O Salmo 1, escrito originalmente em hebraico, é uma obra-prima da literatura sapiencial, estruturada para contrastar dois caminhos de vida: o dos justos e o dos ímpios. Sua análise linguística e teológica revela nuances profundas que enriquecem a compreensão do texto. Abaixo, um estudo detalhado com base no texto hebraico:
1. Contexto Estrutural e Literário
- Introdução ao Saltério: O Salmo 1 serve como prefácio ao livro dos Salmos, destacando a centralidade da Torá (instrução divina) como guia para a vida.
- Estrutura Alfabética Simbólica: A primeira palavra começa com álefe (א), primeira letra do alfabeto hebraico, e a última termina com tav (ת), a última letra, simbolizando que a sabedoria divina abrange "de A a Z".
- Paralelismo Antitético: O salmo contrasta os destinos dos justos (como árvores frutíferas) e dos ímpios (como palha ao vento), usando recursos poéticos típicos da literatura hebraica.
2. Análise Linguística e Teológica por Versículo
Versículo 1: A Felicidade do Justo
- אַשְׁרֵי הָאִישׁ (Ashrei ha'ish): "Bem-aventurado o homem".
- אַשְׁרֵי (Ashrei) está no plural construto, indicando uma felicidade plena e multidimensional, não circunstancial, mas enraizada na relação com Deus.
- Três Proibições Progressivas:
1. לֹא הָלַךְ (Lo halakh): "Não andou" – rejeição ao conselho dos ímpios (עֲצַת רְשָׁעִים).
2. וּבְדֶרֶךְ חַטָּאִים לֹא עָמָד (U'vederekh chata'im lo amad): "No caminho dos pecadores não parou".
3. וּבְמוֹשַׁב לֵצִים לֹא יָשָׁב (U'vmoshav leitzim lo yashav): "Na roda dos escarnecedores não se assentou".
- Os verbos no passado (qatal) sugerem uma decisão concluída de evitar influências corruptoras.
Versículo 2: A Meditação na Torá
- כִּי אִם בְּתוֹרַת יְהוָה חֶפְצוֹ (Ki im be'torat YHWH cheftzo): "Antes, seu prazer está na lei do Senhor".
- תּוֹרָה (Torá) não se limita à "lei", mas abrange toda a instrução divina, incluindo os Salmos.
- וּבְתוֹרָתוֹ יֶהְגֶּה יוֹמָם וָלָיְלָה (U'vetorato yehgeh yomam va'laila): "E na sua lei medita de dia e de noite" – יֶהְגֶּה (yehgeh) implica murmurar, refletir em voz baixa, indicando uma internalização constante da Palavra.
Versículo 3: A Metáfora da Árvore
- וְהָיָה כְּעֵץ שָׁתוּל (Ve'hayah ke'etz shatul): "Pois será como árvore plantada".
- שָׁתוּל (Shatul) indica ação divina: a árvore não cresce acidentalmente, mas é plantada por Deus junto a águas (עַל-פַלְגֵי מָיִם, Al-palgei mayim), símbolo de sustento espiritual.
- אֲשֶׁר פִּרְיוֹ יִתֵּן בְּעִתּוֹ (Asher piryo yitten be'ito): "Que dá seu fruto na estação própria" – frutificação no tempo certo, aludindo à prosperidade espiritual, não apenas material.
Versículo 4-5: O Contraste com os Ímpios
- לֹא-כֵן הָרְשָׁעִים (Lo-ken haresha'im): "Não são assim os ímpios".
- כִּי אִם כַּמֹּץ אֲשֶׁר-תִּדְּפֶנּוּ רוּחַ (Ki im kamots asher tiddfenu ruach): "Mas são como a palha que o vento espalha".
- כַּמֹּץ (Kamots) refere-se à palha (resto inútil da colheita) que é levada pelo vento (רוּחַ), simbolizando instabilidade e julgamento.
- עַל-כֵּן לֹא-יָקוּמוּ רְשָׁעִים בַּמִּשְׁפָּט (Al-ken lo yakumu resha'im ba'mishpat): "Por isso, os ímpios não subsistirão no juízo".
Versículo 6: Os Dois Caminhos
- כִּי-יוֹדֵעַ יְהוָה דֶּרֶךְ צַדִּיקִים (Ki-yodea YHWH derekh tzadikim): "Porque o Senhor conhece o caminho dos justos".
- וְדֶרֶךְ רְשָׁעִים תֹּאבֵד (Ve'derekh resha'im toved): "Mas o caminho dos ímpios perecerá".
3. Dispositivos Poéticos e Teológicos
- Inclusio: O salmo inicia e termina com referência aos ímpios, criando uma moldura que enfatiza a escolha entre dois destinos.
- Símbolos Agrários:
- Árvore vs. Palha: A árvore, com raízes profundas, representa vida nutrida pela Torá; a palha, efêmera, simboliza a vacuidade da vida sem Deus.
- Progressão Espiritual: A meditação contínua (dia e noite) na Torá leva à frutificação, enquanto a associação com os ímpios leva à destruição.
4. Aplicações Práticas
1. Escolha de Companhias: Evitar influências corruptoras é essencial para uma vida alinhada com Deus.
2. Meditação Contínua: Internalizar a Palavra não é um dever, mas um prazer (חֶפְצוֹ) que traz discernimento.
3. Perspectiva Eterna: A prosperidade dos ímpios é ilusória; a verdadeira estabilidade vem do relacionamento com Deus.
Concluindo
O Salmo 1, em sua riqueza hebraica, convida a uma vida radicalmente centrada na Torá.
Seu paralelismo antitético e simbolismo agrário reforçam a urgência de escolher entre dois caminhos: o da raiz profunda em Deus ou o da palha levada pelo vento.
Como resume o verso final: "O Senhor conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios perecerá" (v. 6).
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