sábado, 18 de junho de 2016

Uma crítica ao anarquismo cristão pregado por Liev Tolstói

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Introdução

Quando se fala de Anarquia e Cristianismo, logo se identifica duas doutrinas antagônicas. A primeira é uma doutrina política, libertária e materialista. A segunda, metafísica e proposicional. Porém, ambas se encontram no pensamento de Liev Tolstói, que as sintetizou ao interpretar o Evangelho de uma forma moralmente radical, livre do caráter sobrenatural das Escrituras, desenvolvendo argumentos muito próximos à ideologia anárquica de Bakunin, de Proudhon e de Thoreau. Essa simbiose pode ser explicada através de um conceito presente na sociologia: a Afinidade Eletiva.

Entende-se por “Afinidade Eletiva” um movimento de convergência capaz de se chegar a uma fusão entre duas configurações sociais ou culturais. O termo aqui não é sinônimo de influência ou correlação, mas sim um conceito que nos permite explicar processos de interação irredutíveis à causalidade direta. A expressão é oriunda de alquimistas medievais, mas é Max Webber que a emprega numa perspectiva sociológica para analisar a relação entre a religião e o ethos econômico. O termo já mencionado ganha fundamentação na clássica obra: A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em 1989, o cientista social Michel Löwi lança no Brasil o livro: Redenção e Utopia: O Judaísmo Libertário na Europa Centralque analisa, utilizando-se da “Afinidade Eletiva”, para entender a ligação entre o messianismo e as ideias libertárias de um grupo de intelectuais judeus que surge – na Europa Central – no fim do século XIX. Este é o conceito comum empregado por aqueles que estudam o anarquismo tolstoiano. Ao se converter (à sua maneira), o escritor russo sequer imaginaria que a sua experiência espiritualista o conduzisse ao legítimo anarquismo. Isso só acontece quando a “Não Resistência” passa a ser rigidamente observada por ele. Neste artigo será apresentado o pensamento de Tolstói, principalmente o contido no livro O Reino de Deus Está em Vós. Ao final, serão feitos alguns apontamentos críticos. Mas, antes, é preciso situar o leitor sobre o que é anarquismo conforme os seus principais expoentes. 

O anarquismo e seus expoentes teóricos
Anarquia é a ausência de senhor, de soberano, tal é a forma de governo que nos aproximamos todos os dias e que o hábito inveterado de tornar o homem por regra e sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos (PRODHON, 2007).

George Woodcock definiu o Anarquismo como sendo um “movimento de filosofia social” [1] que tem por objetivo final a transformação da sociedade. Embora existam várias correntes, todas elas “desembocariam no mesmo rio”, pois é comum a todas substituir o Estado autoritário por alguma forma de cooperação mútua entre homens livres, ou seja, uma autogestão que não precisasse mais da tutela estatal, utilizando-se do poder coercitivo para determinar aquilo que está dentro ou fora da legalidade.


O Estado é o mal que precisa ser aniquilado, para que enfim a humanidade seja livre e estabeleça uma relação de igualdade ainda não experimentada, uma vez que o Governo está a serviço de uma classe dominante que, para assegurar sua dominação, necessariamente promove uma distribuição desigual de renda e oportunidade. Esse Estado além de deter o monopólio da força – com seus exércitos, guardas pretorianas e departamentos de polícia – também conta com aparelhos ideológicos que manipulam a população e induzem o povo a viver resignado em meio a tanta miséria. Dentre esses aparelhos, a Religião, de forma institucionalizada, é um dos alvos principais dos que se professam anarquistas. É tanto que um dos lemas mais populares do movimento dizia: “Nem Deus, nem Senhor”. 

