvendo muito mais risco à vida e à propriedade, que as condições em que os escravos podem ser chamados a servir aos seus senhores. Não é necessário multiplicar os exemplos. Propriedade sobre o nosso trabalho por parte de outros é um fato da nossa estrutura social. E não devemos ser ingênuos a ponto de pensar que podemos abstrair nosso trabalho das nossas pessoas. Se outro tem propriedade sobre o nosso trabalho há um ponto em que, ou um aspecto do qual isso deve ser considerado como propriedade sobre nossas pessoas. E sabemos muito bem que isso não é violação do nosso ser, personalidade, direito ou privilégio. É uma necessidade da nossa natureza e da organização social da raça humana. Não há necessidade de pensar que a propriedade de outro sobre o nosso trabalho ou, nesse ponto, sobre a pessoa envolvida nessa relação de serviço, seja uma violação do que é intrínseco à personalidade, e somos capazes de ver a limitação que o Novo Testamento faz, ditada pelos princípios dos quais a Escritura é o guia.[1]
Em termos dessa definição, examinemos as três formas de escravidão, em primeiro lugar, na forma de propriedade privada de escravos.
Na forma bíblica, a escravidão era uma forma de serviço obrigatório. O termo “servo” ou “escravo” era usado para descrever qualquer pessoa que devesse serviço a outra pessoa, permanente ou temporariamente. Dessa forma, Davi e Daniel se descreveram como servos de Deus (Sl 27.9; Dn 9.17), e a virgem Maria descreveu-se como “a serva do Senhor” (Lucas 1.38). A escravidão bíblica era uma forma de associação e proteção feudal. O roubo de homens para propósitos de venda era estritamente proibido pela lei, de forma que aquilo que é popularmente conhecido como escravidão era crime hediondo (Dt 24.7), e Paulo reafirmou essa condenação e associou os “roubadores de homens” com os “devassos”, homossexuais, mentirosos, perjuros e hereges (1Tm 1.10). A menos que o fugitivo fosse um ladrão, um escravo poderia deixar a casa do seu senhor e poderia permanecer legalmente com qualquer pessoa em cuja casa ele tomasse refúgio (Dt 23.15, 16). O escravo tinha que ser tratado com respeito e cuidado (Lv 25.39). O princípio bíblico, “Digno é o obreiro do seu salário” (1Tm 5.18; Dt 25.4; 1Co 9.9; Lv 19.13; Dt 24.14s; Mt 10.10; Lucas 10.7), não é limitado somente ao trabalho livre; ele aplica-se a todos, escravos ou livres.
Um hebreu se tornava um escravo em termos estritamente regulados que exigiam que um companheiro de fé o tratasse como um irmão (Lv 25.39-43, 47-55). Um hebreu tornava-se um escravo, se, por achar difícil manter-se como um cidadão independente, vendesse seu trabalho a outro (Lv 25.39). Ele poderia tornar-se um escravo também por causa de roubo; a lei exigia restituição, de duas a cinco vezes, e se um ladrão não pudesse cumprir esses requerimentos, então ele era vendido por causa de seu roubo (Ex 22.3). Ele era então vendido como servo está que a restituição designada pela lei fosse cumprida. Os filhos assumiam a condição dos pais, escravo ou livre (Ex 21.14). Os hebreus escravos eram libertados a cada ano sabático, ou a cada sete anos (Ex 21.2; Dt 15.12), e o servo tinha que receber certa compensação que o capacitasse a iniciar sua liberdade com alguma posse (Dt 15.13, 18). A inobservância da lei do prazo sexenal era uma ofensa severa aos olhos de Deus (Jr 34.13-17). Se o servo hebreu não tivesse nenhum desejo de ser liberto e considerasse a casa do seu senhor como seu santuário, sua orelha era furada como sinal dessa sujeição e ele permanecia um escravo ou servo (Ex 21.6; Dt 15.17). No jubileu, todos os escravos, hebreus ou não, eram libertados, incluindo aparentemente aqueles com orelhas furadas (Lv 25.10). Escravos não hebreus poderiam recuperar sua liberdade a qualquer momento, bem como escravos hebreus, mediante resgate com dinheiro, ou se seu senhor os ferisse, mesmo que o golpe simplesmente arrancasse um dente (Ex 21.6; Lv 19.20). O assassinato de qualquer homem, escravo ou livre, era uma ofensa séria (Lv 24.17, 29; Nm 35.31-32). A lei bíblica, dessa forma, era tal que torna-se compreensível o motivo pelo qual Lindsay prefere chamá-la de serviço obrigatório, e não escravidão.[2]
A partir da perspectiva bíblica, portanto, a escravidão não é intrinsecamente má em si mesma; o fracasso em viver como um homem livre, a dependência ou incompetência de uma mente escrava é, contudo, considerada como um caminho inferior. O crente não pode se revoltar contra a sua situação, mas ele não pode tornar-se um escravo em boa consciência, voluntariamente, pois qualquer forma de escravidão é uma violação dos direitos plenos de Cristo sobre ele (1Co 7.22, 23).
