sexta-feira, 16 de maio de 2014

Os efeitos colaterais da obra expiatória de Jesus Cristo 3/4


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Por Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima


3 - Das bênçãos desfrutadas pelos réprobos segundo às Escrituras


Existem algumas passagens nas Sagradas Escrituras que fundamentam o que foi dito até aqui. Algumas, como por exemplo, Salmo 145.9,15-16; Mateus 5.45 e Atos dos Apóstolos 14.14-17 e 17.25-28 podem ser usadas por aqueles que defendem que a graça comum e os benefícios desfrutados pelos ímpios estão fundamentados na criação, não na redenção. Levando isso em consideração, é necessário encontrar passagens que mostrem que os ímpios recebem certas bênçãos, ainda que de forma indireta, por causa da cruz de Cristo. Nesse sentido, destacam-se 1Coríntios 7.14 e Hebreus 6.4-8.

3.1. 1CORÍNTIOS 7.14

A passagem em questão diz o seguinte: “Porque o marido incrédulo é santificado no convívio da esposa, e a esposa incrédula é santificada no convívio do marido crente. Doutra sorte, os vossos filhos seriam impuros; porém, agora, são santos”.

O capítulo 7 da primeira epístola do apóstolo Paulo aos coríntios versa a respeito de várias questões relacionadas ao casamento. No trecho que se estende a partir do versículo 12 o apóstolo orienta aqueles que já são casados. De forma bem específica, ele tem em mente pessoas recentemente convertidas à fé cristã que possuíam cônjuges incrédulos: “Nesses versos Paulo trata de um problema causado pela intrusão do evangelho”.[41] O argumento apostólico é que a parte convertida à fé cristã e salva por Cristo não deveria abandonar o seu cônjuge descrente caso este consentisse em permanecer casado. No versículo 14 Paulo consubstancia o seu argumento apontando para benefícios desfrutados pela parte incrédula em razão da fé do cônjuge crente.

Literalmente, o marido descrente é “santificado” na esposa crente, e a esposa descrente é “santificada” no marido crente. Por “santificar” o apóstolo Paulo não quer dizer que “o cônjuge gentílico tem um relacionamento pessoal com Cristo, pois nesse caso ele não seria mais chamado de incrédulo”.[42] O termo grego não “expressa qualquer mudança interior ou subjetiva”.[43] Charles Hodge afirma que o sentido da afirmação apostólica
Não é que eles [o marido ou a esposa incrédula] se tornam interiormente santos, nem que eles são trazidos sob uma influência santificadora, mas que são santificados por sua íntima união com um crente, da mesma forma como o templo santificava o ouro ligado a ele, ou da maneira como o altar santificava a dádiva colocada sobre ele [...] Então, o marido pagão, em virtude da sua união com uma esposa cristã, embora permanecesse pagão, era santificado; ele assumia uma nova relação; ele era separado para o serviço de Deus, como o guardião dos seus escolhidos, e como o pai de crianças que, em virtude da sua mãe crente, eram filhos da aliança.[44]

Percebe-se, então, que o marido incrédulo desfrutava da bênção de possuir uma esposa crente que, através da sua comunhão com Deus, santificava-o, separava-o para servir ao propósito soberano de Deus, de zelar pelo bem-estar dos membros do povo de Deus que faziam parte da sua família. É preciso salientar que, o marido ou a esposa descrente permaneciam ímpios, incrédulos. A graça comum usufruída por eles não operava a sua salvação.

A conexão com a obra redentora de Cristo se dá exatamente pelo fato de a parte crente ter sido alvo da operação da graça especial de Deus. Somente porque Deus manifestou a sua graça especial a uma das partes é que a outra é beneficiária de alguns dos efeitos colaterais da cruz de Cristo, sendo que a consagração é uma delas.

