quarta-feira, 31 de julho de 2013

Cristo Se Manifestou, Comparece e Aparecerá


"Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora COMPARECER por nós perante a face de Deus; Nem também para a Si mesmo Se oferecer muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no santuário com sangue alheio; doutra maneira necessário Lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo: mas agora na consumação dos séculos uma vez Se MANIFESTOU para aniquilar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo. E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo, assim também Cristo, oferecendo-Se uma vez, para tirar os pecados de muitos, APARECERÁ segunda vez, sem pecado, aos que O esperam para a salvação." (Hebreus 9:24-28).

A passagem citada nos coloca diante de três grandes fatos na vida de nosso Senhor Jesus Cristo. Fala do que nós podemos arriscar chamar de três manifestações distintas, nominalmente, uma aparição no passado, uma no presente e outra no futuro. Ele Se manifestou a este mundo a fim de fazer uma determinada obra; Ele agora comparece, no céu, para efetuar determinado ministério, e Ele aparecerá em glória. A primeira é a EXPIAÇÃO; a segunda, MEDIAÇÃO, e a terceira é o ADVENTO. Vamos discorrer um pouco sobre a primeira.
A Expiação
Esta é aqui apresentada em seus dois grandes aspectos, primeiro, quanto a Deus, e, segundo, quanto a nós. O apóstolo declara que Cristo Se manifestou "para aniquilar o pecado"; e também "para tirar os pecados de muitos" (Hb 9:26,28). Esta é uma distinção da maior importância, e que é pouco compreendida ou a que se dá pouca atenção. Cristo aniquilou o pecado pelo sacrifício de Si próprio. Ele glorificou a Deus quanto à questão do pecado em seu aspecto mais amplo. Isso Ele fez completamente independente da questão de pessoas ou do perdão dos pecados de indivíduos. Mesmo que todas as pessoas, desde os dias de Adão até a última geração, fossem rejeitar a graça de Deus ofertada, ainda assim seria válido que a morte expiatória de Cristo aniquilou o pecado - destruiu o poder de Satanás - glorificou perfeitamente a Deus, e colocou o profundo e sólido fundamento sobre o qual todos os conselhos e propósitos divinos podem repousar para sempre.
É a isto que João Batista se refere nestas memoráveis palavras: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (Jo 1:29). O Cordeiro de Deus efetuou um trabalho em virtude do qual todo vestígio de pecado deverá ser apagado da criação de Deus. Ele justificou perfeitamente a Deus bem no meio de uma cena em que foi tão brutalmente desonrado, na qual Seu caráter foi difamado e Sua majestade insultada. Ele veio efetuar isto a todo custo, mesmo pelo sacrifício de Si próprio. Ele sacrificou-Se a Si mesmo para preservar, à vista do céu, da Terra e do inferno, a glória de Deus. Ele efetuou uma obra pela qual Deus encontra-se infinitamente mais glorificado do que se o pecado não tivesse surgido. Deus deve colher resultados, em muito, mais ricos nos campos da redenção do que Ele colheria nos campos de uma criação que não houvesse caído.
Seria bom que o leitor ponderasse profundamente sobre este aspecto glorioso da morte expiatória de Cristo. Nós estamos aptos a pensar que o mais alto aspecto da cruz que podemos visualizar é aquele que envolve a questão de nossa remissão e salvação. Isto é um grave erro. Esta questão é divinamente estabelecida, como procuraremos mostrar; pois o menor é sempre incluído no maior. Mas deixemo-nos lembrar que nosso lado da expiação é o menor, o lado de Deus é o maior.
Era infinitamente mais importante que Deus fosse glorificado do que nós fôssemos salvos. Ambas as finalidades foram alcançadas, louvado seja Deus, e alcançadas por uma mesma obra, a preciosa expiação de Cristo; mas não devemos nunca nos esquecer de que a glória de Deus é de muito maior importância do que a salvação dos homens; e mais, que nós não podemos nunca ter uma consciência tão clara da última como quando a vemos fluindo da primeira. É quando vemos que Deus foi glorificado perfeita e eternamente na morte de Cristo, que podemos realmente entrar na divina perfeição de nossa salvação. A propósito, ambas encontram-se tão intimamente ligadas que não podem ser separadas; mas continua a parte de Deus na cruz de Cristo tendo sempre sua própria proeminência.
A glória de Deus sempre foi o mais importante no coração devoto do Senhor Jesus Cristo. Para isso Ele viveu, para isso Ele morreu. Ele veio a este mundo com o expresso propósito de glorificar a Deus, e desse grande e sagrado objetivo nunca Se desviou por momento algum, desde a manjedoura até a cruz. É verdade - santa verdade - que ao levar adiante este objetivo, Ele resolveu perfeitamente o nosso caso; mas a glória divina foi o que governou-O na vida e na morte.
Mas é no fundamento da expiação, vista neste seu aspecto mais elevado, que Deus tem procedido para com o mundo em paciente graça, misericórdia e tolerância por aproximadamente seis mil anos. Ele envia Sua chuva e Seus raios solares sobre o mau e o bom, sobre o justo e o injusto. É em virtude da expiação de Cristo - embora desprezado e rejeitado - que o infiel e o ateu vivem, e desfrutam as misericórdias diárias de Deus; sim, o próprio fôlego que eles empregam quando se opõem à revelação e negam a existência de Deus, eles devem a Ele por Quem eles vivem, se movem e existem (Atos 17:24-34).
Ao falarmos assim, não estamos nos referindo, em hipótese alguma, ao perdão dos pecados, ou à salvação da alma. Esta é uma questão totalmente diferente, e a ela nos referiremos em breve. Mas, olhando para o homem quanto à sua vida neste mundo, e olhando para o mundo no qual ele vive, é a cruz que forma a base do tratamento misericordioso de Deus, tanto para com um como para com o outro.
Além disso, é no campo da expiação de Cristo, neste seu mesmo aspecto, que o evangelista pode seguir "por todo o mundo e pregar o evangelho a toda criatura" (Mc 16:16). Ele pode declarar a bendita verdade de que Deus foi glorificado com respeito ao pecado - Sua exigência foi satisfeita - Sua majestade foi justificada - Sua lei magnificada - Seus atributos harmonizados. Ele pode proclamar a preciosa mensagem de que Deus pode agora ser justo e ainda justificador de qualquer pobre e ímpio pecador que crê em Jesus. Não há obstáculo, não há barreira qualquer que seja.
O pregador do evangelho não deve ser constrangido por quaisquer dogmas teológicos. Ele está subordinado ao amplo e amoroso coração de Deus que, em virtude da expiação, pode fluir para cada criatura sob a abóbada celeste. Ele pode dizer a cada um e a todos - e dizer isto sem reservas - "VEM!" E não apenas isso, ele é compelido a "suplicar" a eles para que venham. "Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus." (2 Co 5:20). Tal é a linguagem apropriada ao evangelista, ao arauto da cruz, o embaixador de Cristo. Ele não conhece outro limite que não seja o amplo e extenso mundo; e ele é chamado a lançar sua mensagem nos ouvidos de cada criatura debaixo dos céus.
E por quê? Porque Cristo aniquilou "o pecado pelo sacrifício de Si mesmo" (Hb 9:26). Ele mudou completamente, pela Sua tão preciosa morte, o terreno da relação de Deus com o homem e com o mundo, de maneira que, ao invés de Deus ter que relacionar-Se com eles no terreno do pecado, Ele pode relacionar-Se no terreno da expiação.
Finalmente, é em virtude da expiação, neste amplo e elevado aspecto, que todo vestígio de pecado e todo sinal da serpente deverá ser apagado do imensurável universo de Deus. Então deverá ser vista a plena força da passagem à qual nos referimos acima, "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (Jo 1:29).
Portanto, muito do que podemos chamar de aspecto primário da morte de expiatória de Cristo - um aspecto cujo estudo nunca poderá ser considerado demasiado. Um claro entendimento deste importante ponto iria remover uma grande parte da dificuldade de compreensão em relação à plena e desimpedida pregação do evangelho. Muitos dos honrados servos do Senhor encontram-se impedidos de apresentar as boas novas de salvação simplesmente por não enxergarem este aspecto amplo da expiação. Eles limitam a morte de Cristo apenas àquilo que diz respeito aos pecados dos eleitos de Deus; e, por conseguinte, acham errado pregar o evangelho a todos, ou convidar, sim, suplicar e implorar, a todos para que venham.
Que Cristo morreu pelo eleito, é algo que as Escrituras ensinam distintamente em inúmeras passagens. Ele morreu para a eleita nação de Israel, e para a eleita Igreja de Deus - a noiva de Cristo. Mas as Escrituras ensinam mais do que isso. Elas declaram que "Ele morreu por todos"; e que provou "a morte por todos" (2 Co 5:14; Hb 2:9). Não há qualquer necessidade de se fugir da plena força e significado desta e de outras afirmações igualmente inspiradas. E além disso, cremos ser bem errado adicionar nossas próprias palavras às palavras de Deus para poder adaptá-las a algum determinado sistema doutrinário.
Quando as Escrituras afirmam que Cristo "morreu por todos" (2 Co 5:15), não temos o direito de acrescentar a palavra "... os eleitos". E quando as Escrituras afirmam que Ele provou "a morte por todos" (Hb 2:9), não temos o direito de dizer, "... por todos os eleitos". É nosso obrigação recebermos a Palavra de Deus assim como ela está, e reverentemente nos sujeitarmos ao seu ensino que tem autoridade em todas as coisas. Não podemos reduzir a Palavra de Deus a um sistema, assim como não podemos reduzir o próprio Deus a um sistema. Sua Palavra, Seu coração e Sua natureza são deveras profundos demais e muito abrangentes para que fiquem restritos aos limites do mais abrangente e melhor sistema teológico que o ser humano possa inventar.