O anarquismo, em seu bojo, é antiteísta. Bakunin, o russo que ambicionava “destruir para criar”, tornou-se um dos mais atuantes do movimento libertário, chegando a participar da I Internacional, divergindo de Marx e ameaçando a sua hegemonia até ser expulso em 1872. Cria então a Internacional “Antiautoritária” e rompe os vínculos com o marxismo. O pensamento bakuniniano foi bastante assimilado pelos anarquistas, sendo mais influente do que o próprio Proudhon, considerado por muitos o pai do Anarquismo. Segundo ele, o desenvolvimento humano é composto por três elementos: 1- a animalidade, 2- o pensamento e 3- a revolta. O primeiro corresponde à economia individual e social, o segundo, à ciência e o último, à liberdade.

Contrariando os idealistas, afirma ser o homem produto da “vil matéria” e não um ser criado por um ente ou inteligência superior. No entanto, essa matéria é extremamente dinâmica e produtiva. Está sempre em movimento e, no caso dos homens, os direcionam para libertá-los da sua condição primitiva: através da razão, estes se tornam conhecedores de sua própria existência, emancipando-se. Tal o percurso da evolução. Eis a origem de seu antiteísmo. A partir do momento em que os teólogos atribuem toda a vileza aos homens e tudo o que for de belo, justo e puro como sendo atributos de Deus, o homem torna-se escravo da divindade e isso é um entrave ao seu próprio desenvolvimento que tem por finalidade a libertação. A ideia de Deus faz com que o homem abandone a razão e, sem ela, ele nunca atingirá a liberdade. Por isso Bakunin (2011) propõe a abolição da divindade: “inverto a frase de Voltaire e digo que, se Deus existisse, seria preciso aboli-lo”.

Um texto escrito em 1871, onde é evidente todo o seu entusiasmo, Bakunun afirma:
Numa palavra, rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencidos de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada. Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas (BAKUNIN, 2011, p.58).

Foi Proudhon quem primeiro reclamou para si o status de anarquista. E fez através de uma prosa vigorosa, simulando um diálogo repleto de questionamentos sobre seu posicionamento político, desembocando na seguinte afirmação: “(...) vós acabais de ouvir a minha profissão de fé, séria e maduramente refletida; ainda que muito amigo da ordem, eu sou, com toda a força do termo, anarquista. Escutai-me”.[2]  Proudhon é um opositor de toda a forma de autoridade, denunciando os seus malefícios, seja esta oriunda da religião, do governo, do sistema econômico ou até mesmo do socialismo.


Proudhon descarrega toda sua raiva ao redigir Contradições Econômicas, acentuando o discurso antirreligioso. Devido às condições miseráveis da humanidade, questiona o conceito de uma deidade benevolente e conclui que se Deus existe, de fato, então ele é mau. Para triunfar sobre a tirania, faz-se necessário opor-se a Deus. Note-se que ele não nega a existência do Divino, apenas se opõe a ela. Nesse ponto, assemelha-se aos anarquistas que o sucederam, dentre eles o próprio Bakunin. Criticava o dogmatismo com ênfase, por isso mesmo não adotava o extremo de se declarar ateu. Proudhon enxergava Deus e o homem como duas forças antagônicas, realidades incompletas, que se opõem. Para o bem da humanidade, essa divindade dominadora precisava ser rejeitada.

Tolstói e a nova doutrina

Leon Tolstói dedicou três anos de sua longa vida – morreu aos 92 anos – ao escrever O Reino de Deus está em Vós. A obra gerou imensa polêmica e dividia os leitores entre os que aplaudiam e concordavam e os que rechaçavam o seu conteúdo. Seu livro foi tirado de circulação na Rússia czarista dos Romanov e a Igreja Ortodoxa determinou a sua excomunhão. Qual o conteúdo da obra afinal? O subtítulo do ensaio começa por nos elucidar: O Cristianismo apresentado não como uma doutrina mística, mas como uma moral nova. 

