Predestinação e
Livre-Arbítrio(2)
R.C. Sproul
CAPACIDADE
MORAL E NATURAL
Jonathan Edwards fez outra distinção
que é útil no entendimento do conceito bíblico do livre-arbítrio. Ele
distinguiu entre capacidade natural e capacidade moral. A capacidade natural
tem a ver com os poderes que recebemos como seres humanos naturais. Como um ser
humano, tenho a capacidade natural de pensar, de andar, de falar, de ver, de
ouvir, e, sobretudo, de fazer escolhas. Há certas capacidades naturais que me
faltam. Outras criaturas podem possuir a capacidade de voar sem a ajuda de
máquinas. Eu não tenho essa capacidade natural. Posso desejar voar pelos ares
como o Super-Homem, mas não tenho essa capacidade. A razão pela qual eu não
posso voar não é devida à deficiência moral no meu caráter, mas porque meu
Criador não me deu o equipamento natural necessário para voar. Não tenho asas.
A vontade é uma capacidade natural dada
a nós por Deus. Temos todas as faculdades naturais necessárias para fazer
escolhas. Temos uma mente e temos uma escolha. Temos a capacidade natural de
escolher o que desejamos. Qual, então, é o nosso problema? De acordo com a
Bíblia, a localização de nosso problema é clara. É com a natureza de nossos
desejos. Este é o ponto focai de nossa queda. A Escritura diz que o coração do
homem decaído abriga continuamente desejos que são somente maus (Gn 6.5).
A Bíblia tem muito a dizer sobre o
coração do homem. Na Escritura, o coração refere-se não tanto a um órgão que
bombeia sangue através do corpo, como à essência da alma, ao lugar mais
profundo das afeições humanas. Jesus viu uma conexão próxima entre a localização
dos tesouros do homem e os desejos de seu coração. Encontre o mapa do tesouro
do homem e você terá a estrada para seu coração.
Edwards declarou que o problema do
homem com o pecado está em sua capacidade moral, ou falta dela. Antes que uma
pessoa possa fazer uma escolha que é agradável a Deus, ela precisa primeiro ter
um desejo de agradar a Deus. Antes de encontrarmos Deus, precisamos primeiro
desejar procurá-lo. Antes de escolhermos o bem, precisamos primeiro ter um
desejo pelo bem. Antes de escolhermos Cristo, precisamos primeiro ter um desejo
por Cristo. O valor e a substância do debate todo apóiam-se precisamente neste
ponto: O homem decaído, em si mesmo e de si mesmo, tem um desejo natural por
Cristo?
Edwards responde a esta questão com um
enfático "Não!". Ele insiste que, na queda, o homem perdeu seu desejo
original por Deus. Quando ele perdeu esse desejo, alguma coisa aconteceu à sua
liberdade. Ele perdeu a capacidade moral de escolher Cristo. Ou ele tem esse
desejo já dentro dele, ou precisa receber esse desejo de Deus. Edwards e todos
que abraçaram a visão reformada da predestinação concordam que, se Deus não
plantar esse desejo no coração humano, ninguém, deixado a si mesmo, jamais
escolherá Cristo. Eles sempre e em todo lugar rejeitarão Cristo porque eles não
o desejam. Eles livremente rejeitarão Cristo no sentido de que sempre agirão de
acordo com seus desejos.
A este ponto, não estou tentando provar
a verdade da visão de Edwards. Para fazer isso, é preciso dar uma olhada de
perto na visão bíblica da capacidade ou inabilidade moral do homem. Faremos
isso mais tarde. Precisamos também responder à pergunta: "Se falta ao
homem a capacidade moral de escolher Cristo, como pode Deus considerá-lo
responsável por escolher Cristo? Se o homem nasce num estado de incapacidade
moral, sem nenhum desejo de escolher Cristo, não é então culpa de Deus que os
homens não escolham Cristo?" Novamente peço paciência ao leitor, com a
promessa de que vou retomar estas questões brevemente.
A
VISÃO DE LIBERDADE DE SANTO AGOSTINHO
Assim como Edwards fez uma crucial
distinção entre capacidade moral e capacidade natural, também Agostinho, antes
dele, fez uma distinção similar. Agostinho abordou o problema dizendo que o
homem tem um livre-arbítrio, mas lhe falta liberdade. Na superfície parece uma
distinção estranha. Como poderia alguém ter um livre-arbítrio e ainda assim não
ter liberdade?
Agostinho estava chegando à mesma coisa
que Edwards. O homem decaído não perdeu sua capacidade de fazer escolhas. O
pecador ainda é capaz de escolher o que ele quer, ele ainda pode agir de acordo
com seus direitos. Ainda assim, por serem seus desejos corruptos, ele não tem a
liberdade real daqueles que foram libertos para a justiça. O homem decaído está
num sério estado de servidão moral. Esse estado de servidão é chamado de pecado
original.
O pecado original é um assunto difícil
que virtualmente toda denominação cristã tem de enfrentar. A queda do homem é
ensinada tão claramente na Escritura que não podemos construir uma visão do
homem sem levá-la em consideração. Existem uns poucos cristãos, se é que
existem, que argumentam que o homem não é decaído. Sem reconhecer que somos
decaídos, não podemos reconhecer que somos pecadores. Se não reconhecermos que
somos pecadores, dificilmente fugiremos para Cristo como nosso Salvador.
Admitir a queda é um pré-requisito para vir a Cristo.
É possível admitir que somos decaídos
sem abraçar alguma doutrina de pecado original, mas somente com severas
dificuldades no processo. Não é por acaso que quase todo o Corpo de Cristo tem
formulado alguma doutrina de pecado original.