Estaríamos, agora e sempre, descobrindo passagens das Escrituras que não se encaixariam em nosso sistema. Devemos nos lembrar de que Deus é amor, e que este amor irá se revelar a todos sem limites. É verdade que Deus tem Seus conselhos, Seus propósitos e Suas decretos; mas não é isso que Ele apresenta ao pobre e perdido pecador. Ele irá instruir e interessar os Seus santos a respeito dessas coisas, mas ao pecador culpado, sobrecarregado, Ele apresenta o Seu amor, Sua graça, Sua misericórdia, Sua prontidão para salvar, para perdoar e abençoar.
E que seja bem lembrado que a responsabilidade do pecador flui do que lhe é revelado, e não do que é secreto. Os decretos de Deus são secretos; Sua natureza, Seu caráter, Seu Ser são revelados. O pecador não será julgado por rejeitar o que não tem meios de conhecer. "E a condenação (ou juízo) é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más." (Jo 3:19).
Não estamos escrevendo um tratado teológico; mas sentimos ser um assunto da maior importância inculcar no leitor que sua responsabilidade, como pecador, está baseada no fato de que o aspecto da salvação de Deus, e da expiação de Cristo, é distinta e decididamente "para todos", e não apenas para um certo número de pessoas da raça humana. A gloriosa mensagem é enviada para todo o mundo. Todo aquele que a ouve, é convidado a vir. Isso é apoiado no fato de que Cristo eliminou o pecado - que o sangue da expiação foi levado à presença de Deus - que a barreira que o pecado representava foi derrubada e abolida, e agora a poderosa onda de amor divino pode fluir livremente para o mais vil dos filhos dos homens.
Tal é a mensagem; e quando qualquer um crê nela pela graça pode ser plenamente informado de que não apenas Cristo eliminou o pecado, mas que Ele também carregou os pecados do que crê - os mesmos pecados de todo o Seu povo - de todo aquele que crê no Seu nome. O evangelista pode permanecer no meio de um grupo de milhares de pessoas, e declarar que Cristo eliminou o pecado - que Deus está satisfeito - que o caminho está aberto a todos; e pode murmurar o mesmo no ouvido de todo e qualquer pecador debaixo dos céus. Então, quando alguém tiver se sujeitado ao seu testemunho - quando o pecador arrependido, de coração quebrantado, que julgou a si próprio, recebe a bendita notícia - pode ser plenamente esclarecido de que seus pecados foram todos colocados sobre Jesus, todos carregados e levados para sempre por Ele quando morreu na cruz.
Esta é a doutrina claramente exposta em Hebreus 9:26,28; e temos um tipo admirável disso nos dois bodes de Levítico 16. Se o leitor abrir nesta passagem, encontrará ali primeiramente o bode morto; e em segundo lugar, o bode emissário. O sangue do bode morto era introduzido no santuário e espargido ali. Este era um tipo de Cristo aniquilando o pecado. Então o sumo sacerdote, em nome de toda a congregação, confessava todos os seus pecados sobre a cabeça do bode emissário, e este era então levado para uma terra desabitada. Este era um tipo de Cristo levando os pecados de Seu povo. Os dois bodes, tomados juntos, nos dão um panorama completo da expiação de Cristo, a qual, como a justiça de Deus em Romanos 3, é "para todos e sobre todos os que crêem" (Rm 3:22).
Isso tudo é muito simples. Remove muitas dificuldades de diante do sincero aspirante à paz. Estas dificuldades surgem em muitos casos devido aos conflitantes dogmas dos sistemas teológicos, que não têm base em lugar nenhum das Sagradas Escrituras. Nela, tudo é tão claro e simples quanto Deus pode fazer. Cada um que ouve a mensagem do gratuito amor de Deus é compelido, para não dizer convidado, a recebê-lo; e o juízo irá, com toda a certeza, cair sobre cada um e todos os que recusarem ou negligenciarem a misericórdia anunciada.
É totalmente impossível, para alguém que já tenha escutado o evangelho ou que tenha tido o Novo Testamento em suas mãos, escapar da terrível responsabilidade que repousa sobre si, de aceitar a salvação dada por Deus. Nem mesmo uma única alma poderá dizer: Eu não podia crer porque não fui um dos eleitos, e não obtive poder para crer. Nenhum se atreverá a dizer, ou mesmo a pensar assim. Se alguém pudesse se apoiar nisso, onde estaria então a força ou o significado destas flamejantes palavras? "Quando Se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do Seu poder; como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo." (2 Ts 1:7-8). Será alguém punido por não obedecer ao evangelho, se não for responsável em render-se a tal obediência? Certamente que não. "Não faria justiça o Juiz de toda a Terra?" (Gn 18:25).
Mas será que Deus envia o Seu evangelho às pessoas meramente para colocá-las sob responsabilidade e aumentar sua culpa? Longe de mim tal pensamento monstruoso! Ele envia Seu evangelho ao pecador perdido para que possa ser salvo, pois Deus não deseja que algum se perca, mas que todos possam chegar ao arrependimento. Todos, portanto, os que perecem não terão ninguém além deles próprios para responsabilizar.
É da maior importância que o leitor possa ser firmado no conhecimento e senso prático do que a expiação de Cristo proporcionou a todo aquele que simplesmente crê nEle. É esta, devemos admitir, a única base de paz. Ele aniquilou o pecado pelo sacrifício de Si mesmo; e carregou nossos pecados em Seu próprio corpo sobre o madeiro. É, portanto, impossível que qualquer dúvida quanto ao pecado ou culpa possa ser jamais levantada. Tudo foi "de uma vez por todas" estabelecido pela morte expiatória do Cordeiro de Deus.
É verdade - ah! como é verdade! - que nós todos temos pecado em nós; e que temos, a todo dia e hora, que julgar a nós mesmos e a nossa conduta. Algo que será sempre verdadeiro a nosso respeito, enquanto estivermos em um corpo de pecado e morte, é que "em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum" (Rm 7:18). Mas então nada poderá jamais tocar a questão da perfeita e eterna aceitação de nossas almas. A consciência do crente está tão completamente purificada de toda sujeira e mancha quanto o será toda a criação. Se não fosse assim, Cristo não poderia estar onde está agora. Ele entrou na presença de Deus, para comparecer ali por nós. Isto nos leva agora a considerar o que vem a seguir:
A Mediação
Muitas almas estão propensas a confundir duas coisas que, embora inseparavelmente unidas, são perfeitamente distintas, a saber, a mediação e a expiação. Sem enxergar a divina plenitude da expiação, estão de certo modo procurando que a mediação faça por eles o que a expiação já fez. Devemos nos lembrar de que, apesar de, quanto à nossa posição, não estarmos na carne e sim no Espírito, ainda quanto ao estado atual de nossa condição nós continuamos em nosso corpo. Estamos em espírito e, pela fé, sentados nos lugares celestiais em Cristo; mas ainda estamos atualmente no deserto, sujeitos a toda sorte de enfermidades, sujeitos a cair e errar de mil maneiras.
É para a provisão de nossa condição e necessidades atuais que a mediação, ou sacerdócio, de Cristo é designada. Louvado seja Deus por tão bendita provisão! Como pessoas que estão, no corpo, atravessando este mundo, nós necessitamos de um grande sumo sacerdote para manter o elo de comunhão, ou para restaurá-lo quando partido. Temos Um vivendo sempre para interceder por nós; e nem poderíamos passar sem Ele um momento sequer. A obra de expiação nunca é repetida; a obra do Mediador nunca é interrompida.
O sangue de Cristo, uma vez aplicado à alma pelo poder do Espírito Santo, não é nunca aplicado novamente. Pensar numa repetição é duvidar de sua eficácia e reduzi-lo ao nível do sangue de bezerros e bodes. Sem dúvida as pessoas não vêem assim, e certamente não iriam querer admitir isso, mas é isto o que realmente significa o pensamento de uma nova aplicação do sangue da aspersão. Pode ser que as pessoas que falam dessa maneira realmente desejem honrar o sangue de Cristo, e expressar seu próprio sentimento de indignidade; mas, na verdade, a melhor maneira de se honrar o sangue de Cristo é regozijar-se naquilo que o sangue fez por nossas almas; e a melhor maneira de demonstrar nossa própria indignidade é sentir e lembrar que éramos tão vis que nada além da morte de Cristo poderia resolver nosso caso. Éramos tão vis que nada além de Seu sangue poderia limpar-nos. Tão precioso é Seu sangue que não resta algo algum de nossas culpas. "O sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo o pecado." (1 Jo 1:7).
Assim inalterável permanece o sangue para o mais débil filho de Deus cujos olhos perscrutam estas linhas. Todos os pecados perdoados. Nenhum vestígio de culpa permanece. Jesus está na presença de Deus por nós. Ele está lá como o Sumo Sacerdote diante de Deus - como um Mediador ou Advogado para com o Pai. Ele rasgou o véu com Sua morte expiatória - aniquilou o pecado - nos levou para junto de Deus em todo o valor e virtude de Seu sacrifício, e agora Ele vive para nos manter, por Sua mediação, no gozo do lugar e nos privilégios nos quais o Seu sangue nos introduziu.
