domingo, 31 de maio de 2015

A Palavra de Deus é Viva e Eficaz - João Calvino

A palavra de Deus é viva e eficaz - (Hb 4.12). Tudo o que ele diz aqui com relação à eficácia da Palavra é com o propósito de que soubessem que não poderiam desmerecê-laimpunemente. É como se dissesse: Sempre que o Senhor se nos acerca com sua Palavra, ele está tratando conosco da forma mais séria, com o fim de mover todos os nossos sentidos mais profundos. Portanto, não há parte de nossa alma que não receba sua influência. Entretanto, antes de darmos um passo adiante, carece que consideremos se o apóstolo está falando da Palavra em termos gerais, ou se ele está fazendo, aqui, uma referência particular àqueles que crêem. E geralmente aceito que a Palavra de Deus não é igualmente eficaz em todos. Ela aplica seu poder nos eleitos, com o fim de humilhá-los através de um genuíno reconhecimento do que na verdade são, para que fujam e se escondam na graça de Cristo. Isso jamais aconteceria, se a Palavra não penetrasse as profundezas do coração. A hipocrisia, que se acha presente nos admiráveis e infinitamente tortuosos recantos dos corações humanos, deve ser erradicada. Devemos estar não só humildemente dispostos a espicaçar-nos e a afligir-nos, mas também a ser profundamente feridos, para que, prostrados pelo senso da morte eterna, aprendamos amorrer para nós mesmos. Jamais seremos renovados emtoda a nossa mente (como Paulo requer em Efésios 4.23) até que nosso velho homem haja sido morto pelo gume dessa espada do Espírito. Eis a razão por que Paulo diz em outro lugar [Fp 2.17] que aqueles que crêem são oferecidos em sacrifício a Deus, visto que não podem ser trazidos à obediência a Deus senão pela morte de seus própriosdesejos, bem como não podem ver a luz da sabedoria divinasenão pela destruição de sua sabedoria carnal. Tudo isso não pode aplicar-se no caso dos incrédulos. Oudisplicentemente desconsideram a Deus quando lhes fala, e dessa forma motejam dele, ou bradam contra sua doutrina e se levantam insidiosamente contra ela. Sendo a Palavrra de Deus semelhante a um martelo, o coração deles ésemelhante a uma bigorna, de modo que sua dureza repele os golpes por mais fortes que sejam. Eles se acham muito longe para que a Palavra de Deus penetre neles, até ao ponto de dividir alma e espírito. Desse modo parece que essa cláusula deve restringir-se somente àqueles que crêem, visto que unicamente eles podem ser examinados no mais profundo de seu ser.
Em contrapartida, o contexto do apóstolo revela que este é um princípio geral que se aplica também aos incrédulos.Embora se oponham à Palavra de Deus com um coração deferro ou de aço, não obstante devem necessariamente serrefreados por seu próprio sentimento de culpa. Riem, éverdade, mas é um riso sardônico, porque sentem como seestivessem sendo sufocados interiormente, e forjam todaespécie de evasivas com o intuito de evitar a aproximação dotribunal de Deus. Por mais indispostos que eles sejam, sãoarrastados para a presença dessa mesma Palavra que tãoveementemente ridicularizam, para que sejam comparadosapropriadamente com cães furiosos, que mordem e esganam a corrente a que se acham presos, embora sem qualquer efeito,porque ainda permanecem firmemente acorrentados. Alémdisso, embora o efeito dessa Palavra talvez não se reveleimediatamente, no mesmo dia, contudo o resultado seráinevitável, e aquele que a prega descobrirá que a ninguém apregou em vão. Cristo certamente falou em termos deaplicação geral quando afirmou: "Quando ele vier convencerá o mundo..." [Jo 16.8]. O Espírito exerce esse juízo através da pregação do evangelho.
Finalmente, ainda quando a Palavra de Deus nem sempremanifeste esse poder nos homens, todavia ela, em algumamedida, o possui em si mesma. O apóstolo está discutindo,aqui, acerca da natureza e da função própria da Palavra para opropósito único, a fim de que saibamos que assim que elasoa em nossos ouvidos, nossas consciências são citadas acusativamente diante do tribunal de Deus. É como sedissesse: Se porventura alguém presume que a Palavra deDeus ecoa no vazio, ao ser proclamada, esse tal está fazendouma grande confusão. Essa Palavra é algo vivo e cheio depoder secreto, a qual não deixa nada no homem que não sejatocado. A suma de tudo isso é que tão logo Deus abra seussantos lábios, todos os nossos sentidos também devem abrir-se para receber sua Palavra, porque não faz parte de suavontade permitir que suas palavras sejam semeadas em vão,nem tampouco feneçam ou desapareçam no solo da vida,senão que desafiem eficazmente as consciências humanas,até que as tragam jungidas ao seu domínio. Ele, pois, dotousua Palavra com tal poder, para que a mesma perscrute cada área de nossa alma, para revelar os escrutínios dos pensamentos, para decidir entre as afeições e para manifestar-se como juiz.
