segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Uma teoria teísta cristã da realidade


Por Cornelius Van Til


Vimos, anteriormente, que a primeira e principal pedra angular de uma verdadeira filosofia é uma teoria do conhecimento que esteja relacionada com a concepção de um Deus que conhece todas as coisas.

Devemos agora notar que a segunda pedra angular é, mais uma vez, a concepção de um Deus absolutamente autoconsciente. Imediatamente alguém levanta uma objeção e afirma que há, então, não duas, mas apenas uma pedra angular. Exatamente – as duas convergem em uma só. As duas são apenas uma. A razão para isso é que, em Deus, conhecimento e realidade são idênticos. Este ponto é fundamental, como veremos. Notemos que devido a essa identidade, uma verdadeira teoria do conhecimento implica numa verdadeira teoria da realidade e vice-versa.

Por outro lado, uma falsa teoria do conhecimento não é um brinquedo inocente, antes envolve uma falsa teoria da realidade e vice-versa. O ponto a partir do qual você inicia seu raciocínio faz pouquíssima diferença, contanto que você tome Deus em consideração desde o princípio. Um Deus absolutamente autoconsciente é a pressuposição de uma filosofia de vida verdadeiramente teísta. A razão pela qual devemos pressupor Deus é que não podemos tê-Lo de outra maneira. Apenas para se certificar: você pode ter um deus que não seja tomado como pressuposto, no entanto, ele não será mais do que um deus finito. A “espécie” de Deus que necessitamos deve ser pressuposta. Caso você seja demasiado “científico”, você não pode se dar ao luxo de começar com uma pressuposição. Contudo, eu não posso me dar ao luxo de estar desprovido de um Deus absoluto. Essas duas posições são semelhantes a dois homens, um dos quais preferem utilizar seu dinheiro para adquirir uma casa e o outro um carro? De modo nenhum – nós devemos raciocinar juntos até à morte. Eu continuarei mantendo que sua posição termina no inferno e a minha no céu. Ajo assim ousadamente porque o faço humildemente, como alguém que recebeu pela graça.

Deus

Na teologia, nós tratamos acerca dos atributos de Deus. Se tomarmos, agora, todos estes atributos juntos e direcioná-los para um único pensamento concentrado, nós podemos considerar tal pensamento como a pedra angular de nossa teoria da realidade. Esse pensamento, em si mesmo, não pode ser expresso em outra palavra a não ser Deus. Em nossa teoria da realidade, o elemento mais importante a ser mantido é que Deus tem a realidade de Si mesmo. Nós sempre ouvimos sobre a “realidade última”. Deus é nossa realidade última. Como tal, Ele deve ser eterno e, por sua vez, tudo que é temporal é derivado. Como realidade última, Ele deve ser completamente autoconsciente, e tudo aquilo que não é completamente autoconsciente é derivado. De semelhante modo, Ele deve ser autossuficiente; e tudo aquilo que não é autossuficiente é derivado.

O universo

O termo “universo” é frequentemente tomado como se incluísse Deus e o mundo. Nós o utilizamos como referência a toda a realidade não idêntica a Deus. O teísmo afirma que o universo é temporal. Assim, para um teísmo genuíno, o termo “dependência”, quando aplicado ao universo, não significa apenas “dependência lógica”. Antes, implica a temporalidade inerente do universo em distinção da eternidade de Deus. Roma talvez esteja satisfeita em dizer que, filosoficamente, nós não precisamos nem podemos manter algo além da “dependência lógica”; todavia, nós, como Protestantes, não podemos fazer outra coisa a não ser sustentar que a doutrina da criação temporal é um elemento do teísmo cristão. A relação entre tempo e eternidade é insondável para nós. Como teístas cristãos nós admitimos francamente este fato. Se alguém julga que não pode aceitar uma filosofia a menos que compreenda plenamente todos os seus conceitos, tal pessoa não pode se tornar um teísta cristão. Nossa única resposta a ela é que não podemos prescindir de Deus. Se não podemos manter duas posições simultaneamente, é preferível manter aquela que nos é imprescindível[1]. Mas nossos oponentes desprezam nossa inabilidade de prescindir de Deus. Eles pensam nisso como “uma prova de perdição”[2] intelectual. Para eles, nossa visão de criação temporal é a marca d’água de incompetência mental. Vejamos o que eles dizem.
  