Por esta razão o apóstolo diz que "se alguém pecar, temos" - o que? O sangue? Não, mas "um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 Jo 2:1). O sangue efetuou a sua obra, e está para sempre diante de Deus em conformidade com seu completo valor às vistas dEle. Sua eficácia é sempre a mesma. Mas temos cometido pecado, ainda que seja apenas em pensamento, mas até mesmo esse pensamento é suficiente para interromper a nossa comunhão. É aqui que entra a mediação. Se não fosse pelo fato de Jesus Cristo estar sempre agindo por nós no santuário nas alturas, nossa fé iria certamente falhar em momentos em que não nos rendemos, em medida nenhuma, à voz de nossa natureza pecaminosa. Foi assim com Pedro naquela hora terrível de sua tentação e queda: "Simão; Simão, eis que Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo; mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres (no sentido de ser restaurado), confirma teus irmãos". (Lc 22:31-32).
Deixo que o leitor note isto. "Eu roguei por ti, para que..." - o que? Será que Pedro não poderia falhar? Não, mas que, tendo falhado, sua fé não se desfalecesse. Se Cristo não houvesse rogado por seu pobre e fraco servo, este teria ido de mal a pior, e de pior para "o pior". Mas a intercessão de Cristo conseguiu para Pedro a graça do genuíno arrependimento, do juízo-próprio, do amargo pesar por seu pecado, e, finalmente, da completa restauração de seu coração e consciência, de maneira que sua corrente de comunhão - interrompida pelo pecado, porém restabelecida pela mediação - pudesse fluir como antes.
Assim acontece conosco quando, devido à falta daquela sagrada vigilância que deveríamos exercitar, cometemos pecado: Jesus vai até o Pai por nós. Ele roga por nós; e é por meio da eficácia de Sua intercessão sacerdotal que somos convencidos da culpa e levados a um juízo próprio, confissão e restauração. Tudo está fundamentado na mediação, e a mediação está fundamentada na expiação.
E pode-se muito bem afirmar aqui, do modo mais claro e incisivo possível, que não cometer pecado é o doce privilégio de todo crente. Não há porque ele deva fazê-lo. "Meus filhinhos", diz o apóstolo, "estas coisas vos escrevo, para que não pequeis" (1 Jo 2:1). Esta é uma das mais preciosas verdades possuídas por todo aquele que ama a santidade: Nós não precisamos pecar. Vamos nos lembrar disso. "Qualquer que é nascido de Deus não comete (ou pratica pecado; porque a Sua semente permanece nele; e não pode pecar, porque é nascido de Deus." (1 Jo 3:9).
É esta a divina idéia do que seja um cristão. Ah, mas nem sempre a entendemos! Todavia, isto não toca, e nem pode tocar, a preciosa verdade. A natureza divina, o novo homem, a vida de Cristo no crente, não tem possibilidade de pecar, e este é o privilégio de todo crente: o de andar de um modo tal que nada mais que a vida de Cristo possa ser vista. O Espírito Santo habita no crente com base na redenção, para levar a cabo os desejos da nova natureza, de modo que a carne possa ser como se não existisse, e nada além de Cristo possa ser visto na vida do crente.
É da maior importância que esta idéia divina da vida cristã possa ser abraçada e mantida. As pessoas costumam perguntar: É possível que um cristão viva sem cometer pecado? Respondemos na linguagem do apóstolo inspirado: "Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis" (1 Jo 2:1). E de novo, usando a linguagem de outro apóstolo inspirado, "nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?" (Rm 6:2).
O cristão é visto por Deus como morto para o pecado, e assim, se ele se rende ao pecado, está desprezando, na prática, a sua posição em um Cristo exaltado. Oh, infelizmente nós pecamos, e por isso o apóstolo acrescenta que "se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo" (1 Jo 2:1-2).
Isto concede uma plenitude maravilhosa à obra sobre a qual nossas almas repousam. Tal é a perfeita eficácia da expiação de Cristo, que temos um Advogado conosco (o Espírito Santo) para que possamos não pecar, e outro Advogado com o Pai (Jesus Cristo), para o caso de pecarmos. A mesma palavra traduzida como "Consolador" em João 14:16 é traduzida "Advogado" em 1 João 2:1. Temos uma Pessoa divina cuidando de nós aqui, e temos outra Pessoa divina cuidando de nós no céu, e tudo isso com base na morte expiatória de Cristo.
Será que isto quer dizer que, ao escrever assim estamos provendo uma concessão para que se cometa pecado? Deus nos livre! Já declaramos, e insistimos nisso, a bendita possibilidade de se viver em ininterrupta comunhão com Deus - de se andar assim no Espírito - de se estar tão preenchido e ocupado com Cristo - de modo que a carne, ou a velha natureza, não possa se manifestar. Mas sabemos que nem sempre é assim. Como diz Tiago 3:2, "todos tropeçamos em muitas coisas". Mas nenhuma pessoa de sã consciência, nenhum amante da santidade, nenhum cristão espiritual, poderia ter qualquer simpatia para com os que dizem que devemos cometer pecado. Graças à Deus, não é assim. Mas que misericórdia é sabermos que quando falhamos há UM à direita de Deus para restaurar o elo partido de comunhão! Isto Ele faz ao produzir em nossas almas, pelo Seu Espírito que opera em nós - o "outro Advogado" - o sentimento do fracasso, nos levando a um juízo-próprio e a uma verdadeira confissão do erro, qualquer que seja ele.
Dizemos verdadeira confissão, pois é assim que deve ser, se for o fruto do trabalho o Espírito no coração. Não é dizer leviana e frivolamente que pecamos, e depois, com a mesma leviandade e frivolidade, pecarmos novamente. Isto é algo demasiado triste e perigoso. Não conhecemos nada que seja mais endurecedor e desmoralizante do que algo assim. Certamente, isso leva às mais desastrosas conseqüências. Vimos casos de pessoas vivendo em pecado e se satisfazendo a si próprias com uma mera confissão oral de seu pecado, para então voltarem a cometer o pecado vezes e vezes seguidas, durante meses e anos, até que Deus, em Sua fidelidade, fizesse com que a coisa toda viesse à tona e ficasse notório a todos.
Isso tudo é demasiado terrível. É a maneira de Satanás endurecer e iludir o coração. Oh, que possamos vigiar, e manter sempre uma consciência pura! Podemos descansar certos de que quando um genuíno filho de Deus é enganado ao ponto de cair no pecado, o Espírito Santo irá produzir nele uma consciência apropriada acerca do mesmo - irá colocá-lo em uma repugnância tal para consigo mesmo, em uma aversão ao mal, em um minucioso juízo próprio na presença de Deus - de um modo tal que não poderá levianamente cometer o pecado outra vez. Isso nós podemos aprender das palavras do apóstolo, quando diz: "Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo, para nos perdoar os pecados, e..." - preste muita atenção nesta parte - "nos purificar de toda a injustiça" (1 Jo 1:9).
Vemos aqui o precioso fruto da dupla mediação. E tudo isso é apresentado em sua plenitude nesta parte da primeira epístola de João. Se alguém pecar, o abençoado Paracleto nas alturas intercede junto ao Pai, pleiteia os plenos méritos de Sua obra expiatória, roga pelo que errou, com base em haver Ele carregado o juízo por aquele mesmo pecado. Então o outro Paracleto atua na consciência, produz o arrependimento e a confissão, e leva a alma de volta à luz na doce consciência de que o pecado está perdoado, a injustiça purificada, e a comunhão perfeitamente restaurada. "Guia-me pelas veredas da justiça, por amor do Seu nome." (Sl 23:3).
Cremos que o leitor será capaz de entender esta grande verdade fundamental. Estamos cientes de que há muitos que encontram dificuldade em conciliar a idéia da intercessão com a verdade e uma perfeita expiação. Eles argumentam que, se a expiação é perfeita, que necessidade há de intercessão? Se o crente é tornado tão alvo como a neve pelo sangue e Cristo - tão branco que o Espírito e Deus possa habitar em seu coração - então o que pode ele desejar de um sacerdote? Se por uma oferta Cristo aperfeiçoou para sempre todos aqueles que são santificados, então que necessidade têm, de um Advogado, esses que estão perfeitos e santificados? Seria o caso de termos que, ou admitir a idéia de uma expiação imperfeita ou recusar a necessidade de um advogado?
Tais são os raciocínios da mente humana, mas não é esta a fé dos cristãos. As Escrituras nos ensinam com a maior precisão que o crente é lavado e está tão branco como a neve; que é feito agradável no Amado - completo em Cristo - perfeitamente perdoado e perfeitamente justificado por meio da morte e ressurreição de Cristo; que ele nunca entrará em juízo, mas passou da morte para a vida; que não está na carne, mas no Espírito - não na velha criação, mas na nova - não um membro do primeiro Adão, mas do último; que ele está morto para o pecado, morto para o mundo, morto para a lei, porque Cristo morreu, e o crente morreu nEle. Tudo isso é amplamente desvendado e constantemente inculcado pelos escritores inspirados. Diversas passagens podem ser facilmente utilizadas como prova, se fosse necessário.
Mas há, então, um outro aspecto do cristão que deve ser levado em conta. Ele não está na carne quanto à sua posição, mas está em seu corpo quanto à sua condição. Ele está em Cristo quanto à sua posição, mas está também no mundo quanto à sua existência. Ele está cercado por toda a sorte de tentações e dificuldades, e é, em si mesmo, uma pobre e débil criatura repleta de debilidades, insuficiente até mesmo para pensar em algo por si mesma.
