sábado, 30 de maio de 2015

O Canto do Galo



  Havia um galinheiro na casa de Anás e de Caifás? Que galo cantou quando Pedro negou Jesus se não havia galos naquela região?
  Mateus 26.69-75 e textos paralelos descritos nos outros evangelhos apresentam uma das mais fascinantes histórias na vida de Pedro, discípulo do amado Mestre. Costumeiramente, tem se aceito com toda naturalidade que o “canto do galo” referido por Jesus quando falou antecipadamente que Pedro o trairia, era realmente o cantar de um galo, uma ave. No entanto, pode perfeitamente ser que o canto do galo não fosse o canto de uma ave; e desde o começo não pretende significar isso.
  Acima de tudo, a casa do Sumo Sacerdote estava no centro de Jerusalém. E, certamente, não haveria um galinheiro no centro da cidade. De fato, havia uma regra na lei judaica que era ilegal ter galos e galinhas nas cidades santas. Jerusalém era tida como uma cidade santa e as galinhas sujariam a cidade por questões higiênicas. De acordo com o Baba Qama 7.7 era proibido “criar galinhas em Jerusalém por causa das coisas santas”.
  Por isso, havia uma ordem rabínica seguida à risca pela população: essa ordem era contra qualquer criação ou manutenção de galos ou galinhas dentro das muralhas da cidade santa, visto que eles, além de fazerem suas necessidades físicas em qualquer lugar, também ciscavam procurando pequenos bichos para se alimentarem, produzindo então, coisas impuras, violando assim, a lei da pureza em Israel, que era coisa muito importante para eles.
  Mas, então se não se podia criar ou manter vivo galos e galinhas dentro dos portões da cidade, especialmente no centro, na casa do Sumo Sacerdote em especial, de onde apareceu esse galo para cantar? Era realmente uma ave ou esse termo “o cantar do galo” poderia se referir a alguma outra coisa que não fosse uma ave?
  Muitos cometem equívocos porque não conhecem a cultura, o cotidiano, o dia a dia da população judaica e romana dos tempos bíblicos; e, por causa disso, não conseguem captar o que o texto realmente quis dizer na sua origem. O que texto quer dizer com canto do galo?
  O segredo todo está na forma em que os romanos dividiam a noite. Esta era dividida em quatro vigílias de aproximadamente 3 horas cada uma:
a) Prima vigília: do pôr do sol até às 9 horas, também chamado de vigília do entardecer.
b) Secunda vigília: das 9 horas à meia-noite, chamada de vigília da meia-noite.
c) Tertia vigília: de zero hora às 3 horas, também conhecida como vigília do canto do galo.
d) Quarta vigília: das três até a aurora, chamada de vigília do amanhecer.
  Essas quatros vigílias determinavam o período das três horas do serviço da guarda romana. Os judeus inicialmente dividiam a noite em três vigílias: a primeira, “princípios das vigílias” (Lamentações 2.19), ia desde o sol posto até às 10 horas da noite; a segunda, a vigília média” ou da meia-noite (Juízes 7.19) principiava  às 10 horas da noite e prolongava-se até às duas horas da madrugada; e, a terceira, a “vigília da manhã” (1 Samuel 11.11), desde as duas horas da até ao nascer do sol. No entanto, em tempos posteriores, na época do império romano a noite passou a ser dividida, segundo o costume dos romanos, em quatro vigílias (desde as 6 horas da tarde às 6 horas da manhã), de três horas cada uma (Mateus 14.25 e Lucas 12.38). Em Marcos (13.35), as quatro vigílias são designadas pelo nome especial de  cada uma. Veja texto:
  Marcos 13.35-37. Vigiai. Pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã; para que, vindo ele inesperadamente, não vos ache dormindo. O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai!
  Os judeus com frequência usavam uma forma abreviada quando se referiam a essas vigílias da noite. “Tarde” era uma expressão com a qual se referiam ao fim da vigília, ou seja, 21h00min. “Meia-noite” indicava o fim da segunda vigília. Você observou? “Cantar do galo” era o termo usado por eles para o fim da terceira vigília, ou seja, três horas da madrugada. E “pela manhã” o modo como se referiam ao fim da quarta vigília, ou seja, às seis horas da manhã. Jesus pode voltar em qualquer das quatros vigílias romanas, que terminavam respectivamente, às 21 horas, 24 horas, 3 horas e 6 horas da manhã.
