Evidências históricas anteriores à Constantino
Sem recorrermos ao Novo Testamento como prova histórica,[1] é possível evidenciar documentalmente que os cristãos observaram o primeiro dia da semana desde os seus primórdios? Devemos recordar que o argumento de Ellen G. White é que o abandono do sétimo dia para a guarda do domingo somente ocorreu em 321 d.C. quando Constantino promulgou a “Lei Dominical”. Leiamos o que registraram os pais da Igreja, nos séculos que antecederam à Constantino, e a nossa conclusão poderá descansar sobre o firme alicerce da verdade.
Didaquê
O mais antigo manual de preparação de batismo e discipulado da Igreja Cristã (80-90 d.C.) conhecido por Didaquê instrui como deveria ser a vida comunitária. A orientação era de que “reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacríficio de vocês seja puro.”[2] A expressão dia do Senhor, em grego kuriakê heméra e, em latim Dies Domini tornou-se o termo para indicar o primeiro dia da semana, a que chamamos de Domingo, o dia em que o Senhor ressuscitou!
Inácio de Antioquia
Inácio de Antioquia em sua Carta aos Magnésios (110 d.C.) declara que
aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte. Alguns negam isso, mas é por meio desse mistério que recebemos a fé e no qual perseveramos para ser discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre.[3]
A sistematização doutrinária exposta por Inácio aponta para a transição da antiga para a nova aliança. Esclarece que a ressurreição de Cristo é a causa da descontinuidade e acomodação para a nova ordem, e, isto inevitavelmente envolve a mudança do dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana, inaugurando uma nova era.
Plínio “o jovem”
Conhecido por ser justo em seus julgamentos, Plínio “o jovem”, segundo o seu relato, procurava através de tortura e questionamentos descobrir o grau de culpabilidade do réu. Num período em que o imperador romano Trajano exigia a prisão, tortura, e dependendo do caso a pena de morte dos cristãos, e, neste contexto Plínio escreve uma carta questionando do motivo de prender e executá-los, se neles nenhum motivo de culpa era encontrado. Em 113 d.C., o relator descreve que os cristãos, sob tortura, confessaram que “unânimes em reconhecer que sua culpa se reduzia apenas a isso: em determinados dias, costumavam comer antes da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo como a um deus...”.[4]
O testemunho do governador pagão expressou admiração com o costume cristão. Não havia nada de absurdo, nem ofensivo naquela religião. A menção de determinados dias confirma que as suas reuniões seguiam uma norma semanal, e que antes do amanhecer se reuniam.
A carta a Diogneto
O desconhecido escritor da Carta a Diogneto afirma que “não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados...”.[5] Em 120 d.C., o contraste entre cristãos e judeus estava estabelecido, de modo que a guarda do sétimo dia era visto pelos cristãos como sendo uma superstição judaica, e não como algo normativo para a Igreja.
A carta de Bárnabé
Um importante documento histórico apresenta alguns traços do Cristianismo do século II. A “carta de Barnabé” não tem autoria certa, mas pelo seu conteúdo a crítica literária especializada em patrística é de consenso datá-la entre 134-135 d.C.. O autor interpreta o significado do sábado. Ele declara que
vede como ele diz: não são os sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus.[6]
O seu conteúdo é abertamente contrário aos sistemas judaizantes. Nesta interpretação acerca do sábado, o autor contrasta entre o entendimento do Judaísmo e o Cristianismo.
Justino de Roma
O apologista cristão expressou que “no dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se lêem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas.” Noutro lugar ele continua
celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.[7]
A preocupação de Justino não era de firmar novas doutrinas, mas apenas de expor aos seus inquisitores o que era crença e prática tradional dentro do Cristianismo. A sua I Apologia é datada em 155 d.C. apontando para a proximidade da era apostólica, um período de pureza na fé cristã.
Irineu de Lião
Enquanto Justino defendia os cristãos diante dos governadores pagãos, Irineu se dedicava a atacar as heresias que brotavam dentro do Cristianismo. Irineu como apologista analisava os desvios doutrinários que haviam se infiltrado dentre os cristãos. Especificamente para o nosso propósito selecionamos os heréticos que se nomeavam ebionitas,[8] que segundo Irineu eles “praticam a circuncisão e continuam a observar a Lei e os costumes judaicos da vida e até adoram Jerusalém como se fosse a casa de Deus.”[9] Além de negar a salvação somente pela graça e a sua suficiência em Cristo, os ebionitas ensinavam uma redenção por meio da obediência da lei. Dentre os “costumes judaicos da vida” incluíam a prática de guardar o sétimo dia. Eles não entenderam a cessação dos aspectos civis da lei, nem o seu cumprimento cerimonial em Cristo, de modo que, persistiam em exigi-los como complemento da salvação, e nisto consistia a sua heresia. O livro Contra as Heresias é datado entre 180 a 190 d.C..
Tertuliano
No início do século III os cristãos demonstravam desprezo pelos costumes judaizantes. Em seu livro Da Idolatria, escrito entre os anos 200 e 210 d.C., Tertuliano declara que “não temos praticado os Shabbats ou, outras festividades judaicas, do mesmo modo que evitamos as práticas pagãs.”[10] A sua afirmação esclarece que, tanto a idolatria quanto práticas judaicas, eram evitadas no mesmo pé de igualdade. Não há dúvidas de que o descanso cristão no fim do século II era marcadamente o domingo, da mesma forma que o exclusivismo cristão testemunhava contra pagãos e judeus!
Conclusão
As evidências exigem um veredicto! A declaração da senhora Ellen G. White é insustentável por causa da ausência de fontes e de provas. A verdade está contra ela, pois todo testemunho histórico aponta para a celebração do primeiro dia da semana como sendo o santo dia de descanso, de comunhão e de celebração dos cristãos primitivos que antecederam a “Lei Dominical” de Constantino.
Todos os editos e leis foram promulgados para que os seus súditos incentivados por benefícios civis adotassem a religião cristã. O império romano estava se adaptando ao Cristianismo e não o contrário. Assim, o primeiro dia da semana tornou-se descanso civil, por ser tradicionalmente desde o final do primeiro século um dia reservado para o culto cristão.
Evidências históricas apontam para o favorecimento do imperador romano para o Cristianismo. O que vimos foi que a Igreja no período da Patrística não somente evitava a guarda do sétimo dia, mas desprezava-a como sendo superstição, idolatria e heresia judaizante! Não há no puro Cristianismo nenhum grupo, em nenhum lugar e período que celebrasse o sábado como o dia cristão.
Notas:
[1] Deixo esclarecido que aceito a plena inerrância e historicidade do Novo Testamento. Apenas não recorrerei a textos do NT para evitar uma discussão exegética, mantendo-me apenas na análise histórica extrabíblica. Aqueles que têm alguma dúvida quanto à historicidade do NT sugiro a leitura de Eta Linnermann, Crítica Histórica da Bíblia (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2009). Embora tenha pronto a argumentação bíblica, aqui será exposto apenas as evidências históricas.
[2] Didaquê in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 357.
[3] Inácio de Antioquia – Epístola aos Magnésios – Padres Apostólicos in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 94.
[4] Henry Bettenson, ed., Documentos da Igreja Cristã (São Paulo, ASTE, 4ªed., 2001), págs. 29-30.
[5] Carta a Diogneto – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 2, pág. 21.
[6] Carta de Barnabé – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 311.
[7] Justino de Roma, I Apologia in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ªed., 1995), vol. 3, págs. 83-84.
[8] Sabe-se que “eram judeus que aceitavam Jesus como o Messias ao mesmo tempo em que continuavam a afirmar que Paulo era um apóstota da lei, negavam o nascimento virginal, praticavam a circuncisão, observavam o Sábado, a Páscoa e outras festividades judaicas”. Robert G. Clouse, et. al., Dois reinos (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003), pág. 33.
[9] Irineu de Lião, Contra as Heresias in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ª ed., 1995), vol. 4, pág. 108.
[10] Tertulian, On Idolatry in: Ante-Nicene Fathers, vol. 3, pág. 70 citado em G.H. Waterman, Sabbath in: The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publishing, 1977), vol. 5, pág. 187. Este pai da Igreja é conhecido por causa da sua ortodoxia trinitária. O termo “Trindade” foi cunhado por ele, e Philip Schaff concede-lhe o título de fundador do Cristianismo Latino.
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Fonte: Estudantes de Teologia
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