Segundo ele, o verdadeiro Cristianismo estava longe de ser compreendido tal como é, e o motivo disso é a deturpação das palavras de Jesus Cristo e a ação do clero que não focava no ensino do Mestre, ao invés disso, elaborava catecismos, liturgias e sacramentos que apenas serviam para tornar as pessoas cada vez mais supersticiosas e manipuláveis. A sua tese central dá-se a partir do preceito encontrado no Sermão do Monte: “Não resistais ao mal” (Mateus 5:39). O sentido defendido por ele é de que a “Não Resistência” é a não utilização da violência. Sob nenhum aspecto Tolstói considera legítimo o uso da força. Aquela máxima jurídica de repudiar a violência usando a própria violência é totalmente anticristã. Por isso não gostava de ser chamado anarquista, por não compactuar com os métodos terroristas ligados ao movimento. Denominava-se apenas cristão.

Rejeitando o Estado e a propriedade, defende a abolição de ambas para que a humanidade venha gozar do Reino de Deus na Terra. Não existe o Paraíso ensinado pelos sacerdotes, tampouco a salvação vicária resultado do derramamento de sangue na cruz. Jesus Cristo não é divindade, é homem. É o professor que disseminou a Lei do Amor como sendo inerente do espírito humano. Essa Lei é a única que deve reger as relações sociais. É universal e atemporal, gradativamente pode ser vivenciada por todos os homens. E por que ainda não foi assimilada? Porque vem sendo ensinada por uma minoria de pessoas, ao passo que o “pseudocristianismo” ganhou vários adeptos que inculcaram através da tradição de séculos esse ensinamento deturpado no qual acreditam ser a Palavra de Deus transmitida por seus representantes. 

Destacando-se pela sua singularidade, até então, em conciliar o Evangelho com a anarquia, Tolstói, sem abolir e nem tampouco se opor a Deus, teve seu pensamento inserido na pesquisa pioneira de Paul Eltzbacher[3] sobre as várias correntes anárquicas, realizada em 1900. É no lançamento de O Reino Deus está em Vós, que enfim demonstra a sua fé na Anarquia. Esta é a obra central e de transição entre um anarquista latente e um anarquista convicto, embora recusasse ser chamado assim.

Para entendermos a ligação entre o Evangelho e a Anarquia em Tolstói, é necessário tomar ciência de que o deísmo é a sua crença, e que, como deísta, ele concebe a ideia de uma divindade impessoal. Deus é uma força mística, criadora do Universo e a humanidade é autônoma em suas decisões. Essa impessoalidade faz com que o mesmo não tenha um nome. Logo, Iavé, Alá, Shiva e outras nomenclaturas, estão todas se referindo ao mesmo ser. Tolstói, além dos Evangelhos, mergulhou em outras crenças, tal como o hinduísmo para sistematizar aquilo que viria chamar de “Doutrina da Não Resistência ao Mal”.

A tolerância religiosa, num sentido lato, a busca pela unidade entre os credos (também conhecido por ecumenismo) é uma característica do deísta. Nessa perspectiva, toda religião cultua o mesmo deus, mesmo que a terminologia seja distinta. No fundo, os valores religiosos são idênticos. O próprio Tolstói fala isso, num artigo intitulado O que é religião e em que consiste sua essência?:
(...) Esses valores são: que existe um Deus e é o princípio de tudo; que no ser humano há uma partícula desse princípio divino, que ele pode enfraquecer ou fortalecer de acordo com o modo em que conduz a própria vida; que, para fortalecer esse princípio, o ser humano deve conter suas paixões e cultivar dentro de si o amor; que o meio prático de alcançar isso é fazer aos outros aquilo que queremos que façam a nós. Todos esses valores são comuns ao bramanismo, ao judaísmo, ao confucionismo, ao taoismo, ao budismo, ao cristianismo e ao judaísmo (.TOLSTÓI, 2011, p.203).