E não só isso, mas cada verdadeiro cristão está sempre pronto a reconhecer que nele, isto é, em sua carne, não habita bem algum. Ele está salvo, graças a Deus, e tudo está eternamente estabelecido; mas então ele tem, como um que foi salvo, que passar pelo deserto; ele tem que trabalhar para entrar no descanso de Deus, e é aqui que entra o sacerdócio. O objetivo do sacerdócio não é completar a obra da expiação, visto que esta obra é tão perfeita quanto Aquele que a efetuou. Mas temos que ser levados através do deserto e introduzidos no descanso que está reservado para o povo de Deus, e para esse fim temos um grande Sumo Sacerdote que já passou para o céu, Jesus, o Filho de Deus. Sua simpatia e Seu auxílio são nossos, e não poderíamos viver um momento sequer sem eles. Ele vive para interceder por nós, e, por meio de Seu ministério no santuário celestial, nos sustenta dia após dia na completa eficácia e valor de Sua obra expiatória. Ele nos levanta quando caímos, nos restaura quando nos desviamos, repara o elo de comunhão quando rompido pelo nosso descuido. Em suma, Ele comparece na presença e Deus por nós, e efetua ali um ininterrupto serviço em nosso favor, em virtude do qual somos mantidos na integridade do parentesco no qual a Sua morte expiatória nos introduziu.
O mesmo ocorre tanto com respeito à expiação quanto à mediação. Só nos resta tratar do advento. Desejamos recordar em especial o leitor que, em se tratando da morte de Cristo, temos deixado totalmente intocado um ponto de grande importância, a saber, nossa morte nEle. Nós o faremos, se Deus o permitir, em outra ocasião. Trata-se de algo imensamente importante no que diz respeito ao poder de libertação, tanto do pecado que habita em nós, como do presente mundo mau e da lei. Há muitos que olham para a morte de Cristo apenas para perdão e justificação, mas não vêem a preciosa e emancipadora verdade de haverem morrido nEle e sua conseqüente libertação do poder do pecado neles. Esta última é o segredo da vitória sorte???? o "eu" e o mundo, e da libertação de toda forma de legalismo e mera piedade carnal.
Vimos, assim, de relance, dois dos importantes assuntos que nos são apresentados nos versículos finais de Hebreus 9, a saber, primeiro, a preciosa morte expiatória de nosso Senhor Jesus Cristo em seus dois aspectos, e, segundo, Sua plena eficaz mediação por nós à destra de Deus. Só nos resta considerar, em terceiro lugar,
Seu Advento
Este nos é aqui apresentado em conexão imediata com aquelas grandes verdades fundamentais com as quais já nos ocupamos, e que são, além do mais, aceitas e estimadas por todos os verdadeiros cristãos. É verdade que Cristo veio ao mundo para aniquilar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo? Que veio carregar os pecados de muitos que, pela graça, depositaram sua fé nEle? É verdade que Ele subiu aos céus e está sentado no trono de Deus, para ali interceder por nós? Sim, louvado seja Deus, estas são verdades sublimes, vitais e fundamentais da fé cristã. Bem, então é igualmente verdade que Ele deve voltar outra vez, aparte a questão do pecado, para salvação. "E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo, assim também Cristo, oferecendo-Se uma vez para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que O esperam para a salvação." (Hb 9:27-28).
Temos aqui o assunto mais do que nunca fundamentado. Tão verdadeiro quanto Cristo ter vindo a este mundo - tão verdadeiro quanto Ele ter estado deitado na manjedoura de Belém - ter sido batizado nas águas do rio Jordão - ter sido ungido com o Espírito Santo - ter sido tentado pelo diabo no deserto - ter andado fazendo o bem e curando a todos os que estavam oprimidos pelo demônio - ter gemido, pranteado e orado no Getsêmani - ter sido levantado na cruz maldita do Calvário e ter morrido, o Justo pelo injusto - ter sido colocado no túmulo escuro e silencioso - ter ressuscitado vitorioso ao terceiro dia - ter subido aos céus, para comparecer na presença de Deus pelo Seu povo - tão certo como tudo isso, Ele verdadeiramente deverá aparecer muito em breve entre as nuvens do céu para receber os que são Seus. Se recusamos uma coisa devemos recusar todas. Se questionamos uma, devemos questionar todas. Se não estamos certos acerca de uma delas, não podemos estar certos e todas, já que estão todas baseadas precisamente sobre o mesmo fundamento, as Sagradas Escrituras. Como sei que Jesus Se manifestou? Porque a Escritura o diz. Como eu sei que Ele comparece agora na presença de Deus? Porque a Escritura o diz. Como eu sei que Ele aparecerá, vindo outra vez? Porque a Escritura o diz.
Em suma, portanto, a doutrina da expiação, a doutrina da mediação e a doutrina do advento apoiam-se, todas elas, sobre um mesmo e irrefutável fundamento, a saber, a simples declaração da Palavra de Deus, e se aceitamos uma devemos aceitar todas.
Como é, então, que enquanto a Igreja de Deus em todas as épocas manteve e prezou pela doutrina da expiação e mediação, praticamente perdeu de vista a doutrina do advento? Como pode ter acontecido que, enquanto as duas primeiras foram conservadas como essenciais, a última tenha sido considerada dispensável? E vamos ainda mais longe e perguntar: Como é que um homem que não mantenha as duas primeiras é, justamente, tido como herege, enquanto que o homem que retém a última seja tido como pouco digno de confiança na fé ou como introdutor de uma doutrina estranha?
Que resposta podemos dar a estas perguntas? Oh! A Igreja parou de aguardar pelo seu Senhor. Expiação e mediação são mantidas por se referirem a nós; mas o advento foi virtualmente deixado de lado, porque é algo tão profundamente concernente a Ele. Diz respeito Àquele que sofreu e morreu nesta Terra na qual deveria reinar; Aquele que usou uma coroa de espinhos quando deveria usar uma coroa de glória; Aquele que Se humilhou à morte mais desprezível, quando deveria ter sido exaltado; Aquele diante de Quem todo joelho deveria se dobrar.
Com toda a certeza é por isso; e o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo olhará para isso e dará a sentença a Seu tempo. "Assenta-Te à Minha destra até que ponha a Teus inimigos por escabelo de Teus pés." (Sl 110:1; Hb 1:13) Aproxima-se rapidamente o momento em que Aquele bendito, que encontra-Se agora oculto aos olhos dos homens, aparecerá em glória. Todo olho O verá. Tão certo quanto Ele foi pendurado na cruz e está agora sentado no trono, deverá aparecer em glória.
Leitor, vendo as coisas como são, estará você entre aqueles que esperam por Ele? Esta é uma questão solene. Há aqueles que O buscam e há aqueles que não. É certo que será aos primeiros que Ele aparecerá para salvação. Ele virá e receberá os que Lhe pertencem, para que onde Ele estiver, eles estejam também (Jo 14). Estas são Suas próprias e amáveis palavras, faladas no momento de Sua partida, para o conforto e alívio de Seus entristecidos discípulos. Ele sabia que estavam atribulados com a idéia da Sua partida, e procurou confortá-los pela certeza de Sua volta. Ele não diz: Não deixem que seus corações fiquem atribulados, pois vocês logo Me seguirão. Não; o que Ele diz é: Eu voltarei.
É esta a esperança apropriada do cristão. Cristo está voltando. Estamos prontos? Estamos esperando por Ele? Sentimos a Sua falta? Lamentamos a Sua ausência? É impossível estarmos na verdadeira atitude de esperar por Ele se não sentimos a Sua ausência. Ele está voltando. Ele poderá vir esta noite. Antes mesmo que o Sol se levante, a voz o arcanjo e o som das trombetas poderão ter sido ouvidos no ar. E então? Ora, então os santos que dormem - todos os que partiram na fé de Cristo - todos os redimidos do Senhor cujas cinzas repousam nos cemitérios e sepulcros ao nosso redor ou nas profundezas dos mares - todos esses irão ressuscitar. Os santos que estiverem vivos serão transformados em um momento, e todos subirão para encontrar o Senhor nos ares (1 Co 15:51-54; 1 Ts 4:13-18; 5:1-11).
Mas o que será do inconverso - do incrédulo - daquele que não se arrependeu - do que não estava preparado? O que será de todos esses? Ah! Esta é uma questão terrivelmente solene. Faz com que o coração estremeça ao refletir sobre aqueles que continuam em seus pecados - aqueles que se fizeram surdos a todas as súplicas e avisos que Deus, em Sua suprema misericórdia, lhes enviou semana após semana, ano após ano - aqueles que se sentaram ao som do evangelho desde a mais tenra idade, e que se tornaram, como costumamos dizer, acostumados ao evangelho. Que horrível será a condição de todos esses quando o Senhor vier buscar os que Lhe pertencem! Serão deixados para trás; deixados para sucumbir ao profundo e turvo engano que Deus irá, com toda a certeza, lançar sobre todos os que ouviram e rejeitaram o evangelho. E então? O que se seguirá a esse profundo e turvo engano? A mais profunda e negra maldição no lago que queima com fogo e enxofre.
Oh! Será que não deveríamos tocar o alarme aos ouvidos de nossos próximos que ainda estão no pecado? Não deveríamos cuidadosa e solenemente avisá-los para que fujam da ira vindoura? Não deveríamos buscá-los pela palavra e pela ação - pelo duplo testemunho dos lábios e da vida - colocando diante deles o grave fato de que o Senhor está ao alcance da mão? Possamos nós sentir isto mais profundamente, e então exibir isto com maior fidelidade. Há um imenso poder moral na verdade da vinda do Senhor, se ela estiver realmente arraigada no coração e não apenas na cabeça. Se os cristãos tão somente vivessem na habitual expectativa do advento, isso iria testemunhar extraordinariamente aos inconversos ao redor.
Que o Espírito Santo possa reviver no coração de todo o povo de Deus a bendita esperança do retorno do Senhor, para que possam ser como homens que esperam pelo seu Senhor, para que, quando vier e bater à porta, possam abri-la, para Ele, imediatamente.

C. H. Mackintosh

Dawkins, uma confusão: naturalismo ad absurdum!


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Por Alvin Plantinga


Richard Dawkins não está satisfeito com Deus:

"O Deus do Antigo Testamento é sem dúvida o personagem mais desagradável de toda ficção. Ciumento e orgulhoso; mesquinho, injusto, maníaco controlador implacável, vingativo, sedento de sangue, misógeno, homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, pestilento, megalomaníaco…"

Bem, não é necessário terminar a citação; deu pra entender a ideia. Dawkins parece ter escolhido Deus como seu arqui-inimigo. (Vamos esperar, para o bem de Dawkins, que Deus não retribua na mesma moeda.)

Deus, Um Delírio é um extenso discurso contra a religião em geral e a crença em Deus em particular; Dawkins e Daniel Dennet (Quebrando o Encanto é sua contribuição para esse gênero) são a dupla de ataque do ateísmo acadêmico[1]. Dawkins escreveu seu livro, ele diz, para encorajar ateus tímidos a saírem do armário. Ele e Dennet parecem acreditar que é necessária uma boa dose de coragem para atacar a religião nos dias de hoje; Dennet diz, "Eu ponho minha cara a tapa, mas ainda assim eu persisto." Aparentemente o ateísmo tem seus próprios heróis da fé – seus auto-intitulados heróis. Nesse ponto não é fácil levá-los a sério; atacar a religião no ocidente é tão perigoso quanto apoiar o candidato do partido num encontro republicano.

Dawkins é talvez o escritor de divulgação científica mais popular do mundo; é também um escritor de divulgação científica muito talentoso; (por exemplo, seu relato sobre morcegos e seus caminhos em seu livro prévio O Relojoeiro Cego é um brilhante e fascinante tour de force). Deus, Um Delírio, entretanto, contém pouca ciência; é em grande parte filosofia e teologia (talvez "ateologia" seria um termo mais apropriado) e psicologia evolucionista, junto com seus comentários sociais denegrindo a religião e seus efeitos maléficos. Como a citação acima sugere, não devemos esperar do livro um comentário cuidadoso e minucioso. De fato, o nível de insulto, ridicularização e zombaria é gritante. Se Dawkins se cansar do seu trabalho cotidiano, um futuro promissor como comentarista político o aguarda.

Agora apesar do fato de seu livro ser em grande parte filosófico, Dawkins não é um filósofo (ele é biólogo). Mesmo levando isto em consideração, muito da filosofia que ele propaga é simplória. Poderíamos dizer que suas "filosofadas" estão, no máximo, no nível de um estudante de segundo período, mas isso seria injusto com os estudantes; a verdade é que muito de seus argumentos seriam reprovados numa aula de filosofia qualquer. Isso, combinado com o tom arrogante e "mais-inteligente-que-você" do livro, é irritante. Eu tento colocar a irritação de lado, e fazer o meu melhor para levar o principal argumento de Dawkins a sério.

O Capítulo 3. "Por que quase com certeza Deus não existe," é o centro do livro. Bem, por que Dawkins acha que é quase certo que não haja um Deus? Segundo ele, é porque a existência de Deus é extremamente improvável. Quão improvável? O astrônomo Fred Hoyle disse que a probabilidade da vida surgir na terra (de forma natural e sem intervenção de nenhuma inteligência) é menos provável que um furacão em um ferro velho produza um Boeing 747 pronto para cruzar os ares. Dawkins parece acreditar que a probabilidade da existência de Deus está nessa mesma esfera – tão pequena que deve ser considerada impossível. Por que ele acha isso?

Aqui Dawkins não apela para os argumentos anti-teistas mais comuns – o argumento do problema do mal, ou a alegação de que é impossível existir um ser com os atributos que os crentes atribuem a Deus[2]. Então por que ele acredita que o teísmo é altamente improvável? A resposta: se houvesse um Deus, ele teria que ser extremamente complexo, e quanto mais complexo algo é, menos provável: "Por mais estatisticamente improvável que for a entidade que se queira explicar através da invocação de um designer, o próprio designer tem de ser no mínimo tão improvável quanto ela. Deus é o Boeing 747 Definitivo". A ideia básica é que qualquer coisa que saiba e faça o que Deus sabe e faz teria que ser incrivelmente complexa. Em particular, qualquer coisa que pode criar ou projetar algo tem que ser no mínimo tão complexo quanto o objeto a ser criado. Em outras palavras, Dawkins diz que um projetista tem que conter no mínimo tanta informação quanto o que há de ser criado ou projetado, e informação é inversamente proporcional a probabilidade. Logo, ele pensa, Deus teria que ser extremamente complexo, astronomicamente improvável; dessa forma é quase certo de que Deus não exista.

Mas por que Dawkins acha que Deus é complexo? E por que ele acha que quanto mais complexo algo é, menos provável é? Antes de examinar melhor suas objeções, eu gostaria de desviar nossa atenção por um momento; essa alegação de improbabilidade pode nos ajudar a entender algo muito confuso sobre o argumento de Dawkins em seu antigo e influente livro, O Relojoeiro Cego. No livro ele argumenta que a teoria cientifica da evolução mostra que nosso mundo não foi projetado – por Deus ou qualquer outra coisa. Esse pensamento é enfatizado pelo subtítulo do livro: Porque a Evidência da Evolução Revela um Universo sem Projeto.

Como? Suponha que a evidência da evolução sugira que todas as criaturas vivas tenham evoluído de uma forma elementar de vida: como isso revela que o universo não tenha um projeto? Bem, se o universo não foi projetado, então o processo da evolução não é dirigido, e não orquestrado por um ser inteligente; ou seja, como Dawkins sugere, cego. Então sua alegação é que a evidência da evolução revela que o processo evolutivo não é guiado por um ser inteligente.

Mas como poderia a evidência da evolução revelar algo assim? Depois de tudo, não poderia Deus ter dirigido e observado o processo evolutivo? O que faz Dawkins pensar que a evolução não é dirigida? O que ele faz no "O Relojoeiro Cego", basicamente, são três coisas. Primeiro, ele conta de forma bem detalhada, alguns dos fascinantes detalhes anatômicos de certas formas de vida e sua complexidade inacreditável; esse é o tipo de coisa na qual Dawkins é especialista. Segundo, ele tenta refutar argumentos que dizem que uma evolução cega e não dirigida não poderia produzir algumas das maravilhas do mundo da vida – o olho, por exemplo, ou a asa. Terceiro, ele sugere como essas coisas e outros sistemas orgânicos poderiam ter se desenvolvido sem direção inteligente.

Suponha que ele esteja certo nessas três coisas: como isso mostraria que o universo não tem um projeto? Seus argumentos detalhados suportam a conclusão de que é biologicamente possível que esses organismos e sistemas tenham evoluído por mecanismos Darwinianos não dirigidos por uma inteligência (e algumas coisas que ele diz sobre isso são bem interessantes). O que é curioso, entretanto, é a forma que parece ser o principal argumento. A premissa que ele utiliza é algo assim:

1. Nós não conhecemos nenhuma objeção irrefutável de que é biologicamente possível que todas as formas de vida tenham se desenvolvido por um processo não dirigido; 
e Dawkins apóia essa premissa tentando refutar objeções de que não seria biologicamente possível a vida ter se desenvolvido dessa forma. Sua conclusão, entretanto, é:
2. toda a vida se desenvolveu por processos Darwinianos não dirigidos por qualquer inteligência.

Vale a pena refletir, só por um momento, na grande distância entre a premissa e a conclusão. A premissa nos mostra que não existem objeções irrefutáveis para a possibilidade da evolução não dirigida ter produzido todas as maravilhas do mundo da vida; a conclusão é que a evolução não dirigida, de fato, produziu todas as maravilhas da vida. A forma do argumento é algo como:

Não conhecemos nenhuma objeções irrefutáveis para a possibilidade de p;
Logo,
P é verdadeiro

Os filósofos às vezes apresentam alguns argumentos inválidos (eu já fiz isso algumas vezes), mas poucos desses argumentos apresentam tamanha distância entre a premissa e a conclusão quanto o argumento de Dawkins. Eu entro no meu escritório e anuncio para o chairman que o deão permitiu uma transferência de $50.000 para mim. Ele pergunta porque, e eu respondo que nós não conhecemos nenhuma objeção irrefutável para o fato de o deão permitir a transferência. Eu acredito que ele gentilmente sugeriria que eu me aposentasse.

Esse ponto é onde a suposta enorme improbabilidade do teísmo é relevante. Se o teísmo é falso, então, (sem contar algumas sugestões bizarras que podemos seguramente ignorar) a evolução não é dirigida – para estabelecer essa sentença como verdadeira, ele parece imaginar que tudo que é necessário é refutar as alegações de que isso é impossível. Então talvez nós possamos pensar no seu argumento em O Relojoeiro Cego da seguinte forma: ele está realmente empregando como uma premissa não expressa adicional sua ideia de que a existência de Deus é enormemente improvável. Desta forma, o argumento não parece tão inválido. (Apesar de que ainda é inválido, ainda que não tanto – você não pode afirmar algo como fato simplesmente refutando as objeções, e acrescentando que é muito provável)

Agora supondo que nós voltemos para o argumento de Dawkins de que o teísmo é extremamente improvável. Como você lembra, a razão que Dawkins apresenta é que Deus teria que ser extremamente complexo, dessa forma, extremamente improvável ("Deus, ou qualquer ser capaz de decisões inteligentes, é complexo, que é uma outra forma de dizer improvável). O que podemos falar desse argumento?

Não muito. Primeiro, Deus é complexo? De acordo com muitos teólogos clássicos (Tomás de Aquino, por exemplo) Deus é simples, e simples num sentido forte, nele não há distinção entre matéria e substância, atualidade e potencialidade, essência e existência. Alguns pontos da discussão da simplicidade divina são bastante complicados, para não dizer misteriosos.[3] (Não é apenas a teologia católica que diz que Deus é simples, de acordo com a confissão Belga, uma expressão esplendida do Cristianismo Reformado, Deus é "um simples e singular ser espiritual.") Então primeiro, de acordo com a teologia clássica, Deus é simples, não complexo[4]. Mais notável, talvez, é que de acordo com a própria definição de complexidade de Dawkins, Deus não é complexo. De acordo com sua definição (afirmada em O Relojoeiro Cego), algo é complexo se tiver partes colocadas de tal forma que não parecem ter chegado a tal ponto por puro acaso." Mas é claro, Deus é um espírito, não um objeto material, e por isso não tem partes[5]. A fortiori (como os filósofos gostam de dizer) Deus não tem partes arranjadas de forma que parecem ter surgido por puro acaso. Logo, pela definição de complexidade de Dawkins, Deus não é complexo.

Então primeiro, não é nada óbvio que Deus é complexo. Mas segundo, suponha que nós concedêssemos, ao menos para fins de argumentação, que Deus é complexo. Talvez nós pensemos que quanto mais um ser sabe, mais complexo é; Deus, sendo onisciente, seria então altamente complexo. Talvez sim, mas ainda, por que Dawkins acha que Deus é improvável? De uma perspectiva materialista e da ideia de que todos os objetos no nosso universo são constituídos de partículas físicas, talvez um ser que soubesse muito seria improvável – como poderia tais partículas se arranjar de tal forma capaz de constituir um ser com todo esse conhecimento? Claro, estamos falando sob uma ótica materialista. Dawkins está argumentando que o teísmo é improvável; seria dialeticamente deficiente in excelsis argumentar isso usando o materialismo como premissa. É claro que não existe um ser como Deus se o materialismo for verdadeiro; de fato, é implícito ao materialismo a não existência de Deus; mas seria obviamente uma petição de princípio argumentar que o teísmo é improvável porque o materialismo é verdadeiro.

