Os efeitos colaterais da obra expiatória de Jesus Cristo 1/4.
- Categoria: Estudos Bíblicos
Por Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima
Introdução
É ponto pacífico, e até mesmo algo óbvio, o fato de que a expiação realizada por Jesus Cristo na cruz do Calvário significou a obtenção de bênçãos destinadas aos eleitos, como expressão da graça de Deus. Tais bênçãos são de natureza salvífica e estão alicerçadas sobre o sangue derramado na cruz. A expiação trouxe consigo a remoção da culpa e da ira de Deus, o perdão dos pecados e garantiu a aplicação da salvação por parte do Espírito Santo: chamado eficaz, regeneração, arrependimento, fé, justificação, santificação e a glorificação. Além disso, a obra salvífica realizada por Jesus Cristo conquistou dons excelentes para os eleitos, como atesta o apóstolo Paulo, ecoando o Salmo 68.18: “Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens” (Efésios 4.8). Não obstante, objeto de grande controvérsia é o assunto a respeito das benesses desfrutadas pelos preteridos e ímpios na presente vida. Essas benesses, ou bênçãos, possuem alguma relação com a obra expiatória de Jesus? Mais especificamente, existem, de fato, os chamados efeitos colaterais da cruz de Cristo? Deus faz uso da obra de Jesus na cruz para abençoar os ímpios, ainda que indiretamente, a fim de que o seu povo, em última análise, possa viver melhor?
Inegavelmente, a experiência cotidiana atesta que os descrentes e ímpios desfrutam de bênçãos terrenas e até mesmo de favores espirituais. Além disso, as Sagradas Escrituras são claras nas suas afirmações no sentido de que, Deus “faz com que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre justos e injustos” (Mateus 5.45), que “todos esperam de ti que lhes dês o seu sustento em ocasião oportuna” (Salmo 104.27), e que Deus “é benigno até para com os ingratos e maus” (Lucas 6.35). É inegável, então, que os ímpios e réprobos gozam de coisas boas nesta vida. Eles são prósperos, ricos, saudáveis e inteligentes. De onde vem isso? Qual a fonte das suas realizações positivas e das bênçãos usufruídas por eles? Será que elas se originam da expiação? Ou estão diretamente relacionadas com Deus como Criador e Sustentador da sua criação?
Como já foi afirmado, isso tem sido objeto de grande controvérsia no meio reformado. O ensinamento majoritário, todavia, tem sido o de que tais manifestações nada mais são do que expressões da graça comum operada nos réprobos pelo Espírito Santo.[1] Não obstante, um grupo de estudiosos reformados tem contestado a doutrina da graça comum, bem como a ideia de que as benesses usufruídas pelos réprobos e ímpios sejam expressões do amor de Deus e efeitos colaterais da cruz de Cristo. Para eles, mesmo as bênçãos desfrutadas pelos ímpios nada mais são do que laços colocados diante deles pelo Senhor.[2]
O propósito do presente trabalho é contribuir com esse debate, apresentando uma resposta ao questionamento: Há alguma bênção oriunda da expiação de caráter não-salvífico, endereçada aos não-eleitos para o bem dos filhos de Deus? Para que esse objetivo seja alcançado, a doutrina da graça comum será discutida em primeiro lugar, considerando-se tanto o ensinamento reformado clássico quanto a sua contraparte reformada radical. Logo em seguida, discutir-se-á o fundamento da graça comum: criação ou expiação? Em terceiro lugar, duas passagens das Sagradas Escrituras, que mencionam benesses recebidas pelos inimigos da cruz de Cristo serão consideradas. Em quarto e último lugar, inquirir-se-á sobre o propósito de Deus na concessão de benefícios àqueles que não fazem parte do seu povo amado.
