sexta-feira, 13 de junho de 2014

Marxismo é o ópio do teólogo


Paulo e o império - religião e poder na sociedade imperial romana - é a obra do Prof. Richard A. Horsley, professor de letras clássicas e religião na universidade de Boston, Massachusetts, publicado no Brasil pela editora Paulus. Na verdade, a cadeira de "letras clássicas" engloba um pouco mais do que o mero estudo de línguas. História faz parte desse currículo e, talvez, esteja na história a origem da leitura tendenciosa do senhor Horsley: Marxismo cultural. O autor parece tender para o liberalismo e algumas de suas leituras do contexto maior do Novo Testamento lembram muito a teologia da libertação, tão prolífera na América latina. Lendo um pouco mais de suas obras, a dúvida se dissipa, deixando claro o lastro de uma teologia comprometida com ideologia militante de esquerda. Essa releitura de perspectiva marxista, revolucionária, é bem típica. Em sua outra obra intitulada Teorias do Jesus histórico, ele assim descreve o Jesus histórico (Jesus e a espiral de violência, pp. 207 e 208):
"O foco central do reino de Deus na pregação e prática de Jesus é a libertação e bem estar do povo. O entendimento de Jesus do "reino de Deus" é similar em sua perspectiva mais ampla às esperanças confiantes expressadas na então-contemporânea literatura apocalíptica judaica. Isto é, ele tinha total confiança que Deus estava restaurando a vida da sociedade, e que isto significaria julgamento para aqueles que oprimiam o povo e justiça seria feita para aqueles que aderissem com fé ao plano de Deus e respondessem ao reino. Ou seja, Deus estava iminentemente e efetivamente efetuando uma transformação histórica. Em linguagem moderna isso poderia ser rotulado de uma 'revolução'."

Na página 180 da obra objeto desta resenha, encontramos: "... Paulo não fala de reabilitação dos Poderes, mas antes de sua destruição ou 'neutralização'... Deus vai dar domínio aos santos... e vai abalar esses outros reinos e fazer que pereçam..."Isso posto, para parafrasear as palavras do autor, rotularia em linguagem moderna, para quem consegue ler nas entrelinhas: Um viva à mente marxista, revolucionária, que gosta de terrestrializar completamente qualquer pensamento religioso, como bem queria Antônio Gramsci - nem o Logos divino escapa! Além de transformar o Evangelho numa lamentável ideologia de luta de classes. Mas retomarei este assunto mais adiante.

Se Jesus, como mero agente histórico na óptica de historiadores e sociólogos marxistas, é mais um pateta que não sabe pra onde vai indo no curso da história sem Deus, o que podemos esperar de Paulo diante do império romano? Isso é o que o senhor Horsley tenta responder, desta vez, através da coleção de ensaios de diversos autores em seu livrinho. Portanto, não se trata de um trabalho autoral no sentido estrito do termo, cada capítulo deve ser analisado segundo a perspectiva do respectivo autor; contudo, a coleção está sob o crivo de Richard A. Horsley. Em breves palavras, o "autor" pretende com esta obra, objeto desta resenha, apresentar um Paulo revolucionário, que ousou discordar de todo o aparato ideológico, econômico e político do império romano. Segundo Horsley: "Uma nova perspectiva paulina que não só desconstrói aquele Paulo condescendente, paternalista, do imperialismo passado como também desfaz a conveniência do uso de Paulo para o imperialismo do presente." Viva Che Guevara!

Nas duas primeiras partes, compreendendo sete ensaios, ainda não encontramos esse Paulo de barbicha e boina... Por enquanto, só tem o charutão na boca. Na verdade não se fala de Paulo, per se, mas o titulo da primeira parte - o evangelho da salvação imperial - é bem sugestivo e já prepara o terreno para apresentar, dois capítulos mais à frente, o Paulo com figurino completo - boina, barbicha e charuto: O evangelho contra-imperial de Paulo. A primeira e a segunda parte são a construção do cenário político, econômico e religioso do império com foco em algumas cidades-chaves sob domínio romano. Onde lemos império, poderíamos ler imperialismo ianque; relações patronais, burguesia; escravos, a turma do proletariado...

Mas a brincadeira fica sem graça mesmo, quando nas páginas 174 e 175, encontramos: "Estudiosos eruditos anteriores, profundamente influenciados pela escola religioso-histórica, tendiam a considerar 1 Coríntios saturado de motivos gnósticos... Porém, estudos mais recentes criticaram de modo decisivo essa interpretação, assinalando que a construção de um mito gnóstico pré cristão do Redentor é uma retrojeção na época de Paulo de um padrão que aparece pela primeira vez na literatura gnóstica um século ou mais depois dele...". Depois dessa só posso mesmo ressaltar: Tudo pode ser retrojeção, menos o marxismo cultural para encontrar disputa de classes, imperialismo, burguesia, proletariado e heróis revolucionários num textos que não tem só um século ou dois de lapso, mas dezoito ou mais deles! Completo absurdo!

Há alguma coisa proveitosa nesse estudo? É até possível encontrar algumas boas referências históricas do império romano, um panorama da vida social e econômica da época paulina; mas tudo isso, e com conteúdo ainda mais abrangente, poderia ser sorvido de literaturas menos comprometidas ou com zero contaminação de ideologia marxista. Será que vale à pena ler Paulo e o império do senhor Richard A. Horsley? Pode o puro sair do impuro? Acho que não...

Além de fazer crítica injusta de outros estudos, apelando para os mesmos métodos antes criticados, mas para si mesmo convenientemente empregado, não se apresentam muitos subsídios para argumentos que procuram justificar certos trechos dos escritos paulinos quando não se encaixam bem ao paradigma marxista. "Terrestrializar" todo o pensamento transcendente é esperando do marxismo; então, encontrar uma releitura da teologia da conquista do Cristo sobre os poderes espirituais em moldes puramente mundanos de uma mera disputa de classes não causa surpresa. Contudo, a coisa perde completamente o rumo da honestidade acadêmica em favor de uma defesa ideológica militante de esquerda quando o autor sugere que a recomendação paulina de submissão às autoridades do império foi mera deturpação de algum copista puxa-saco do império. Jogar essa carta do copista intruso sobre a mesa é mole, quero ver sustentar a proposição! Onde estão as referências aos estudos de manuscritologia ou filologia dos textos paulinos para provar que o texto é estranho? A única evidência apresentada é a motivação ideológica, nada mais...

Há ainda muitos outros pontos que não passam pelo filtro de paradigma criado pelo autor, no qual o ajuste, harmonização e suporte dos argumentos tornam-se impraticáveis. Onde está a proposta de luta de classes de Paulo aos corintos, igreja claramente estratificada em camadas sociais evidentes pela simples leitura das epistolas? Como se encaixa a autodesignação de escravo de Paulo? Seria improvável encontrar tal revolucionário, como idealizado no livro, apresentar-se como δουλος com tanto orgulho, quando ele mesmo era cidadão romano antes de ter esse surto esquerdista a caminho de Damasco e passar a considerar tudo perda por amor a Cristo... Se houve um copista intruso nas cartas paulinas, ele também deve ter contaminado o relato lucano, que apresenta um Paulo tão cordeirinho diante do império em seu julgamento. Um pobre revolucionário que, ao invés de comandar o fuzilamento, vai, ele mesmo, para o paredão!

Parafraseando o mestre guru do senhor Richard A. Horsley e seus correligionários: "o marxismo é o ópio do teólogo".


RESENHA
Horsley, Richard A.
Paulo e o Império. religião e poder na sociedade imperial romana
Paulus, 2004. 248 p.



André R. Fonseca

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