Ademais, em razão de a mãe ou o pai ser salvo, os próprios filhos desfrutam do benefício dessa santificação. Paulo, ao chamar os filhos de “santos” também não tem em mente que eles são moralmente santos. “Filhos nascidos dentro da teocracia e, portanto, santos, não eram menos concebidos em pecado, e concebidos em iniqüidade. Eles eram por natureza filhos da ira, como os outros (Ef 2.3)”.[45] Contudo, por sua ligação com um pai ou uma mãe crente eles eram abençoados por pertencerem à aliança.

3.2. HEBREUS 6.4-8

O texto em foco diz:

É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia. Porque a terra que absorve a chuva que freqüentemente cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser queimada. 

A primeira observação que deve ser feita a respeito de Hebreus 6.4-8, é que, trata-se, nos dizeres de Geerhardus Vos, de uma “difícil e importante passagem” sobre a aliança de Deus com o seu povo.[46] A razão dessa dificuldade está no fato de o autor da epístola mencionar especificamente o aspecto fenomenológico da religião nessa perícope.[47]

Os “iluminados” de Hebreus 6.4-8 eram pessoas que “abandonaram esta assembleia dos santos”. Eram pessoas não-regeneradas, não-eleitas, incrédulas que durante algum tempo fizeram parte de uma igreja visível, mas que apostataram. Muito se questiona acerca de como pessoas ímpias puderam “provar” de vários benefícios, como por exemplo: 1) do dom celestial; 2) da participação comum do Espírito Santo; 3) da boa palavra de Deus; e 4) dos poderes do mundo vindouro. Como tais pessoas puderam desfrutar, em alguma medida, de bênçãos destinadas àqueles que foram os beneficiários diretos do sacrifício substitutivo de Cristo?

D. Mathewson, no seu artigo intitulado Reading Heb 6:4-6 in Light of the Old Testament, lança luz sobre esse questionamento, ao afirmar que, “a linguagem do autor em 6.4-6 é colorida por referências do AT que aludem e ecoam como citação direta”.[49] De forma específica, Mathewson sugere que a referência àqueles que foram “iluminados” lembra a coluna de fogo que alumiou os israelitas através do deserto.[50] Algumas passagens veterotestamentárias podem demonstrar o ponto. Neemias 9.12,19 diz o seguinte:

Guiaste-os, de dia, por uma coluna de nuvem e, de noite, por uma coluna de fogo, para lhes alumiar o caminho por onde haviam de ir [...] Todavia, tu, pela multidão das tuas misericórdias, não os deixaste no deserto. A coluna de nuvem nunca se apartou deles de dia, para os guiar pelo caminho, nem a coluna de fogo de noite, para lhes alumiar o caminho por onde haviam de ir.

O “dom celestial” lembra o dom celestial do maná, que foi dado por Deus ao seu povo quando este se encontrava no deserto (Êxodo 16.15). Em Neemias 9.15 é dito que o pão celestial foi dado aos israelitas “na sua fome”. Por sua vez, a referência àqueles que “se tornaram participantes do Espírito Santo” ecoa a experiência dos peregrinos do deserto, que “tinham extensiva interação com o Espírito de Deus” [51], como é testemunhado em Neemias 9.20: “E lhes concedeste o teu bom Espírito, para os ensinar; não lhes negaste para a boca o teu maná; e água lhes deste na sua sede”.

Após considerar os elementos descritos em Hebreus 6.4-6, Mathewson conclui: “O autor não está apenas aludindo a textos fragmentados e a vocabulário isolado para apresentar uma retórica colorida, mas por aludir a textos que pertencem a uma enorme matriz de idéias ele está evocando o contexto inteiro e história da experiência de Israel no deserto”.[52] Quando se leva em consideração que os destinatários dessa epístola eram cristãos judeus, essa interpretação se mostra bastante plausível. O autor de Hebreus utiliza a linguagem do Antigo Testamento para descrever um abandono doloroso de uma congregação por parte de algumas pessoas.