Devido a essa concepção, o cristianismo adotado por Tolstói não promove Jesus Cristo a divindade. Mais absurdo ainda o conceito da trindade. Deus é um ser superior, Jesus, apenas um homem que deve ser visto como exemplo ético. Suas palavras e ações, deixando os milagres de fora, devem ser seguidas a risca, pois a perfeição é alcançada à medida que negamos nossas paixões em detrimento do bem coletivo. O amor ao próximo é o fim supremo e principal do homem. O próprio Cristo teria dito que todo aquele que ama, cumpriu a Lei e os profetas. Tolstói empenha-se em traduzir os quatro Evangelhos a seu modo, retirando dele toda a metafísica. Durante anos esmera-se nesse trabalho e é a partir dele que a “Não Resistência” surge como o principal conceito do pensamento tolstoiano:

Eu compreendi, não por meio de fantasias exegéticas ou de combinações textuais profundas e engenhosas; compreendi tudo porque joguei fora de minha mente todos os comentários. Esta foi a passagem que me deu a chave do todo. ‘Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, lhes digo: Não resistam ao mal.’ (Mateus 5:38,39). (TOLSTÓI, 2011, p.28).

O conceito da “Não Resistência”, ou como chamam os adeptos do movimento Humanista: “Não Violência Ativa” é o cerne do anarquismo tolstoiano. É a ideia central de O Reino de Deus está em Vós, livro que o próprio Tolstói considera o mais importante de todos que escreveu. O princípio já havia sido abordado em Uma Confissão, mas é com “O Reino” que o Apóstolo da Não Violência (assim Gandhi o classificou) sistematiza a doutrina que lhe abriu os olhos, tornando-o um cristão convicto de que a moral incutida no Sermão do Monte era a chave para libertação dos indivíduos.


Logo no primeiro capítulo de “O Reino” lemos que a doutrina da Não Resistência foi ensinada por outros homens e grupos cristãos, que embora sendo minoria, contribuíram para elucidar o verdadeiro significado do evangelho: o amor. Através do exemplo de concórdia e paz entre os seguidores de Jesus, a doutrina evangélica penetrará na consciência dos homens. Não se pode impor a aceitação dessa doutrina, é a atitude humilde de resistir ao mal sem uso da força que levará a sua aceitação. O amor é o guia para levar a humanidade a atingir a perfeição:
O cristão, conforme os ensinamentos do próprio Deus, não pode ser guiado, em suas relações com o próximo, senão pelo amor. Assim, não pode existir autoridade alguma capaz de constrangê-lo a agir contrariamente aos ensinamentos de Deus e ao próprio espírito do cristianismo (TOLSTÓI, 2011, p.10).

Se o amor fraterno é o mandamento necessário para o cumprimento da vontade de Deus e nisto consiste a salvação da alma humana, logo toda e qualquer ordem que leve o cristão ao descumprimento dessa doutrina, é um entrave ao aperfeiçoamento. Daí surge a resistente figura do Estado, pois Tolstói o vê como um obstáculo na observância desse mandamento. Colocando a “não violência” como base da doutrina cristã, Tolstói afirma que o cristianismo destrói qualquer governo, pelo simples fato deste ser uma violência:

O homem submisso ao poder não age como quer, mas como é obrigado; e é somente por meio da violência física, isto é, da prisão, da tortura, da mutilação ou da ameaça desses castigos que se pode forçar o homem a fazer aquilo que não quer. Nisto consiste e sempre consistiu o poder (TOLSTÓI, 2011, p.167).

Tolstói também aderiu a “desobediência civil” e declarou guerra ao Estado. A luta acontece quando as pessoas deixam de colaborar com a máquina, rebentando assim o sustentáculo do poder que, segundo ele, oprime e sufoca os homens. Para aniquilar o governo, basta aderir à desobediência. É o que diz claramente em Os Acontecimentos Atuais Na Rússia, texto escrito em Fevereiro de 1905:

Para livrar-se do governo não é necessário lutar contra eles pelas formas exteriores (insignificantes até o ridículo diante dos meios de que dispõem os governos) é preciso unicamente não participar em nada, basta não sustentá-los e então cairão aniquilados. E para não participar em nada dos governos nem sustentá-los é preciso estar livre da fragilidade que arrasta os homens aos laços do governo que lhes fazem seus escravos ou seus cúmplices (TOLSTÓI, 2011, p.23).