A apropriação privada de trabalho escravo na América do Sul tem sido assunto de extensa distorção. Os negros eram escravos de seus chefes tribais na África, ou escravos-prisioneiros de outras tribos. A unidade monetária na África negra era o homem, o escravo. O negro passou de uma escravidão especialmente severa, que incluía o canibalismo, para uma forma mais branda. Muito é dito sobre os horrores dos navios escravos, muitos dos quais eram extremamente ruins, mas é importante lembrar que os escravos eram uma carga valorosa e assim, uma propriedade normalmente manuseada com consideração. Um membro da comissão canadense legislativa registrou em 1847 que os imigrantes irlandeses estavam sendo transportados em navios carregados com o dobro de passageiros que o navio deveria levar, encolhidos em baixo das plataformas, com pouquíssima água e comida, e em condições “tão ruins quanto aquela do comércio escravo”.[3] A condição dos imigrantes irlandeses na chegada foi muito pior do que a dos escravos: eles não tinham nenhum senhor para alimentá-los ou vesti-los ou protegê-los. Os irlandeses mudaram de uma semi-escravidão na Irlanda para liberdade na América apenas uns poucos anos antes dos negros conseguirem emancipação. Após um século e um quarto, ou menos, os irlandeses eram um poder de liderança nos Estados Unidos, e os negros permaneceram nas posições mais baixas. A diferença básica entre os irlandeses e os negros não foi a cor: foi o caráter. Os negros exigiam maior cuidado, i.e., mais escravidão e assistência a escravos, e se abrigavam em seus sofrimentos.[4] Os irlandeses por sua vez olhavam para o presente e o futuro e ajudaram a modelar a América. Essa é uma diferença significante que não pode ser explicada completamente por cor ou ambiente. Os chineses também chegaram aos Estados Unidos sob circunstâncias muito difíceis e as sobrepujaram similarmente.
É importante observar também que os defensores sulistas da escravidão que precederam a Guerra Civil tiveram parte também na esperança de uma nova colonização. Em outras palavras, eles defendiam a legitimidade da escravidão americana enquanto esperavam terminá-la com emancipação e nova colonização. Muitas dessas sociedades existiam no Sul. O título de um livro do período é revelador: Bible Defense of Slavery; or the Origin, History, and Fortunes of the Negro Race [Defesa Bíblica da Escravidão; História, e Destino da Raça Negra], de Josiah Priest, to which is added a Plan of National Colonization, adequate to the entire remove of the free Blacks and all that may hereafter become free [à qual é adicionada um Plano de Colonização Nacional, adequada para a remoção total dos negros livres e de todos os que venham daqui em diante a se tornarem livres], de Rev. W. S. Brown, 1853. Alexander H. Stephens, vice-presidente da Confederação, observou que ele tinha que trabalhar para apoiar os seus escravos, alguns dos quais eram na verdade seus pensionistas e alvos de suas obras de caridade.[5]
Um retrato da escravidão em suas piores formas é em geral uma descrição dos mundos africano e muçulmano. Os abusos nessas áreas são muito reais.[6] Por outro lado, não poucos senhores são governados por seus escravos mesmo nessas culturas. Dessa forma, Fortie observou:
Os idosos árabes gentis da África Oriental eram governados por seus escravos. Eles aceitavam as repreensões e iras das suas mulheres bantus como visitações de Alá. Essas mulheres eram frequentemente as mães dos seus filhos. Consideradas meros campos arados que produziam uma descendência de sangue puro, elas eram seres humanos adoráveis, que possuíam e despertavam sentimentos de ternura, de modo que aquilo que era uma ficção expediente, na prática deu lugar às realidades de uma longa vida em comum.[7]
O viajante que passa, ou o estudioso, vê os males óbvios; o homem que permanece vê os fatores humanos que alteram todos os relacionamentos.
