No curso ministerial de teologia da Igreja em que congrego – Igreja Reformada Ortodoxa – resolvemos preparar e ministrar seis breves aulas sobre Teologia Reformada e política. Inicialmente, as aulas seriam apenas para os que fazem o nosso modesto curso. Mas, convencidos da necessidade de toda igreja, resolvemos transformá-las em aulas abertas a toda congregação. O artigo que escrevo é uma suma da parte que me coube, a saber, o marxismo e sua relação com a realidade e com a Igreja. Evidentemente não passa nem perto de ser exaustivo. É apenas uma contribuição a um debate que tem sido levado a cabo por irmãos e pensadores muito mais capacitados.
Insistentemente tem sido estudado, debatido e combatido por nós, cristãos bíblicos e conservadores, o que comumente se denomina marxismo cultural. Afirmo, a título de explicação, que todo o marxismo deveria, a princípio, ser tratado como cultural, na medida que está inserido como ideia ou ideologia em qualquer cultura determinada historicamente. Entretanto, o termo foi cunhado para definir uma nova visão criada pelos próprios marxistas para responder teórica e praticamente a uma série de desafios ao seu pensamento, ainda no início do século XX.
Na perspectiva de Karl Marx e de seus seguidores, o socialismo era uma verdade inexorável, que seria infalivelmente vitoriosa ainda nos estertores do século XIX e no alvorecer do XX. As contradições inerentes ao capitalismo, catapultadas pelo que eles julgavam ser o motor dialético da História, a luta de classes, levariam a ruína do capital e a vitória final do comunismo. A perspectiva clássica marxista era que o conflito mortal entre a burguesia detentora da propriedade privada sobre os meios de produção e o proletariado produtor da riqueza, mas alienado dela e do resultado final de seu trabalho, geraria uma nova sociedade governada pelos interesses do proletariado, o socialismo. Note que o socialismo, para os marxistas, ainda não seria o fim da História; o fim só seria alcançada na “plenitude” comunista, a perfeita e escatológica sociedade.
Marx não via sua doutrina como ideologia. Para ele, ideologia tinha um sentido bastante negativo, na medida em que era uma ferramenta para falsear a realidade a serviço da classe dominante. Ele a via como uma cosmovisão. Seus seguidores ainda a veem assim, sendo capazes de explicar a totalidade do cosmos. Assim escapam de si mesmos, retirando de suas doutrinas a pecha de falseadoras da realidade e, ao mesmo tempo, são alçadas ao status de explicadoras da realidade. Insisto, o marxismo é só uma ideologia e, como tal, possui um fundamento religioso por ser idólatra, gnóstico e oferece um simulacro de redenção e de escatologia. Idólatra porque retira Deus do seu lugar primeiro. Gnóstico porque enxerga parte da criação como intrinsecamente má. Falsamente redentor porque credita ao homem a auto redenção e deposita no comunismo a esperança do fim da História.
No seu modo mais clássico, o marxismo alimenta a ideia que todo modo de produção é formado por uma imbricada teia de infra e superestrutura. Resumidamente, a infraestrutura seria a base econômica, e a superestrutura as relações sociais, políticas, jurídicas e culturais. Em última análise, a infraestrutura determinaria a superestrutura. Entretanto, essa visão materialista da História foi colocada em xeque ainda no começo do século XX. Na Europa, o socialismo Fabiano, os reformistas da social democracia, a própria Igreja Romana e as protestantes propunham um caminho diferente, marcadamente reformista e pacífico. Ao fim da primeira guerra, os marxistas que esperavam uma explosão revolucionária tiveram que contentar-se com a experiência russa de 1917, experiência que derrubou de vez o princípio marxista clássico de que o socialismo se daria em um capitalismo plenamente desenvolvido e prenhe de contradições. A revolução russa ocorreu em um país agrário e atrasado. O que surgiu dessa experiência foi uma aberração totalitária, burocrática e assassina que recebeu o nome de marxismo-leninismo.
É assim, contextualizado, que devemos entender o surgimento do chamado marxismo cultural ou neo marxismo. O marxismo cultural nasceu da combinação dos pensamentos do marxista italiano Antonio Gramsci e da Escola de Frankfurt, um grupo de intelectuais marxistas que se reuniram nessa instituição para repensar o marxismo e sua aplicação. Gramsci, após viver na URSS e de sua experiência sob o fascismo de Mussolini, entendeu que era necessário uma releitura do marxismo, já que o modelo clássico de Marx e a aplicação da doutrina na Rússia agrária foram um retumbante fracasso. Ele percebeu que proletariado tinha outras lealdades que não só de classe (família, religião, esporte, etc.) havia sido "corrompido" pelas "benesses" capitalistas e já não se encontrava tão disposto a aventuras revolucionárias. Propôs, então, uma reavaliação que se traduziria na inversão da equação infraestrutura determinando a superestrutura. O ponto central a ser atacado não seria mais, segundo ele, as condições materiais ou objetivas, mas as condições subjetivas, isto é, a cultura no seu sentido mais amplo. Gramsci defendeu a formação do que ele chamou bloco histórico, formado pelo proletariado, minorias oprimidas e intelectuais orgânicos dirigidos pelo partido comunista. Tal bloco histórico deveria alcançar uma hegemonia cultural, disputando com a burguesia os corações e mentes das "massas oprimidas". A disputa pela hegemonia cultural seria a nova estratégia revolucionária.