Como os demais anarquistas, Tolstói não nos oferece uma visão nítida de como seria a sociedade sem a tutela de um governo, apenas denuncia o que considera ser um grande mal que este comete no presente. O embrutecimento, a pobreza, a opressão, a injustiça e a negação da consciência são produtos do que chama “Estado-Violência”. Ele precisa acabar, e só terá um fim quando o Cristianismo for compreendido e aceito pela grande maioria dos homens. Mas não é o misticismo pregado pela Igreja, mas a moral resumida no Sermão do Monte, que condena todo e qualquer tipo de violência, instruindo as pessoas a não pagarem o mal com o mal.


O anarquismo cristão tolstoiano foi e continua sendo singular. Embora existam outros nomes nesse segmento, como por exemplo, Jacques Ellul, ninguém foi tão sistemático como Tolstói. A influência do pensamento tolstoiano levou diversos homens a fundarem colônias baseadas numa economia comunitária e com estilo de vida ascético. Não há muitas informações acerca delas. O que sabemos é que fracassaram em um curto espaço de tempo.

Os problemas do pensamento Tolstoiano

A doutrina proposta por Tolstói tem alguns problemas. Um deles é a crença no caráter inerentemente bom do ser humano. Isso contraria o relato da Queda em Gênesis 3 e a doutrina da Depravação Total. O ensino de que o homem já nasce pecador e depravado está presente em textos como o Salmos 51:5: “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”. Agostinho, mergulhando na teologia paulina, sobretudo na Epístola aos Romanos, desenvolve a depravação como sendo uma doutrina indispensável ao cristianismo. Combatendo a neutralidade pelagiana, ele afirma que o homem perdeu o livre-arbítrio quando o pecado entrou no mundo por meio de Adão. Após a catástrofe do Éden, a humanidade herda o pecado natural, que escraviza o homem em seu desejo de querer pecar mais e mais. Sendo assim, o pecado priva o homem de escolher aquilo que é inerentemente bom (privatio boni), o que não significa, entretanto, que o homem perdeu toda sua capacidade de fazer escolhas. Em diversas ocasiões o pecador escolhe entre diversas alternativas. A única incapacidade do homem degenerado é escolher não mais pecar. O pecado é uma gangrena que aprisiona o ser humano. Foi ele o grande responsável pela morte, pois, para Agostinho, Adão era detentor da imortalidade, antes da queda. E isso foi transmitido a todos que se seguiram. Sobre essa transmissão da natureza pecaminosa, escreveu Berkhof [1992, p.122]:
Através do vínculo orgânico entre Adão e seus descendentes é que aquele transmite a eles a sua natureza caída, juntamente com a culpa e a corrupção que lhe segue o rastro. Agostinho concebe a unidade da raça humana não de modo federal, e sim, realista. Toda a raça humana estava germinalmente presente no primeiro homem, pelo que também ela realmente pecou em Adão.

Os reformadores seguiram Agostinho e as confissões de fé registram o mesmo ensinamento em seus artigos. Vejamos o que diz Segunda Confissão Helvética, 1566, artigo 8:

Por pecado entendemos a corrupção inata do homem, que se comunicou ou propagou de nossos primeiros pais, a todos nós, pela qual nós - mergulhados em más concupiscências, avessos a todo o bem, inclinados a todo o mal, cheios de toda impiedade, de descrenças, de desprezo e de ódio a Deus - nada de bom podemos fazer, e, até, nem ao menos podemos pensar por nós mesmos. Além disso, à medida que passam os anos, por pensamentos, palavras e obras más, contrárias à lei de Deus, produzimos frutos corrompidos, dignos de uma árvore má (Mat 12,33 ss).

De igual modo subscreve Catecismo de Heidelberg, 1563, questão 7:

De onde vem, então, esta natureza corrompida do homem? Resposta: Da queda e desobediência de nossos primeiros pais, Adão e Eva, no paraíso. Ali, nossa natureza tornou-se tão envenenada, que todos nós somos concebidos e nascidos em pecado. (1) Gn 3; Rm 5:12,18,19. (2) Sl 51:5; Jo 3:6.