O direito de posse privada sobre o trabalho humano é menos comum e tem geralmente sido o aspecto menor da escravidão humana. Nos Estados Unidos, o direito de posse privada foi abolida pela Décima Terceira Emenda, em 1865, que declarava, na seção I, “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição por um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Com essa lei, a posse privada de escravos foi abolida, e com a Décima Sexta Emenda (1913), o Ato de Reserva Federal, e pelas interpretações da Corte Suprema, a escravidão tornou-se um monopólio do Estado.[8]
Essa é a segunda forma de escravidão, posse do Estado, que é bem mais prevalecente hoje e em cada era da história do que a primeira. As “glórias” do mundo antigo foram os produtos do trabalho escravo do Estado. Hoje, os países comunistas tornam todos os cidadãos escravos. Visto que escravidão é a propriedade sobre o trabalho do homem, sempre que essa propriedade sobre o trabalho torna-se a força determinativa e necessária na vida das pessoas, temos uma escravidão. Em quase todo o mundo hoje a cidadania está sendo substituída pelas obrigações da escravidão. Visto que a servidão involuntária é definida pela Constituição como equivalente à escravidão, todo empregador que é obrigado a manter livros e recolher impostos para o Governo Federal é dessa forma forçado a realizar servidão involuntária ou trabalho escravo.
O Estado escravizador fala muito dos privilégios de ser uma “nação livre”. Os estados africanos formados nas décadas de 1950 e 1960 estavam livres do colonialismo, mas, embora tenham se tornado tecnicamente nações livres, elas cessaram de ser um povo livre: seus cidadãos tornaram-se escravos do Estado.
O propósito da Constituição dos Estados Unidos era confirmar a liberdade do povo amarrando o novo governo federal com as correntes da Constituição. O governo federal deveria ser acorrentados para que o povo pudesse ser livre. Hoje, é o povo quem está sendo progressivamente escravizado.
A terceira forma básica de escravidão é a escravidão espiritual, escravidão ao pecado e a Satanás. Satanás tem uma propriedade sobre o trabalho do pecador: é produtivo para ele e lhe serve. O fundamento da liberdade é Jesus Cristo, que declarou, “se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8.31, 32). As raízes da escravidão são espirituais: “Todo aquele que comete pecado é servo do pecado” (João 8.34). Tais homens são interiormente escravos, escravos do pecado. Um verdadeiro escravo sempre busca um senhor e a segurança de um senhor. A mente escrava deseja segurança, uma vida livre de problemas, uma segurança do berço-à-sepultura ou do ventre-ao-túmulo,[9] e isso exige um senhor que lhe forneçam tais coisas. Após a Guerra Civil e a emancipação, muitos negros continuaram a exigir que os seus antigos mestres continuassem a cuidar deles. Uma família do Sul mudou-se para Nova Jérsei, sendo seguidas até ali por seus antigos escravos. Até 1915, quando a morte e a partida dos filhos desfizeram aquela família de Nova Jérsei, os antigos escravos e seus filhos e netos continuaram a depender daquela família e a retornar a eles quando doentes ou desempregados. Eles precisavam de um senhor. Hoje, milhões de negros, junto com milhões de escravos brancos, estão exigindo que o governo federal torne-se o “senhor de escravo” deles e forneça-lhes segurança e cuidado. A escravidão é uma economia do bem-estar; direito de posse privada é uma economia do bem estar mantida privadamente, e isso não é economicamente uma unidade sã de operação. Sob o direito de posse do Estado, a escravidão, uma estrutura de segurança social, é uma economia do bem-estar que carece da necessidade de operação bem-sucedida que o proprietário privado deve manter. O proprietário privado deve produzir lucro em algum lugar; Alexander H. Stephens conseguiu o seu lucro na advocacia e sustentou os seus escravos desse modo. Por sua vez, o Estado detentor de escravos sobrevive por meio de confiscação progressiva até que a nação seja destruída.
Mentes escravas não são apenas mentes pecadoras, elas são culpadas também, movidas por culpa, cheias de vergonha e, portanto, com fome de refúgio e segurança. A política da culpa cultiva a mente escrava para escravizar os homens, e fazer com que o próprio povo exija um fim para a liberdade. Escravos, verdadeiros escravos, desejam ser resgatados da liberdade; o seu maior temor é a liberdade. A liberdade impõe um fardo impossível sobre eles. Carecendo da paz interior de uma boa consciência, eles buscam em vez disso a paz doentia de aceitação e coexistência com todo tipo de condição e mal.