Então por que achar que Deus tem que ser improvável? De acordo com o teísmo clássico, Deus é um ser necessário; não é possível que não existisse um ser como Deus; ele existe em todos os mundo possíveis. Mas se Deus é um ser necessário, se ele existe em todos os mundos possíveis, então a probabilidade de que ele existe, é claro, é 1, e a probabilidade de que ele não existe é 0. Longe de ser improvável de que ele existe, sua existência é muito provável. Então se Dawkins propõem que a existência de Deus é improvável, ele nos deve um argumento de que não existe um ser com os atributos de Deus – um argumento que não apenas começa da premissa materialista. Nem ele nem ninguém apresentou um argumento decente nesse ponto; Dawkins nem parece imaginar que ele precisa de um argumento desse tipo.

Um segundo exemplo do estilo de argumentação Dawkinsiano. Recentemente uma série de pensadores propuseram uma nova versão do argumento do projeto, o chamado "Argumento do Ajuste-Perfeito" (Fine-Tuning Argument). Começando entre os anos 60-70, astrofísicos e outros notaram que muitas das constantes físicas básicas tem que estar dentre de limites muito estreitos para que haja desenvolvimento de vida inteligente. Por exemplo, se a força da gravidade fosse uma pequena fração maior, todas as estrelas seriam gigantes azuis; se só uma fração menor, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum dos casos a vida se desenvolveria. O mesmo vale para a fraca e forte força nuclear; se qualquer deles fosse um pouco diferente, a vida, de qualquer forma que nós a temos, não se desenvolveria. Igualmente interessante nessa conexão é o tão chamado problema plano: a existência de vida também parece depender delicadamente da velocidade de expansão do universo. Diz Stephen Hawking:

Uma redução no nível de expansão do universo de uma parte em 1012 no tempo em que a temperatura do universo era 1010 K teria acarretado um colapso no Universo quando seu raio era somente 1/3000 do valor atual e a temperatura ainda era 10.000 K. [6]

Seria quente demais para o conforto. Hawking conclui que a vida só é possível porque o universo está expandindo no nível necessário para evitar o colapso. Num tempo anterior, ele observa, o ajuste do universo tinha que ser ainda mais notável:

Nós sabemos que tem que ter um equilíbrio muito preciso entre o efeito da expansão explosiva e a contração gravitacional a qual, numa era muito remota sobre a qual nós podemos falar (chamada o momento Planck, 10-43 seg. depois do big bang), teria que corresponder ao incrível nível de acurácia representado por um desvio no seu raio de uma unidade somente em 10 elevado a 60. [7]

Uma reação a essas enormes coincidências aparentes é enxergá-las como um substituto a alegação teísta de que o universo foi criado por um Deus pessoal, e serve de material para um argumento teísta – argumento do ajuste perfeito (Fine-Tuned Argument).[8] É como se um grande numero de ligações tivessem que ser ajustadas em limites muito estreitos para que a vida fosse possível no universo. É extremamente improvável que isso aconteceria por sorte, mas muito mais provável que acontecesse se houvesse um ser como Deus.

Em resposta a esse tipo de argumento teísta, Dawkins, junto com outros, propõe que possivelmente existam muitos (talvez infinitos) outros universos, com muitas outras distribuições de valores das constantes físicas. Pelo fato de haver tantos, é provável que alguns deles apresentariam os valores necessários a criação da vida. Então se existem um enorme numero de universos apresentando valores diferentes das constantes fundamentais, não é tão improvável que alguns deles sejam "perfeitamente ajustados" (fine-tuned). Podemos imaginar quão provável é que existam todos esses outros universos, e se há alguma razão (além do desejo de refutar o argumento do ajuste perfeito) para supor que exista tal coisa.[9] Mas suponha por um momento que, de fato, existam tantos universos e que é provável que alguns deles sejam perfeitamente ajustados e favoráveis à vida. Isso ainda deixa Dawkins com o seguinte problema: ainda que seja provável que alguns universos sejam perfeitamente ajustados, ainda é improvável que esse universo seja perfeitamente ajustado. Chamemos nosso universo de alpha: a probabilidade de que alpha seja perfeitamente ajustado é astronomicamente baixa, mesmo sendo provável que um ou outro universo seja perfeitamente ajustado.

Qual é a réplica de Dawkins? Ele apela ao "principio antrópico", o pensamento de que o único tipo de universo no qual nós poderíamos estar discutindo essa questão é aquele que é perfeitamente ajustado para a vida:

A resposta antrópica, em sua forma geral, é que nós apenas poderíamos estar discutindo essa questão no tipo de universo capaz de nos produzir. Nossa existência determina que as constantes fundamentais da física tinha que estar em suas respectivas zonas de cachinhos dourados (favoráveis a vida).

Bem, é claro que nosso universo teria que ser perfeitamente ajustado, visto que nós vivemos nele. Mas como isso explica por que alpha é perfeitamente ajustado? Ninguém pode explicar esse fato mostrando que de fato nós estamos aqui – mais do que eu posso "explicar" o fato de que Deus decidiu me criar apontando o fato de que se Deus não tivesse decidido me criar, eu não estaria aqui para fazer a pergunta. Ainda parece absurdo que essas constantes tenham os valores que ela têm; ainda é extremamente improvável, pela sorte, que elas tivessem esses valores; e é ainda muito menos improvável que elas tivessem esses valores, se houvesse um Deus que desejasse um universo favorável à vida.

Mais um exemplo do pensamento Dawkinsiano. No O Relojeiro Cego, ele considera a alegação de que desde que a maquinaria auto-duplicavel da vida é necessária para a seleção natural funcionar, Deus tem que ter iniciado todo o processo evolucionário criando a vida em primeiro lugar – especialmente criado o maquinário duplicador original do DNA e da proteína que fazem a seleção natural possível. Dawkins replica da seguinte maneira:

Esse é um argumento débil, de fato é obviamente auto-refutável. Complexidade organizada é o que temos dificuldade de explicar. Uma vez que só nos é permitido postular a complexidade organizada, somente a complexidade organizada do DNA/proteína da maquina duplicável, é relativamente fácil invocar isso como um gerador de ainda mais complexidade organizada... Mas é claro que qualquer Deus capaz de projetar inteligentemente algo tão complexo quando a maquina DNA/Proteína teria quer ser no mínimo tão complexo quando e organizado quando a própria máquina... Para explicar a origem da máquina DNA/proteína invocando um Projetista sobrenatural é explicar exatamente nada, porque deixa inexplicada a origem do Projetista.

Em "Darwin's Dangerous Idea" (A Perigosa Idéia de Darwin), Daniel Dennett cita essa declaração de Dawkins e diz que é "uma refutação inquestionável, tão devastadora hoje como quando Philo derrotou Cleanthes nos Diálogos de Hume dois séculos atrás." Agora no "Deus, Um Delírio" Dawkins cita a sua própria citação feita por Dennett, e acrescenta que Dennett (i.e. Dawkins) está totalmente correto.

Nesse ponto há muito a dizer, mas eu vou falar só um pouco. Primeiro, suponha que nós aterrissássemos num planeta alienígena orbitando uma estrela distante e descobríssemos objetos semelhantes a máquinas que parecessem e funcionassem com tratores; nosso líder diz "tem que haver seres inteligentes nesse planeta para construírem esses tratores." Um estudante de filosofia do primeiro ano objeta: "Ei, espera ai! Você não explicou nada! Qualquer ser inteligente que projetou esses tratores teria que ser no mínimo tão complexo quanto eles são." Sem dúvida nós diríamos a ele que baixo aprendizado é algo perigoso e o advertiríamos a pegar o próximo foguete pra casa e fazer mais um ou dois cursos de filosofia. Porque é perfeitamente aceitável, nesse contexto, explicar a existência dos tratores pela existência de vida inteligente, mesmo levando em conta que a vida inteligente teria que ser tão complexa quanto os tratores. A questão é que nós não estamos tentando dar a última explicação sobre a complexidade organizada, e não estamos tentando explicar a complexidade organizada de um modo geral; nós apenas estamos tentando explicar uma manifestação especifica de complexidade organizada (os tratores). E (a menos que você esteja tentando dar uma explicação final para a complexidade organizada) é perfeitamente apropriado explicar uma manifestação de complexidade organizada usando uma outra complexidade organizada. De forma similar, em invocar Deus como o criador da vida, não estamos tentando explicar a complexidade organizada de um modo geral, mas apenas um tipo especifico, i.e. , vida terrestre. Então (ao contrário da realidade, como eu creio) mesmo se o próprio Deus apresenta complexidade organizada, seria perfeitamente apropriado explicar a existência da vida terrestre pela atividade divina.