Logo, Tolstói se equivoca ao apregoar a possibilidade de ensinar a moral cristã a homens que possuem a natureza caída. Os homens só passarão a cumprir a vontade de Deus a partir de uma atuação sobrenatural. A remissão e a restauração do arbítrio são obras divinas, González [2002, p.213] comenta:

Quando somos redimidos, a Graça de Deus passa a atuar em nós, levando-nos do estado miserável em que nos encontramos para um estado novo, em que a nossa liberdade é restaurada, tanto para pecar como para não pecar. No céu, por fim, teremos somente liberdade para não pecar. Como no caso anterior, isto não quer dizer que não teremos liberdade alguma. Ao contrário, na vida celestial, continuaremos tendo diversas alternativas, mas nenhuma delas será pecado.

A questão é que não poderíamos esperar outra coisa de alguém que mutila o texto sagrado para retirar dele toda a metafísica. Quanto à doutrina anárquica, esta não pode ser sustentada pelo cristão que tem apreço pela Escritura. Esta legitima o poder governamental e o coloca como um instrumento que Deus utiliza para refrear a depravação humana (vide Romanos 13. 1-7). Precisamos do governo e, como cristãos, temos obrigações para com o Estado. Calvino nos lembra que “é da vontade de Deus que o mundo seja governado dessa maneira”, e diz mais: “desprezar a providência daquele que é o Autor do governo civil [iuris politici] é declarar guerra contra ele mesmo”.[4]


O Estado não pode se agigantar e atuar em áreas que não são de sua competência. Ele não tem a autoridade derradeira, mas serve a Deus, incumbiu aos governantes punir o mal e promover o bem. Contudo, abolir o poder estatal é algo que não podemos apregoar, pois, contradiz o ensinamento bíblico e nos coloca como rivais do Soberano, que instituiu os poderes terrenos. E se o Estado é autoridade que provém de Deus, logo, ele deve ser visto como uma dádiva para a sociedade e não como um empecilho ao seu desenvolvimento. Diante do que foi exposto, concluímos que o anarquismo tolstoiano deve ser rejeitado. 

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Referências bibliográficas:

BAKUNIN, Deus e o Estado, São Paulo: Hedra, 2011.
BERKHOF, Louis. A História das Doutrinas Cristãs. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,1992.
GONZÁLEZ, Justo L. Uma História Ilustrada do Cristianismo. São Paulo: Volumes 1. Edições Vida Nova, 2002.
LÖWY, Michel, Redenção e Utopia: O judaísmo libertário na Europa Central: um estudo de afinidade eletiva, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PROUDHON, Pierre Joseph, A Propriedade é um Roubo e outros escritos anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 2008.
TOLSTÓI, Liev, Minha Religião. São Paulo. A girafa,2011.
¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬_____________, O Reino de Deus está em Vós, Rio de Janeiro: BestBolso,2011.
_____________, Os Últimos Dias. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2011.
THOREAU, Henry David, A Desobediência Civil. Porto Alegre: LP&M, 1997.
WOODCOCK, George, História das Idéias e Movimentos Anarquistas, Vol.1. A Ideia. Porto Alegre: LP&M 2010.

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Notas:
[1] WOODCOCK, George. História das ideias e Movimentos Anarquistas, Vol.1. A Ideia. Porto Alegre: LP&M 2010.
[2] PROUDHON, Pierre Joseph, A Propriedade é um Roubo e outros escritos anarquistas. Porto Alegre: LP&M 2008, pág 26.
[3] Paul Eltzbacher, judeu alemão, Doutor em Direito e pesquisador do Anarquismo.
[4] CALVINO. João, Romanos. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, p. 460-461. 
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Autor: Pr. Thiago Oliveira
Fonte: Teologia Brasileira

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