O princípio da verdadeira liberdade é Jesus Cristo, que liberta os homens do poder do pecado e da morte e do fardo de culpa e vergonha, para que os homens tenham uma boa consciência perante Deus e uma independência em relação aos homens. “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8.36).
A libertação e salvação de Jesus Cristo é do pecado e da morte. A salvação de César é da liberdade. A privilégio da vida em Cristo é a liberdade; o privilégio da vida sob César é a segurança. A segurança do cristão está em Cristo e na liberdade sob a lei de Deus. A segurança do escravo está no Estado e na escravidão. Mas o sistema de escravos não é seguro, nem permanente, pois “o servo não fica para sempre em casa”; mas “o Filho fica para sempre”, e aqueles que são membros dele têm a segurança eterna (João 8.35).
Básico à Escritura é a declaração repetida do direito de posse absoluto de Deus sobre o mundo, sobre o homem, e sobre o trabalho do homem. “Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam” (Sl 24.1). O crente não pode tornar-se escravo dos homens, pois ele é propriedade de Deus, e essa é a sua liberdade e vida. Ele não deve se revoltar, se está em cativeiro no tempo de sua salvação, mas deve buscar a liberdade legitimamente (1Co 7.21-22). Mas ele não pode tornar-se um escravo voluntariamente: “Fostes comprados por bom preço; não vos façais servos dos homens” (1Co 7.23). O cristão, tendo sido comprado com o preço do sangue expiatório de Jesus Cristo, não pode permitir que o pecado, o homem, o Estado ou a Igreja o dominem ou o possuam. Somente o cristão pode ser um verdadeiro libertariano, e ele está sob uma obrigação religiosa de sê-lo. A escravidão para ele é um caminho de vida legítimo para o incrédulo: é a conclusão lógica da incredulidade e da escravidão ao pecado. Mas a vida do cristão deve refletir aqui e agora, em cada ato e instituição sua, “a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8.21, NVI).
A escravidão permanece, contudo, um caminho de vida legítimo, mas um caminho de vida mais baixo. A escravidão oferece certas penalidades bem como certas vantagens. Objetivamente, a penalidade é a entrega da liberdade. Subjetivamente, o escravo não vê a entrega da liberdade como uma penalidade, visto que ele deseja escapar da liberdade. Assim como uma criança receosa e medrosa teme o escuro, assim também a mente escrava teme a liberdade: ela é cheia dos terrores do desconhecido. Como resultado, a mente escrava apega-se à escravidão estadista ou do Estado, à assistência social do berço-à-sepultura, assim como uma criança temerosa apega-se à sua mãe. A vantagem da escravidão é precisamente isso, a segurança no senhor ou no Estado. O socialismo é dessa forma um Estado escravagista, criado pelas exigências de um senhor pelos escravos. O escravo tem a mentalidade do farisaísmo, pois quer viver por vista, pelas obras, obras manifestas e visíveis que o assegurarão salvação. O escravo salva a si mesmo criando um Estado escravagista que oferece garantia visível de salvação do ventre-ao-túmulo contra os perigos da virilidade e liberdade.
A liberdade também oferece penalidades e vantagens. A penalidade central e essencial da liberdade é a insegurança e os problemas disso. O homem livre vive num mundo de mercado livre, de tentativa e erro, lucro e prejuízo, sucesso e fracasso. Ele deve estar preparado para arcar com as consequências do fracasso bem como com a prosperidade do sucesso. Sua segurança não está nos sinais visíveis de um Estado ou senhor guardião, mas na lei-ordem do Deus trino e invisível. Assim, o homem livre deve andar por fé, na confiança que Provérbios e tudo da Escritura é verdadeiro, que a lei-ordem de Deus vindica aqueles que andam pela fé, “como vendo o invisível” (Hb 11.27), que, crendo que Deus existe, “e que é galardoador dos que o buscam” (Hb 11.6), anda em fé, sabedoria, prudência e responsabilidade. Não é fácil andar por fé, e o mercado livre não resistirá por muito tempo à parte de um alicerce de fé. Então o empresário, operário e fazendeiro buscam a intervenção do Estado; eles buscam os privilégios do socialismo e da escravidão. A penalidade da liberdade é a necessidade de andar pela fé, mas é também um privilégio. Em última instância, nossa fé deve estar em Cristo ou em César, e é muito melhor andar por fé em Cristo do que andar por vista sob César.