1 A Doutrina Reformada da Graça Comum
1.1. Origem do termo
A doutrina da graça comum procura responder a um importante questionamento que tem sido levantado ao longo dos séculos, conforme expresso por Henry Meeter: “Como nós podemos solucionar o problema do mal relacionado pela Bíblia com o homem não regenerado e as ‘excelentes proezas’ feitas por estes mesmos homens não regenerados e pagãos?”[3] A resposta conhecida como “graça comum” atribui ao Espírito Santo, “não somente o papel de refrear aquilo de negativo que existe no ser humano e no meio em que vive, mas também de produzir em seu coração algumas possibilidades de realizações positivas, como o desenvolvimento cultural saudável, as artes de maneira geral e, porque não dizer também, até a magistratura”.[4]
O termo “graça comum” foi cunhado já no século XX. Existe dúvida quanto a quem o cunhou. Alguns acreditam que o teólogo holandês Herman Bavinck (1854-1921) tenha sido o responsável [5], ao passo que outros o atribuem ao também holandês Abraham Kuyper (1837-1920).[6] Não resta dúvida, porém, de que Kuyper foi o principal difusor tanto do conceito quanto da doutrina da graça comum.
Várias tentativas de definição de graça comum têm sido feitas ao longo dos anos por teólogos representativos da tradição reformada. D. Martyn Lloyd-Jones, por exemplo, afirma que graça comum
É o termo aplicado àquelas bênçãos gerais que Deus comunica a todos os homens e mulheres, indiscriminadamente, como Lhe apraz, não só a Seu próprio povo, mas a todos os homens e mulheres, segundo o Seu beneplácito. Ou, de outra forma, graça comum significa aquelas operações gerais do Espírito Santo nas quais, sem renovar o coração, Ele exerce influência moral por meio da qual o pecado é restringido, a ordem é preservada na vida social e a justiça civil é promovida.[7]
Archibald Alexander Hodge, filho do ilustre teólogo princetoniano Charles Hodge, define a graça comum da seguinte maneira:
A graça comum é a influência restritiva e persuasiva do Espírito Santo, operando somente por meio das verdades reveladas no evangelho, ou por meio da luz natural da razão e da consciência, aumentando o natural efeito moral dessas verdades sobre o coração, a inteligência e o a consciência. Não envolve mudança do coração, e, sim, unicamente um aumento do poder natural da verdade, uma ação restritiva das más paixões e um aumento das emoções naturais em face do pecado, do dever e do interesse próprio.[8]
Hodge entende que a ação do Espírito Santo denominada de “graça comum” se dá também por meio das verdades reveladas do evangelho. Dessa forma, ele parece entender que existem algumas dádivas recebidas pelos ímpios que têm a sua origem na obra expiatória de Jesus Cristo.
1.2. A contraparte radical reformada
No ano de 1924 a Christian Reformed Church, em sua Assembleia Geral, adotou uma posição que ratificava a doutrina da graça comum. Sua posição foi a afirmação de que Deus é favoravelmente disposto a todos os homens, tanto aos eleitos quanto aos réprobos. Isso levou os teólogos Herman Hoeksema, George Ophoff e Henry Danhof a romperem com a Christian Reformed Church e a fundar a Protestante Reformed Church. De acordo com Hoeksema, a única coisa que Deus manifestava ao não-eleito era a sua ira. Não há, segundo ele, nenhuma medida de graça oferecida ao réprobo nem nenhuma oferta séria do evangelho ao não-eleito.[9]
David J. Engelsma, professor de Teologia Sistemática e Antigo Testamento na Theological School of the Protestant Reformed Churches, em Grandville, e duro oponente da doutrina da graça comum a define como:
Um favor não-salvífico de Deus a todos os humanos; uma operação do Espírito Santo dentro dos réprobos pela qual, sem regenerá-los, restringe o pecado neles, de maneira que se tornam depravados apenas parcialmente; e a habilidade dos incrédulos, por virtude dessa graça do Espírito Santo, para praticarem boas obras, especialmente no lugar de uma cultura que é verdadeiramente, mas não definitivamente, boa.[10]
Não se sabe de um só teólogo reformado que afirme que, por meio da ação do Espírito Santo na graça comum os incrédulos deixem de ser totalmente depravados. A afirmação de Engelsma, de que a crença na graça comum implica a crença numa depravação apenas parcial se mostra desprovida de fundamentação teórica e documental. Todos os teólogos reformados que acreditam na existência da graça comum afirmam conjuntamente a total corrupção do ser humano.