Neste ponto, multidões de cristãos
discordam. Concordamos que precisamos ter uma doutrina de pecado original, mas
aí permanece grande discordância quanto ao conceito de pecado original e sua
extensão.
Vamos começar declarando o que o pecado
original não é. O pecado original não é o primeiro pecado. O pecado original
não se refere especificamente ao pecado de Adão e Eva. O pecado original
refere-se ao resultado do pecado de Adão e Eva. O pecado original é a punição
que
Deus dá pelo primeiro pecado. É alguma
coisa assim: Adão e Eva pecaram. Esse foi o primeiro pecado. Como resultado do
pecado deles, a humanidade foi mergulhada em ruína moral. A natureza humana
experimentou uma queda moral. As coisas mudaram para nós depois que o primeiro
pecado foi cometido. A raça humana tornou-se corrompida. A corrupção
subseqüente é o que a Igreja chama de pecado original. O pecado original não é
um ato específico de pecado. É uma condição de pecado.
O pecado original refere-se a uma natureza
de pecado a partir da qual fluem atos pecaminosos. Novamente, nós cometemos
atos pecaminosos porque nossa natureza é para pecar. A natureza original do
homem não era para pecar, mas, depois da queda, sua natureza original mudou.
Agora, por causa do pecado original, temos uma natureza decaída e corrompida.
O homem decaído, como a Bíblia declara,
é nascido no pecado. Ele está "debaixo" do pecado. Pela natureza,
somos filhos da ira. Não nascemos num estado de inocência.
John Gerstner uma vez foi convidado a
pregar numa igreja presbiteriana. Ele foi saudado à porta pelos presbíteros,
que lhe explicaram que a ordem de adoração para aquele dia incluía a
administração de batismo infantil. O Dr. Gerstner concordou em dirigir o culto.
Então um dos presbíteros explicou uma tradição especial da igreja. Ele pediu ao
Dr. Gerstner que oferecesse uma rosa branca aos pais de cada bebê antes do
batismo. O Dr. Gerstner perguntou sobre o significado da rosa branca. O
presbítero respondeu: "Nós oferecemos a rosa branca como símbolo da
inocência do bebê perante Deus".
"Entendo", disse o Dr.
Gerstner. "E o que simboliza a água?"
Imagine a consternação do presbítero
quando tentou explicar o propósito simbólico de lavar o pecado de inocentes
bebês. A confusão de sua congregação não é exclusiva dela. Quando reconhecemos
que bebês não são culpados de cometer atos específicos de pecado, é fácil
saltar para a conclusão de que são, portanto, inocentes. Este é um largo salto
teológico sobre uma pilha de espadas. Embora o bebê seja inocente de atos
específicos de pecado, ele ainda é culpado pelo pecado original.
Para entender a visão reformada da
predestinação é absolutamente necessário entender a visão reformada do pecado
original. Os dois assuntos sustentam-se juntos, ou caem juntos.
A visão reformada segue o pensamento de
Agostinho. Agostinho elucida o estado de Adão antes da queda e o estado da
humanidade depois da queda. Antes da queda foram concedidas a Adão duas
possibilidades: Ele tinha a capacidade para pecar e a incapacidade para não
pecar. A idéia de "incapacidade para não" é um pouco confusa porque,
em nossa língua, é uma dupla negativa. A fórmula latina de Agostinho era non
posse non peccare. Colocado de outra maneira, significa que, depois da queda, o
homem era moralmente incapaz de viver sem pecar. A capacidade de viver sem
pecar foi perdida na queda. A incapacidade moral é a essência do que chamamos
de pecado original.
Quando nascemos de novo, nossa servidão
ao pecado é aliviada. Depois que somos vivificados em Cristo, novamente temos a
capacidade para pecar e a capacidade para não pecar. No céu, teremos a
incapacidade
para pecar.
Vamos ver isto no quadro seguinte:
O homem antes
da queda |
O homem
depois da queda |
O homem
renascido |
O homem
glorificado |
capaz de pecar
|
capaz de pecar
|
capaz de pecar
|
|
capaz de não
pecar |
|
capaz de não
pecar |
capaz de não
pecar |
|
incapaz de não
pecar |
|
|
|
|
|
incapaz de pecar
|
O quadro mostra que o homem antes da
queda, depois da queda e depois de renascer é capaz de pecar. Antes da queda
ele é capaz de não pecar. Essa capacidade, a capacidade de não pecar, é perdida
na queda. É restaurada quando a pessoa nasce de novo, e continua no céu. Na
criação, o homem não sofreu de incapacidade moral. A incapacidade moral é um
resultado da queda. Colocando de outra maneira, antes da queda o homem era
capaz de refrear-se de pecar; depois da queda, não é mais capaz de refrear-se
de pecar. É isso que chamamos de pecado original. Esta incapacidade moral ou
servidão moral é vencida através do renascimento espiritual. O renascimento
libera-nos do pecado original. Antes do renascimento ainda temos um
livre-arbítrio, mas não temos esta liberação do poder do pecado, que é o que
Agostinho chamou de "liberdade".
A pessoa que é renascida ainda pode
pecar. A capacidade de pecar não é removida até que sejamos glorificados no
céu. Temos a capacidade de pecar, mas não estamos mais sob a servidão do pecado
original. Fomos libertados. Isto, é claro, não quer dizer que agora vivemos
vidas perfeitas. Ainda pecamos. Mas não podemos dizer que pecamos porque isso é
tudo que nossa natureza decaída tem poder para fazer.
Extraído do site: http://www.eleitosdedeus.org/predestinacao/predestinacao-livre-arbitrio-r-c-sproul.html#ixzz1kTIcmklw
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