O Deus do antiteísmo

Eles dizem que nosso Deus é tão inútil como (segundo o dito) o é um ministro numa pensão. É dito acerca de nosso Deus que Ele não possui “valor” algum para a “consciência religiosa”. Pelo contrário, Ele extrai uma grande quantidade de energia dos homens, que seria mais bem direcionada na melhoria das favelas. Eles substituem nosso Deus “inútil” por um deus útil. Para ser realmente útil, um deus não deve estar “afastado” do mundo. Ele deve ser um “Deus que suja suas mãos”. Ele não deve estar assentado, como um monarca oriental, mas deve ser “o Presidente da grande comunidade”. Desse modo, Ele é colocado no seu cargo mediante voto popular; Ele deve ser “a vontade comum idealizada” e “o Democrata”. Um deus dessa “espécie” é realmente útil porque ele fará tudo que puder para nos ajudar, bem como a si mesmo; ele é “o grande trabalhador”. Se nos sentimos desencorajados, ele está ao nosso lado, e se ele, por seu turno, também está desencorajado, talvez possa “extrair de nossa fidelidade força vital e um aumento de seu bem-estar”. Este deus é extremamente sociável. Ele não é aquele “monopolista rixoso que afirma:‘não terás outros deuses além de Mim’”, sobre o qual lemos nas Escrituras. O deus “útil” permitir-nos-á sermos “científicos”. Ele mesmo é realmente um cientista pioneiro – uma verdadeira “mente aberta”, sempre em busca de novos fatos. Sua juventude é constante renovada como a da águia[3]. “Atualmente, a deidade é sempre a qualidade empírica superior em relação à qualidade presentemente evoluída”. Ele é uma “variante” ao invés de uma constante. Ele é o produto de um Vir-a-ser ao invés da Fonte do Ser. Está intimamente unido ao fluxo universal das coisas. Portanto, Ele pode ser (e de fato é) o verdadeiro cientista.
  
O universo do antiteísmo

Para nós, Deus é a fonte do universo. Para nossos oponentes, o universo é a fonte de Deus. Para eles, o Espaço-tempo precede a Divindade; o Processo é anterior à Realidade. Deus "é, stricto sensu, uma criatura, e não um Criador”. Ou, novamente, talvez seja preferível dizer que Deus é um aspecto ao invés de um produto do processo do universo. Ele é “apenas a tendência ideal nas coisas”. Em cada caso, o universo é mais original do que Deus; Ele e os homens são cidadãos no universo que existe independentemente de ambos. Acerca da origem do universo, ninguém sabe nada efetivamente. Mas isso não importa. Acidentes acontecerão. Se você colocar seis macacos datilografando várias máquinas de escrever, eles eventualmente produzirão todos os livros do Museu Britânico. O racional, de alguma forma, procede do não-racional; o maior, de alguma maneira, procede do menor; a mais escassa possibilidade, de algum modo, produz a realidade.

O futuro deste universo é igualmente uma questão de sorte. Talvez haja propósito no mundo, mas caso haja, tal propósito é, de qualquer maneira, autogerado; Deus não o colocou ali. Em suma, devemos afirmar que o universo “adquiriu” Deus e anunciou publicamente a fusão empresarial. Enquanto a transição está sendo efetuada, os homens podem ainda assinar cheques no antigo banco e serão honrados pelo novo. Em breve, contudo, novas cédulas serão impressas e o comércio dos homens religiosos continuará exclusivamente com o universo. Então, por que não comprar algumas ações na nova “especulação da fé”? A religião não precisa do Deus antigo. Por enquanto, você pode pensar que sim – você se acostumou com o seu Deus antigo da mesma maneira que se acostumou com seu chapéu antigo. E, assim como você se habituará ao seu novo chapéu após usá-lo por um tempo, você se habituará ao seu novo Deus. Ele, de fato, tem uma aparência melhor do que o anterior – ele vai durar mais tempo. É hora de mudança.