Aqui surge uma nova questão, se essa Palavra deve serconsiderada como sendo a lei ou o evangelho. Os queentendem que o apóstolo está falando da lei, evocam estestestemunhos paulinos: que é um ministério de morte; que é aletra que mata [2 Co 3.6-7]; que não opera outra coisa senãoira [Rm 4.15], e outros da mesma natureza. Mas aqui oapóstolo realça seus efeitos divergentes. E, por assim dizer,um gênero de matança que faz viva a alma, e que se dá atravésdo evangelho. Devemos entender, pois, que quando o apóstolodiz que ela é viva e eficaz, ele está a referir-se à doutrinageral de Deus. Paulo dá testemunho de tal efeito [2 Co 2.16],dizendo que de sua pregação exala um odor de morte para amorte daqueles que não crêem, bem como de vida para a vidados fiéis, de modo que jamais fala em vão, sem que conduzaalguns à salvação, compelindo outros à destruição. Esse é o poder de atar e desatar que o Senhor conferiu a seus apóstolos [Mt 18.18]. Esse é o poder do Espírito no qualPaulo se gloria [2 Co 10.4]. Aliás, ele jamais nos prometesalvação em Cristo sem, em contrapartida, pronunciarvingança sobre os incrédulos que, ao rejeitarem a Cristo,trazem morte sobre si próprios.
Além do mais, é mister que observemos que o apóstolo, aqui, está a discutir a Palavra de Deus que nos é comunicada pelo ministério dos homens. São dementes e mesmo danosas todas as noções de que, não obstante a Palavra interna sercertamente eficaz, aquela que emana dos lábios humanos émorta e carente de qualquer efeito. Admito que a eficáciacertamente não flui da língua humana, nem consiste em seupróprio som, senão que deve ser atribuída totalmente ao Espírito Santo; no entanto não impede o Espírito demanifestar seu poder na Palavra que é proclamada. PorqueDeus mesmo não fala senão através dos homens; ele tomagrande cuidado para que sua doutrina não seja recebida comdescaso por seus ministros serem homens. E assim, quandoPaulo diz que o evangelho é o poder de Deus [Rm 1.16],deliberadamente distinguiu sua própria pregação com talhonra, a qual o apóstolo percebeu ser aprovada por alguns e rejeitada por outros. Ao ensinar-nos em outro lugar [Rm 10.8-10] que a salvação nos é conferida pelo ensinamentoproveniente da fé, ele expressamente diz que essa é a doutrina que é anunciada. Vemos que Deus semprerecomenda publicamente a doutrina que nos é ministradapelo esforço humano, com o propósito de induzir-nos a recebê-la com reverência.
Ao dizer que a Palavra é viva, é preciso entender talexpressão "em ralação aos homens". Isso se faz ainda mais evidente à luz do segundo adjetivo. Ele mostra que espéciede vida ela possui ao prosseguir chamando-a eficaz. Oobjetivo do apóstolo era ensinar-nos o gênero de utilidadeque a Palavra tem para nós. A Escritura faz uso da metáforada espada em outras passagens, o apóstolo, porém, não secontenta com uma simples comparação. Ele diz que a Palavra de Deus é mais cortante que qualquer espada; aliás, umaespada de dois gumes, porque em sua época era freqüente ocaso de espadas que só cortavam de um lado, e do outro não.
Penetra até... etc. O substantivo alma amiúde significa o mesmo que espírito, mas quando são ambos associados, aprimeira inclui todas as afeições, enquanto que o último in­dica a faculdade a que chamam intelectual. Assim também em 1 Tessalonicenses 5.23, quando Paulo ora a Deus para que guardasse o espírito, a alma e o corpo deles incorruptíveis até à vinda de Cristo, ele quer dizer simplesmente quepermanecessem puros e santos em sua mente e vontade eações exteriores. Semelhantemente, quando Isaías diz [26.9];"Com minha alma suspiro de noite por ti, e com o meuespírito dentro em mim", certamente que sua intenção eraque seu esforço em buscar a Deus era tão profundo, queaplicava sua mente tanto quanto seu coração a tal intento.Estou consciente de que há aqueles que apresentam umainterpretação diferenciada. Mas espero que toda pessoasensível esteja disposta a concordar comigo.
Voltemos à passagem que ora estamos a considerar. APalavra de Deus penetra ao ponto de dividir alma e espírito.Significa que ela testa toda a alma de uma pessoa. Ela exploraseus pensamentos e sonda sua vontade e todos os seusdesejos. O mesmo significado se acha implícito na frase jun­tas e medulas. Significa que não há nada tão difícil ou sólido numa pessoa, nada tão profundamente oculto que a eficácia da Palavra não penetre até lá. Isso é o que Paulo diz em 1Coríntios 14.24, ou seja: que a profecia tem o poder deconvencer e julgar os homens, a fim de que os segredos docoração se manifestem. Visto que a função de Cristo édescobrir e trazer a lume os pensamentos que fluem dosrecessos mais profundos do coração, em grande medida ele o faz através do evangelho.
A Palavra de Deus, portanto, é Kp itikóç (=discernidora), porque traz à mente humana a luz do conhecimento, como se a tirasse de um labirinto onde jazia outrora enredada. Não há trevas mais densas do que a incredulidade, e a hipocrisia nos cega de uma forma terrificante. A Palavra de Deus dissipa tais trevas e faz a hipocrisia bater em retirada. É daqui queemana o discernimento e o juízo que o apóstolo menciona,visto que os vícios que se ocultam sob a falsa fachada devirtudes começam agora a descortinar-se e sua aparência sedesvanece. Ainda quando os réprobos fiquem por algumtempo ocultos em seus covis, descobrirão que até mesmo ali a luz da Palavra finalmente penetrou, de modo que nãopodem escapar do juízo divino. Daqui se ergue seu lamento e deveras seu furor, porquanto se não forem estremecidospela Palavra, jamais perceberiam sua loucura. Tentam escaparou evadir-se e evitar seu poder, ou ainda procedem como senão a tenham notado. Mas Deus não permite que logremsucesso. Portanto, enquanto caluniam ou injuriam a Palavrade Deus, admitem, embora a contra gosto ou relutantemente,que sentem seu poder em seu íntimo. 

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