Dessa forma, a iluminação recebida, o dom celestial provado e o Espírito compartilhado se mostram bênçãos da graça comum de Deus destinada a pessoas ímpias ou, nas palavras de Charles Hodge, “influências do Espírito concedidas a todos os homens”.[53] Tais pessoas, “tiveram um claro entendimento do juízo de Deus sobre o mundo, das promessas de Deus, o desvendar do mundo futuro; tiveram uma clara distinção do juízo, bem como provaram dos milagres da era apostólica”, afirma o teólogo genebrino Matthew Poole.[54] 

No seu comentário a respeito do versículo 4, João Calvino endossa a opinião de que mesmo os réprobos recebem algumas chispas da luz divina:

Mas aqui surge uma nova questão, como pode que aqueles que fizeram tal progresso venham a apostatar depois de tudo? Pois Deus, isso pode ser dito, não chama ninguém eficazmente a não ser os seus eleitos, e Paulo testifica que eles realmente são seus filhos e que são guiados por seu Espírito (Romanos 8.14) e ele nos ensina que, é um seguro penhor de adoção quando Cristo nos faz participantes do seu Espírito. O eleito também está além do perigo da apostasia final; pois o Pai que o elegeu para ser preservado em Cristo é maior do que tudo, e Cristo promete vigiar por eles de maneira que nenhum pereça. A tudo isso, eu respondo que Deus, de fato, favorece apenas os seus eleitos com o Espírito de regeneração e que, por isso eles são distinguidos dos réprobos; pois eles são renovados segundo a sua imagem e recebem a seriedade do Espírito na esperança da herança futura, e pelo mesmo Espírito o Evangelho é selado em seus corações.Mas eu não posso admitir que tudo isso seja alguma razão pela qual Ele não conceda também aos réprobos algum sabor da sua graça, que Ele não irradie suas mentes com algumas chispas da sua luz, ou não lhes dê alguma percepção da sua bondade, e de alguma maneira grave sua palavra em seus corações. De outra forma, o que viria a ser a fé temporal mencionada em Marcos 4.17? Portanto, existe algum conhecimento mesmo nos réprobos, o qual posteriormente vem a desvanecer, porque não possui raízes suficientemente profundas, ou porque elas murcham ao serem sufocadas.[55] 

O que pode ser apreendido a partir desse comentário é que, de acordo com Calvino, bênçãos fluidas da obra expiatória de Cristo e destinadas diretamente aos eleitos e salvos como, por exemplo, a iluminação, o dom celestial da Palavra e a comunhão no Espírito, podem ser destinadas, ainda que de forma indireta a pessoas ímpias e incrédulas. Como Grudem acertadamente frisa, “a graça especial, que Deus dá aos salvos, leva a maior parte das bênçãos da graça comum aos incrédulos que vivem no campo de influência da igreja”.[56] 

Não perca a última parte nos próximos dias...
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Notas:
[41] G. K. Beale e D. A. Carson (Eds.). Commentary on the New Testament Use of the Old Testament. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008. p. 715.
[42] Simon Kistemaker. Comentário do Novo Testamento: 1 Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 318.
[43] Charles Hodge. 1&2 Corinthians. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 2000. p. 115.
[44] Ibid. p. 116. Ênfase acrescentada
[45] Ibid. p. 115.
[46] Geerhardus Vos. The Teaching of the Epistle to the Hebrews. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1956. p. 28.
[47] Ibid.
[48] Moisés Bezerril. A Queda dos Iluminados de Hebreus 6.4-6. p. 16.Acessado em 18/08/2011.
[49] D. Mathewson. “Reading Heb 6:4-6 in Light of the Old Testament”, In: Westminster Theological Journal. Ed. 61. 1999. p. 214.
[50] Ibid. p. 216.
[51] Ibid. p. 217.
[52] Ibid. p. 223.
[53] Charles Hodge. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 981
[54] Matthew Poole. A Commentary on the Whole Bible: Matthew – Revelation. Vol. 3. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 2003. p. 737.
[55] John Calvin. Commentary on Hebrews. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 2000. p. 94. Acessado em 25/Ago/2011.
[56] Wayne Grudem. Teologia Sistemática. p. 554.

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