  O que isso tudo tem a ver com a história de Pedro? É que o “canto do galo” era a expressão usada naquela época no império romano para se referir ao toque do trombeta tocada pelo soldado romano avisando a todos o final da terceira vigília da noite, ou seja, três horas da manhã. No primeiro século, assim em Jerusalém como em todas as cidades importantes denominadas pelo império romano, esse toque da trombeta era conhecido como “canto do galo”.
  O final de cada vigília e o início da próxima era assinalado por um toque de trombeta. Assim, da mesma forma como nas vigílias anteriores, ao final da terceira vigília um sinal era dado pelos guardas romanos e ocorria a troca da guarda. Esse soar da trombeta às três horas da manhã era chamado em latim “gallicinium” e de “alektorophonia” em grego e ambos significavam em português “o canto do galo”. Essa expressão romana adveio do fato de que os galos normalmente cantam de madrugada, embora não haja horário previsto para as aves o fazerem.
  Portanto, se isso realmente foi dessa forma, Jesus estava identificando a hora exata da última negação de Pedro: segundos antes das três horas manhãs, quando ocorria o “gallicinium”. Se fosse um galo ave, não haveria um tempo específico para o cumprimento da palavra de Jesus, pois os galos são imprevisíveis e cantam inúmeras vezes na madrugada. Mas, lembremo-nos que era proibido ter galos ou galinhas dentro dos muros da cidade. Na verdade, não era um sinal que seria dado por uma ave, seria um sinal militar, uma trombeta, que demoliria o coração e a alma de Pedro. Não seria o canto de um galo qualquer, cujo barulho não se nota ao longe, mas a trombeta do soldado que ecoaria a negação de Pedro por toda a cidade, como que anunciando a triste e grande traição operada pelo apóstolo.
  Todo mundo em Jerusalém sabia de toque da troca de guarda às 3 horas da manhã no castelo de Antônia e conheciam que o toque da trombeta era chamado de “canto do galo”. Jesus não falara de um corriqueiro canto de um galo no fundo do quintal da casa da Aná e de Caifás, mas do barulho ensurdecedor da trombeta que se espalhava por toda Jerusalém, soando forte nos ouvidos de Pedro, balançando sua alma, fazendo com que chorasse copiosamente por ter traído a Jesus.
  Como explicar o fato, então, do evangelista Marcos narrar a predição de Jesus de uma forma mais específica que os demais evangelistas? Em Marcos 14.30, Jesus diz a Pedro: “Antes que o “galo cante” duas vezes, três vezes me negarás me negarás”. O que acontecia é que durante os tempos festivos, devido ao grande número de pessoas na cidade de Jerusalém a trombeta era com frequência tocada duas vezes, primeiro em uma direção e depois de alguns minutos em outra direção. Como era época da Páscoa, a trombeta tocou duas vezes. Isso nos assegura que a terceira negativa de Pedro aconteceu imediatamente segundos antes das 3 horas da madrugada.

  Outra explicação é dada pelo historiador Plínio que afirma o seguinte: o toque da trombeta da meia-noite era conhecido como o “primeiro cantar do galo”; o toque das três horas da manhã era conhecido como o “segundo cantar do galo”. Desta forma, Plínio sugere que a primeira negação teria acontecido momentos antes da meia-noite e a última negação de Pedro exatamente segundos antes das 3 horas da madrugada. A segunda negação teria ocorrido no espaço entre a meia-noite e às três horas da manhã, o que é também uma explicação extremamente viável para o acontecido.


Érik Basso dos Santos.  http://expressarpublico.blogspot.com.br/

Texto extraído do livro "Como Entender os Textos Mais Polêmicos da Bíblia", de Jaziel Guerreiro Martins, Editora A. D. Santos.

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