O grande problema com David Engelsma e os outros oponentes da doutrina da graça comum é que eles acabam fazendo uma confusão entre depravação total e depravação absoluta. James Daane faz um comentário interessante sobre isso:
Partidários da visão tradicional da graça comum que conhecem algo da história do pensamento reformado não serão convencidos facilmente de que a graça comum mina as doutrinas da depravação total e da antítese.[11] Eles sabem muito bem que aqueles que forjaram a doutrina da graça comum também criam na depravação total. Antes de aceitar a crítica que diz que a graça comum enfraquece essas doutrinas, eles levantam a questão se aqueles que se opõem a essa visão ainda estão lidando com a concepção reformada da depravação total e da antítese, ou se talvez eles não tenham transformado a depravação total em depravação absoluta e a antítese em uma antítese absoluta.[12]
Mark Driscoll e Gerry Breshears seguem na mesma linha ao afirmarem que “enquanto as pessoas não são absolutamente depravadas e tão más quanto elas poderiam ser, todas as pessoas são totalmente depravadas em que todos os seus motivos, palavras, atos e pensamentos são afetados, manchados e corrompidos pelo pecado”.[13] Daane prossegue afirmando que, “é simplesmente uma questão de registro histórico que todos os teólogos reformados que foram mais ativos na formulação da graça comum foram justamente aqueles que de todo coração também aceitaram a doutrina da depravação total”.[14] Nesse sentido, Richard J. Mouw cita especificamente o reformador João Calvino como alguém que defendeu a depravação total e a antítese e ao mesmo tempo reconhecia a capacidade dos incrédulos de produzirem boas coisas. Ele diz:
A ideia de antítese estava presente no pensamento calvinista desde o início. O próprio João Calvino usou o termo de um modo que antecipou o sentido mais técnico desenvolvido no calvinismo holandês do século dezenove. Quando uma pessoa é convertida, Calvino argumenta, Deus graciosamente transforma “uma má vontade em uma boa vontade”. Então, “a nova criação... varre para longe tudo da nossa natureza [deprava] comum”. Essa ação transformadora é exigida, Calvino observou na sua exposição da linha de raciocínio de Paulo em Efésios 2, por causa de “uma antítese entre Adão e Cristo”.[15]
Fica claro, então, que é característico da teologia reformada o ensino da graça comum. Ademais, é necessário que fique claro, que sustentar a graça comum em nada implica a desconstrução das doutrinas da depravação total e da antítese. Prova-se isso a partir da constatação de que a doutrina da graça comum não surgiu dos sistemas teológicos que não acreditam da depravação total, como por exemplo, o semi-pelagianismo católico romano e o arminanismo.[16]
Através da graça comum Deus revela a sua bondade para com todas as pessoas, mas não de uma forma salvífica. “A graça comum de Deus inclui a água que bebemos, a comida que comemos, o sol que nos alegra, e a chuva de que necessitamos, pois Deus é bom para com os pecadores e com os santos igualmente”.[17] Sobre os efeitos dessa graça comum, Mark Driscoll e Gerry Breshears afirmam que, “a graça comum de Deus faz com que aqueles que O desprezam a aprender e crescer em áreas como ciência, filosofia, tecnologia, educação e medicina. A graça comum de Deus faz com que sociedades floresçam, famílias existam, cidades surjam e nações prosperem”.[18]
Fica patente que os benefícios desfrutados pelos réprobos e ímpios possuem estreita relação com a graça comum de Deus. A questão agora é determinar se essas bênçãos manifestadas através da graça comum fluem da obra expiatória de Jesus Cristo ou simplesmente da bondade de Deus enquanto Criador e Sustentador de todas as coisas.
Continua nos próximos dias...
Fonte: Os efeitos colaterais da obra expiatória de Jesus Cristo, por Alan Rennê Alexandrino Lima, São Paulo 2011. Trabalho apresentado ao Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em cumprimento dos requisitos do módulo A Obra do Redentor, ministrado pelo professor Dr. Heber Carlos de Campos.
Artigo gentilmente cedido pelo autor ao blog Bereianos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário