domingo, 7 de dezembro de 2014

Os Puritanos e o Quarto Mandamento




O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. (Mc 2:27)

Neste ponto, os puritanos iam à frente dos reformadores. Estes últimos tinham seguido Agostinho e o ensino medieval em geral, negando que o domingo fosse, em qualquer sentido, um dia de descanso. Eles afiançavam que o sábado, prescrito pelo quarto mandamento, era um mandamento tipicamente judaico, prefiguração do “descanso” da relação da graça-fé com Cristo.

Eis a explicação de Calvino:


“...é extremamente apta a analogia entre o sinal externo e a realidade simbolizada, visto que a nossa santificação consiste na mortificação de nossa própria vontade... Devemos desistir de todos os atos de nossa própria mente a fim de que, operando Deus em nós, possamos descansar nEle, conforme ensina o apóstolo (Hb.3:13;4:3,9). Mas agora que Cristo já veio, o tipo foi cancelado, e seria um erro perpetuá-lo, tal como seria um equívoco continuar a oferecer os sacrifícios levíticos.

Calvino apelava aqui para Colossenses 2:16, que ele interpretava como alusão ao dia semanal de descanso. Ele admitia que, além e acima de sua significação típica, o quarto mandamento também ensina o princípio que deve haver adoração pública e privada, além de servir de dia de descanso para os servos e empregados, pelo que a plena interpretação cristã seria:


Primeiro, por toda a nossa vida podemos ter por alvo um descanso constante de nossas próprias obras, a fim de que o Senhor possa operar em nós por meio do Seu Santo Espírito; segundo, cada indivíduo deveria se exercitar com diligência em meditação devota nas obras de Deus, e... todos devem observar a ordem legal determinada pela Igreja para que se ouça a Palavra, administrando as ordenanças e a oração pública; terceiro, devemos evitar oprimir àqueles que nos estiveram sujeitos.

Mas Calvino falava como se isso fosse tudo quanto aquele mandamento agora prescreve, nada encontrando no mesmo, em seu sentido cristão, que proíba trabalho ou diversão no domingo, com prejuízo do tempo de culto. A maior parte dos reformadores falava no mesmo tom. O que há de notável é que suas declarações, em outros contextos, mostram que “os reformadores, como um grupo, defendiam a autoridade divina e a obrigação de se observar o quarto mandamento, requerendo que um dia em cada sete fosse empregado na adoração e serviço de Deus, admitindo somente as obras de necessidade e de misericórdia, em favor dos pobres e aflitos”. É um quebra cabeça, porém, porque eles nunca perceberam a incoerência entre afirmar isso, em termos gerais, ao mesmo tempo em que defendiam a exegese de Agostinho sobre o domingo cristão. Podemos apenas supor que isso se deve ao fato que não queriam entreter a idéia de que Agostinho poderia estar enganado, razão que os cegava para o fato que estavam montando dois cavalos ao mesmo tempo.

Os puritanos, contudo, corrigiram essa incoerência. Eles insistiam, de forma virtualmente unânime que, embora os reformadores estivessem certos ao enxergarem apenas um sentido típico e temporário em algumas das prescrições detalhadas no sábado judaico, contudo, eles também percebiam o princípio de um dia de descanso, para efeito de adoração pública e privada a Deus, no fim de cada seis dias de trabalho, como uma lei da criação, estabelecida em benefício do homem, e, portanto, obrigatória para o homem, enquanto ele viver neste mundo. Também destacavam que, figurando entre nove leis indubitavelmente morais e permanentes do decálogo, o quarto mandamento dificilmente teria uma natureza apenas típica e temporária.

De fato, eles viam esse mandamento como parte integral da primeira tábua da lei, que aborda sistematicamente a questão da adoração: “O primeiro mandamento fixa o objetivo, o segundo, o meio, o terceiro, a maneira, e o quarto, o tempo”. Também observaram que o quarto mandamento começa com as palavras “lembra-te...”. E isso nos faz recuar até antes da instituição mosaica. Observaram que o trecho de Gênesis 2:1 ss. representa o sétimo dia de descanso como o próprio descanso de Deus, terminada a criação, e que a sanção atrelada ao quarto mandamento, em Êxodo 20:8 ss., olha de volta para aquele fato, retratando o dia como um memorial semanal da criação, “para ser observado para a glória do Criador, como dever que temos de servi-Lo, e como um encorajamento para confiarmos naquele que criou os céus e a terra. Por meio da santificação do sábado, os judeus declaravam que eles adoravam ao Deus que criou a terra...”. Assim falou Matthew Henry, exegeta de um período posterior aos puritanos, mas que os representou em sua própria época ao comentar sobre Êxodo 20:11. Henry também frisou que o mandamento afirma que Deus santificou o sétimo dia (ou seja, apropriou-o para Si mesmo) e o abençoou (isto é, “injetou bênçãos no mesmo, encorajando-nos a esperar bênçãos da parte Dele, na observância religiosa daquele dia”); e também frisou que Cristo, embora tivesse reinterpretado a lei sobre o sábado, não o cancelou, mas antes, firmou-o, observando-o Ele mesmo, e mostrando que esperava que seus discípulos continuassem a observá-lo (cf. Mt.24:20).

Tudo isso, argumentavam os puritanos, mostra que o descanso do sétimo dia, era mais que um mandamento judaico; antes, era um memorial da criação, parte da lei moral (primeira tábua que prescreve a adoração apropriada ao Criador), e, como tal, era perpetuamente obrigatória para todos os homens. Assim, quando o Novo Testamento diz-nos que os cristãos se reuniam para adorar no primeiro dia da semana (ver Atos 20:7; cf. I Co.16:1), guardando aquele dia como “o dia do Senhor” (Ap.1:10), isso só pode significar uma coisa: por preceito apostólico, e, provavelmente, de fato, por injunção dominical durante os quarenta dias antes da ascensão, esse tornara-se o dia em que os homens, doravante, deveriam guardar o dia de descanso prescrito pelo quarto mandamento. Os puritanos notavam que essa mudança, do sétimo dia da semana (o dia que assinalara o fim da antiga criação) para o primeiro (o dia da ressurreição de Cristo, que assinala o início da nova criação), não excluía pelas palavras do quarto mandamento, meramente determina que “devemos descansar e guardar, como descanso, cada sétimo dia... mas... de modo algum determina onde deve começar a sequência de dias... Não há no quarto mandamento, qualquer orientação sobre como computar o tempo...”. Portanto, coisa alguma impede-nos de supor que o Novo Testamento parece requerer que foram os apóstolos que fizeram a alteração. Nesse caso, tornara-se claro que a condenação (em Cl.2:16) do sabatismo judaico nada tem a ver com a observância do dia do Senhor. Essas, em esboço, eram as considerações feitas pelos puritanos, com base na doutrina do dia do Senhor, a qual é bem sintetizada na Confissão de Fé de Westminster (XXI: vii-viii):

vii. Como é lei da natureza que, em geral, uma devida proporção do tempo seja destinada ao culto de Deus, assim também em sua palavra, por um preceito positivo, moral e perpétuo, preceito que obriga a todos os homens em todos os séculos, Deus designou particularmente um dia em sete para ser um sábado (descanso) santificado por Ele; desde o princípio do mundo, até a ressurreição de Cristo, esse dia foi o último da semana; e desde a ressurreição de Cristo foi mudado para o primeiro dia da semana, dia que na Escritura é chamado Domingo, ou dia do Senhor, e que há de continuar até ao fim do mundo como o sábado cristão. Ref. Ex. 20:8-11; Gen. 2:3; I Cor. 16:1-2; At. 20:7; Apoc.1:10; Mat. 5: 17-18
viii. Este sábado é santificado ao Senhor quando os homens, tendo devidamente preparado os seus corações e de antemão ordenado os seus negócios ordinários, não só guardam, durante todo o dia, um santo descanso das suas próprias obras, palavras e pensamentos a respeito dos seus empregos seculares e das suas recreações, mas também ocupam todo o tempo em exercícios públicos e particulares de culto e nos deveres de necessidade e misericórdia. Ref. Ex. 16:23-26,29:30, e 31:15-16; Isa.58:13.


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Fonte: Revista Os Puritanos. Ano XVII: Nº 4: 2009. Págs.: 11,12

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