Um segundo ponto: Dawkins (e novamente Dennett ecoa suas palavras) argumenta que "a principal coisa que queremos explicar" é a "complexidade organizada." Ele continua dizendo que "O que torna a evolução uma teoria tão eficaz é que ela explica como a complexidade organizada pode surgir da simplicidade primitiva," e ele atribui ao teísmo a incapacidade de explicar a complexidade organizada. Agora, a mente seria um grande exemplo de complexidade organizada, de acordo com Dawkins, e é claro é inegável que Deus é um ser que pensa e sabe; então se levarmos em conta a alegação de Dawkins de que o teísmo não oferece uma explicação para a mente. É óbvio que os teístas não são capazes de dar uma definitiva explicação para a mente, porque, naturalmente, não há nenhuma explicação para a existência de Deus. Ainda, isso serve de arma contra o teísmo? Toda explicação chega a um ponto final; para o teísmo o ponto final é Deus. É claro, o mesmo vale para qualquer outra visão; qualquer explicação chega a um ponto final. O materialista ou o fisicalista, por exemplo, não têm uma explicação para a existência de partículas elementares: elas simplesmente existem. Então alegar que queremos ou precisamos de uma definitiva explicação para a mente é, mais uma vez, cometer petição de princípio contra o teísmo; o teísta nem quer nem precisa de uma explicação definitiva de personalidade, ou pensamento, ou mente.

No final do livro, Dawkins apóia um certo ceticismo limitado. Já que nós fomos "ajuntados" pela (não-dirigida) evolução, é improvável, ele acha, que nossa visão de mundo seja precisa; a seleção natural está interessada no comportamento adaptativo, não em uma crença verdadeira. Mas Dawkins falha em ignorar as profundas implicações céticas da visão de que nós surgimos pela evolução não-dirigida. Podemos ver isso da forma seguinte. Como a maioria dos naturalistas, Dawkins é materialista a respeito dos seres humanos: seres humanos são objetos materiais; eles não têm um ser imaterial ou uma alma ou substâncias reunidas em um corpo, e eles não contêm nenhuma substância imaterial. Sob esse ponto de vista, nossas crenças seriam dependentes de questões neurofisiológicas, e (sem dúvida) uma crença seria uma estrutura neurológica de algum tipo complexo. Agora a neurofisiologia da qual nossas crenças dependem vão ser sem dúvidas adaptativas; mas por que imaginar por um momento que as crenças dependentes ou causadas por essa neurofisiologia seriam em grande parte verdadeiras? Por que acreditar que nossas faculdades cognitivas são confiáveis?

De um ponto de vista teísta, nós esperaríamos que nossas faculdades cognitivas fossem confiáveis. Deus nos criou à sua imagem, e uma parte importante da nossa semelhança com Sua imagem é a habilidade de formular crenças verdadeiras e adquirir conhecimento. Mas de um ponto de vista naturalista o pensamento de que nossas faculdades cognitivas são confiáveis (produzem uma preponderância de crenças verdadeiras) seria no máximo esperança ingênua. O naturalista pode estar razoavelmente certo que a neurofisiologia por trás da formação da crença é adaptativa, mas não que a verdade de uma crença dependa de tal neurofisiologia. De fato ele teria que afirmar que é improvável, pela evolução não-dirigida, que nossas faculdades cognitivas sejam confiáveis. É mais provável, pela evolução não-dirigida, que nós vivemos em um tipo de mundo imaginário do que nós saibamos realmente algo sobre nós mesmos ou o mundo.

Se é assim, o naturalista tem um invalidador para suas alegações de que suas faculdades cognitivas são confiáveis - uma razão para rejeitar essa crença. (Exemplo de invalidador: suponha que alguém me disse que você nasceu em Michigan e eu acreditei; mas agora eu te pergunto, e você diz que nasceu no Brasil. Isso me dá um invalidador para a minha crença de que você nasceu em Michigan.) E se ele tem um invalidador para essa crença, ele também tem um invalidador para qualquer crença que seja produto de suas faculdades cognitivas. Mas é claro que isso seria em relação a todas as suas crenças – incluindo o próprio naturalismo. Então o naturalista tem um invalidador para o próprio naturalismo; natural-ismo, logo, é auto-refutável e não pode ser racionalmente crido.

O problema real aqui, obviamente, é o naturalismo de Dawkins, sua crença de que não existe Deus ou algum ser como ele. Isso é assim porque o naturalismo exige que a evolução seja não-dirigida. Então a conclusão mais ampla, é que não é possível aceitar racionalmente o naturalismo e a evolução; naturalismo, logo, está em conflito com a principal doutrina da ciência contemporânea. Pessoas como Dawkins dizem que há um conflito entre ciência e religião porque eles acham que há um conflito entre evolução e teísmo; a verdade, entretanto, é que há um conflito entre ciência e materialismo, não entre ciência e crença em Deus.

Deus, Um Delírio é bombástico, mas não apresenta uma razão real para acreditarmos que a crença em Deus é equivocada, muito menos um "delírio".

O naturalismo que Dawkins abraça, além disso, em adição ao seu intrínseco desamor e suas conclusões corrompedoras sobre o ser humano e seu lugar no universo, está em profundo problema auto-referencial. Não há razão para acreditar no naturalismo, e há razões para rejeitá-lo.

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Notas:
1. Um terceiro livro sobre esses assuntos, The End Of Faith (O Fim da Fé), foi escrito recentemente por Sam Harris, e ainda mais recentemente uma seqüência, Carta a Uma Nação Cristã, então talvez deveríamos falar do trio de ataque – ou, já que Harris é muito jovem nesse empreitada (ele é um estudante de graduação) talvez "Os três ursos do ateísmo"?
2. Embora Dawkins cita (p.54), aparentemente aprovando, o argumento de que Deus não pode ser onisciente e onipotente: se ele é onisciente, então ele não pode mudar de opinião, logo, há algo que ele não pode fazer, então ele não é onipotente.(!)
3. Veja meu trabalho "Does God Have a Nature"? Aquinas Lecture 44 (Marquette Univ. Press, 1980)
4. O distinto filósofo de Oxford (Dawkins o chama de teólogo) Richard Swinburne propôs alguns argumentos sofisticados para a alegação de que Deus é simples. Dawkins menciona o argumento de Swinburne, mas não argumenta contra; ele se resume a ridicularizá-lo
5. E a Trindade? Como devemos imaginar a Trindade, não é muito claro, é claro, entretanto, que seja falso que para cada uma das três pessoas da Trindade, haja um outro ser do qual cada uma dessas pessoas faz parte.
6. "A Anisotropia do Universo em Tempos Longos," em M.S.Longair, ed., Confrontação das Teorias Cosmológicas com Informações Observadas (Springer, 2002), p.285.
7. John Polckinhorne, Science and Creation: The Search for Understanding (Ciência e Criação: A Busca por Entendimento) (Random House, 1989) p.22
8. Uma das melhores versões do argumento do ajuste perfeito foi proposta por Robin Collins em "A Scientific Argument for the Existence of God: The Fine Tuning Design Argument," em Michael J. Murray, ed., Reason for the Hope Within (Eerdmans, 1999), pp. 47-75.
9. Veja minha análise de "Darwin's Dangerous Idea" de Daniel Dennett em Books & Culture, Maio/Junho 1996.

Sobre o autor: Alvin Plantinga é Professor John A. O'Brien de Filosofia na Universidade de Notre Dame.
Traduzido por Vitor Pereira
Fonte: Apologia
Foto: Murdo Macleod, The Guardian. Edição na imagem: Bereianos

*Para uma análise mais profunda, recomendamos o livro "O Delírio de Dawkins", de Alister McGrath e Joanna McGrath, editora Mundo Cristão, 2007. Leia uma resenha aqui!