A Escola de Frankfurt absorveu e aperfeiçoou a nova estratégia. Intelectuais marxistas como Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Erich Fromm, fundadores da instituição, levaram adiante a ideia não só da subversão, mas da destruição da cultura, através da desconstrução das tradições familiares, religiosas, políticas e jurídicas. Um dos principais objetivos era e continua sendo destruir a crença em Deus. Deus é o entrave que os impede de desorganizar, subverter e destruir a cultura e as tradições. A estrutura familiar tradicional, conforme criada por Deus, também deveria e deve ser, segundo eles, destruída. O despejamento de denúncias e ataques contra a heterossexualidade e contra o papel do homem conforme a criação também é parte da destruição da ordem vigente. O feminismo igualitarista, a teoria dos gêneros, o movimento negro radical, o “ambientalismo” violento, a militância LGBT fazem parte do pacote marxista travestido de movimentos justos e aceitáveis. Todos eles têm em comum o fato de sustentarem-se em "minorias oprimidas" falsamente vítimas da "opressão" capitalista. A agenda de tais movimentos é anticapitalista e claramente comunista.
Fica bastante claro que as manifestações do marxismo cultural em nossa época e realidade são indiscutíveis. O Brasil é governado por marxistas que têm a perspectiva estratégica do marxismo cultural. O PT a aplica com extrema eficiência; seus aliados são movidos pelo mesmo objetivo. No entanto, o maior perigo para os crentes está na absorção desses ideais revolucionários e antibíblicos pela Igreja. Desde o século XIX, a Igreja tem sido permeável ao marxismo. Dói na carne constatar que um dos principais veículos de propagação do marxismo nas Igrejas são pastores e teólogos de confissão tradicional. Por exemplo, o Evangelho Social do pastor americano/alemão Walter Rauschenbusch, no século XIX, que ao priorizar, mesmo que bem intencionado o papel social da Igreja (sob a pressão das péssimas condições de vida durante a segunda revolução industrial) se equivocou ao desfocar o objetivo da mesma, que é, sobretudo, adorar a Deus.
Mas é na fé Romana que o marxismo encontrou sua morada mais alvissareira. Desde a publicação da encíclica Rerum Novarum pelo papa Leão XIII, em 1891, os católicos já expressavam sua preocupação com as questões sociais e, ao mesmo tempo, com a necessidade de responder ao marxismo. Nos anos sessenta, certamente fruto das inquietações da época, o Concílio Vaticano II aprofundou as doutrinas sociais católicas, agora mais influenciadas pelo liberalismo teológico e pelo próprio marxismo. As bases que permitiriam o surgimento da Teologia da Libertação estavam dadas. Na América Latina, liderados por teólogos católicos como Leonardo Boff, Jon Sobrino e Juan Luis Segundo, a Teologia da Libertação aprofundava seu diálogo com o marxismo sob a égide de que o evangelho exige a "opção preferencial pelos pobres", estigmatizando Jesus como um líder revolucionário e reduzindo-o a um ativista político. A Teologia da Libertação foi responsável no Brasil pelo aprofundamento do antibíblico e improvável diálogo entre cristianismo e o marxismo. A partir dela foram lançadas as bases para o surgimento do PT e da CUT, já que parte da liderança esquerdista brasileira nasceu nos movimentos sociais católicos.
"A Teologia da Missão Integral é uma variante protestante da Teologia da Libertação"! Essa afirmação não é minha, mas de um dos principais teólogos da TMI (Teologia da Missão Integral). A TMI é uma pretensa renovação missionária protestante na América Latina, baseada na perspectiva do diálogo entre o marxismo e a Igreja de Cristo, na necessidade de ampliar a tarefa missionária com ações sociais e preocupação com as condições de vida do evangelizado; porém, não a partir das Escrituras, como deveria ser, mas de pressupostos marxistas como classes sociais, luta de classes, estatismo e consciência crítica. Os fundamentos da TMI e da TL são os mesmos: transformar o evangelizado em um potencial soldado das transformações sociais. O missionário cristão não deve, segundo eles, pregar a Palavra Redentora somente, mas influenciar as organizações sociais e a consciência, tornando-a crítica e anticapitalista, sob um verniz de caridade e atenção aos pobres. Não que Deus não nos tenha ordenado cuidado com os mais pobres, mas o fez sob a lógica única e inerrante de sua Palavra.
Concluo afirmando que não há possibilidade de um diálogo entre o marxismo e o cristianismo. São fundamentados por pressupostos antagônicos e irreconciliáveis. O cristianismo bíblico sustenta-se em uma premissa fundante, irrevogável, eterna e perfeita, no próprio Deus. O marxismo é uma ideologia constitutiva de uma cosmovisão antropocêntrica, essencialmente falha e idólatra. Os crentes, por sua vez, devem se preocupar e se envolver com a política, mesmo porque cremos que tudo pertence à soberania de Deus e tudo o que Ele fez é bom. A ideia falaciosa e herética que há partes na criação que são estruturalmente más deve ser evitada. Calvino, em suas "Institutas", via com apreço a autoridade e o governo civil como servos de Deus que deviam ser respeitados e considerados. Para o cristão reformado não há separação entre o sagrado e o profano; por isso, debater e intervir politicamente na sociedade é saudável. Evidentemente que nossa intervenção deve ser balizada pela Palavra de Deus. Se estivermos fundamentados na Palavra de Deus, nossas predileções partidárias, nossas escolhas políticas e nosso voto excluem qualquer possibilidade de aproximação com partidos de esquerda ou com posições de extrema direita inclinadas ao fascismo e a violência. No fim, todas as coisas devem ser feitas para glória de Deus, inclusive a política. Mesmo que nenhum sistema econômico ou regime político sejam perfeitos em razão da queda, podemos nos voltar para políticos e propostas que se aproximem da vontade soberana de Deus exposta irrevogavelmente nas Escrituras Sagradas.
SOLI DEO GLORIA!
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Autor: Davi Peixoto
Divulgação: Bereianos
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