A vantagem da liberdade é a própria liberdade, a liberdade vinda da responsabilidade e da virilidade, e a segurança da liberdade. Os homens ouestarão em serviço a Deus, ou estarão em serviço aos homens, e o serviço a Deus é a liberdade do homem e do temor do homem.
É necessário que cada geração seja recordada de sua escolha: escravo ou livre? Essa é uma escolha moral. Um homem deve escolher entre a segurança da escravidão e a segurança da liberdade. Escravidão é um estilo de vida: se os homens preferem-na, então que sejam honestos e vivem em termos de sua escolha. A liberdade também é um estilo de vida, e os homens que a desejam devem estar preparados para assumir suas responsabilidades e penalidades, bem como seus privilégios. Os homens não podem receber assistência social, passar pelo processo de falência, ou serem achados culpados de atividade criminosa, e mesmo assim reivindicar legítima e moralmente os privilégios da cidadania e o direito de participar no governo civil. Tais homens podem ser apreciados por muitos; podem ser algumas vezes homens amáveis, bem-intencionados, e os tais devem ser tratados com toda graça e caridade piedosas, mas eles não podem reivindicar moralmente os privilégios da liberdade. Mesmo um bom escravo é um escravo.
E, para o cristão, o mandamento é expresso de forma muito clara: “Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão” (Gl 5.1). Toda invasão da liberdade, quer por escravos ou pelo Estado, deve ser resistida, e toda tentação pessoal em aceitar a segurança da escravidão deve ser vista como aquilo que é, pecado.

NOTAS:
[1] John Murray: Principles of Conduct, Aspects of Biblical Ethics, pp. 97-99. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1957.
[2] William Lindsay, “Slave, Slavery”, Patrick Fairbain, editor: Fairbairns’ Imperial Standard Bible Encyclopedia, vol 6. pp. 190-193. 1891. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1957.
[3] Cecil Woodham-Smith: The Great Hunger, Ireland 1845-1849, p. 228. New York: Harper and Row, 1962.
[4] “Next: A ‘Marshall Plan’ for Negroes?” U. S. News & World Report, vol. LX, nº 10, 7 de março de 1996, p. 46s.
[5] Veja Myrta Lockett Avary, editor: Recollections of Alexander H. Stephens, His Diary Kept When a Prisoner at Fort Warren, Boston Harbour, 1865, p. 226s. New York: Doubleday, Page, 1910.
[6] Veja Sean O’Callaghan: The Slave Trade Today, New York: Crown, 1961; Robin Maugham: The Slaves of Timbuktu, New York: Harper, 1961. Pode ser adicionado, contudo, que o negro sempre foi tratado de forma muito brutal por outros negros, e isso é tão verdadeiro antes como hoje. Dessa forma, “na conferência de Casablanca dos chefes de Estado africanos em janeiro de 1961, um delegado da República do Mali pediu ao representante da Líbia pela extradição de um chefe tribal de Mali que era acusado de liderar sua tribo inteira numa ‘peregrinação’, vendendo-a na ‘Terra Santa’, e então retirando-se para a Líbia a fim de viver uma vida pacífica com o dinheiro que tinha adquirido”; Youssef El Masry: Daughters of Sin, p. 127. New York: Macfadden, 1963. Sobre a escravidão na África, veja Gardiner G. Hubbard, “Africa, Its Past and Future”, The National Geographic Magazine, vol. I, nº 2, 1889, págs. 99-124, um relatório muito agradável.
[7] Marius Fortie: Black and Beautiful, A Life in Safari Land, p. 72. Indianapolis: Bobbs-Merril, 1938.
[8] Estudos liberais insistem em ver somente a propriedade privada de escravos como escravidão. A partir dessa perspectiva, o Estado então torna-se o salvador. Para uma análise liberal, veja David Brion Davis: The Problem of Slavery in Western Culture, Ithaca, New York: Cornelll University Press, 1966; e Barnett Hollander: Slavery in America, Its Legal History, London: Bowes & Bowes, 1962. Ambos são estudos competentes mas com uma visão simplista sobre escravidão.
[9] O autor usa um jogo de palavras aqui: “cradle-to-grave” e “womb-to-tomb”. [N. do T.]
Fonte: Rousas John Rushdoony, Politics of Guilt and Pity (Vallecito, California: Ross House Books, 1970), p. 22-31.

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto – maio/2011.
Via: Monergismo