Conclusão

Acaso fizemos uma caricatura da posição de nossos oponentes? Não, de modo nenhum. Há vários filósofos que acreditam num Deus tal como descrevemos. Não é necessário buscar em livros empoeirados, mas nas listas das obras mais populares para encontrar o tipo de deus e de universo que abordamos. Sendo assim, não é injustiça afirmar que a representação que se faz de Deus é o deus de grande parte da literatura atual. É verdade que há pensadores idealistas que não usariam a terminologia grosseira de seus irmãos mais pragmáticos. Contudo, se eles levassem a cabo as implicações de sua própria posição – até o amargo fim delas –, eles terminariam exatamente onde o Pragmatismo termina. Os Idealistas, assim como os Pragmatistas, admitem, logo no princípio de seu raciocínio, que o “universo” (ou, como eles constantemente se referem, a “realidade”) é um conceito fundamental mais extenso e mais fundamental do que o conceito de Deus. Podem não afirmar com estas palavras, mas o sentido é equivalente. Eles incluem Deus e o homem no seu termo “realidade”. Portanto, desde o princípio, a posição deles se configura como monista[4].

E se Deus está, desse modo, confinado ao universo, Ele deve se tornar um deus em evolução ou temporal, uma vez que o universo é temporal. Quando um se move, o outro também o faz, tal como as rodas da visão de Ezequiel. Podemos concluir que o Deus que esboçamos acima é a única alternativa para o Deus que servimos. Você deve servir um desses dois Deuses. Todo ser humano, na verdade, serve a um ou ao outro. A completude e a exclusividade desta alternativa deveriam ser apontadas em tempo oportuno e em tempo não oportuno. Josué afirmou que pouco importava quais deuses, dentre todos disponíveis, o povo serviria. Todos os ídolos, ele descreve, eram em última análise o mesmo, não importa quais eram seus nomes ou formas. Josué também não tentou ocultar do povo estes deuses. Ele apresentou todos os ídolos perante os olhos dos jovens e lhes disse para fazer uma escolha. Sua política era exibir todos estes ídolos a fim de que sua vacuidade pudesse vir à tona. Essa é uma política perigosa? Certamente, mas todas as outras são mais perigosas. Não se pode encontrar segurança tentando esconder de nossa juventude aquilo que está acontecendo no mundo. Eles descobrirão de qualquer modo. A única questão diz respeito ao modo como encontrarão, seja conosco e sob nossa orientação, seja por si mesmos. Portanto, devemos buscar, no desenvolvimento de uma filosofia verdadeiramente cristã, mostrar aos nossos jovens homens e mulheres que todas as posições, com exceção do teísmo, conduzem à total e final destruição de toda experiência humana. Se formos fiéis nisso, nesta nossa tarefa, podemos confiadamente esperar que o Espírito de Deus usar-nos-á como instrumentos para o estabelecimento de Seu reino nos corações dos homens.

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Notas:
[1] No original o autor realiza um jogo de palavras, baseado em uma expressão idiomática, praticamente intraduzível para o Português: “If we cannot have both cake and bread we would rather have bread than to have neither of the two”.
[2] Referência a Filipenses 1:28.
[3] Referência a Isaías 40:31.
[4] Monismo (do grego  μόνος, único, sozinho) é concepção filosófica segundo a qual a multiplicidade e variedade dos entes podem ser explicadas em termos de uma única realidade ou substância. Dito de outra forma, existe apenas uma substância da qual todos os entes são derivados. Dentre os pré-socráticos, Tales e Heráclito foram um dos principais adeptos dessa corrente e, séculos depois, Plotino, o principal Neoplatônico da Antiguidade, advogava a existência de um deus transcendental e inefável, denominado “O Uno”, a primeira hipóstase, de cuja natureza indivisível derivavam três outras hipóstases; são elas: o Nous (νους), o Pensamento, a Inteligência Divina; a Psyché (ψυχή), a Alma Cósmica; e, finalmente, o Cosmos (κόσμος), mundo em toda a sua ordem e harmonia.

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Fonte: Presuppositionalism 101Cornelius Van Til - Collection of Articles From 1920–1939. The Christian Theistic Theory of Reality - The Banner, 1931, Volume 66, Pages 1032ff
Tradução: Fabrício Moraes
Divulgação: Bereianos

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