- Essa palavra é muitas vezes pobremente traduzida por "tentação", mas na verdade significa pavor, desespero, sensação de perdição, agressão e ansiedade. Lutero usou o termo para descrever os intensos conflitos espirituais que afligiam sua consciência em sua torturante busca do Deus misericordioso. Ele dizia que sentia como se sua alma tivesse sido estendida com Cristo, de forma que todos os seus ossos poderiam ser contados, "nem há um só canto não preenchido pelo mais amargo sofrimento, horror, medo, dor, e todas essas coisas parecem eternas". Ao simples farfalhar de uma folha seca, o universo inteiro parecia desabar sobre ele. Sua condição era tão desesperada que ele desejava poder esconder-se numa toca de ratos. O "vasto mundo" havia-se tornado estreito demais para ele, mas não havia saída.
A experiência das Anfechtungen foi mais do que uma fase momentânea na peregrinação espiritual de Lutero. Esse princípio recorrente em toda sua vida definiu sua abordagem da teologia. Numa famosa afirmação, Lutero confessou:
Não aprendi minha teologia toda de uma vez, mas tive de buscá-la mais a fundo, onde minhas tentações [Anfechtungen] me levavam. [...] Não a compreensão, a leitura ou a especulação, mas o viver, ou melhor, o morrer e o ser condenado fazem um teólogo.
Portanto, a teologia é um processo vitalício de lutas, conflitos e tentações. Enquanto a fé traz consigo uma segurança confiante, devemos estar sempre alertas contra uma securitas carnal. Os cristãos diariamente devem ter por certos os ataques incessantes. "Ninguém deve seguir seu caminho segura e despreocupadamente, como se o diabo estivesse longe de nós." Lutero -borrecia-se com aqueles que transformavam sua ênfase no sola fide ("somente pela é") numa crença fácil. A tentação e a experiência, ele disse, sem dúvida nos ensinam que a fé é "mesmo uma arte difícil":
Pois quando seus olhos contemplam a morte, o pecado, o diabo e o mundo, e sua consciência luta quando a batalha é travada, ouso dizer que você começará a suar frio e declarar: eu preferiria andar até Santiago de Compostella numa armadura [referência à cidade na Espanha onde se diz que o apóstolo Tiago, o qual enfatizava as obras em detrimento da fé, foi queimado] a sofrer essa angústia.
A fé genuína e a verdadeira teologia são forjadas sobre a bigorna da tentação, porque só a experientia faz um teólogo.
A terceira marca da teologia de Lutero era seu caráter dialético. Qualquer feitura das Escrituras e da experiência humana que ofereça mais do que uma análise superficial será até certo ponto dialética, já que nem a vida, nem a Bíblia prestam-se a uma sistematização fácil. Lutero, entretanto, mais do que a maioria dos teólogos, parecia regalar-se em paradoxos. Ele falava, quase que invariavelmente, em conjuntos de dois: lei e evangelho, ira e graça, fé e obras, carne e espírito, com respeito a Deus ou ao mundo {coram Deo /coram mundo), liberdade e escravidão, Deus oculto e Deus revelado. Mesmo quando um dos lados desses pares não é expressamente desenvolvido, encontra-se ali por implicação.
A verdade só pode ser alcançada quando confrontada com uma verdade contrastante. Por exemplo, não poderíamos entender o evangelho
não fosse pela lei, que revela nossa incapacidade de viver corretamente e assim aponta-nos para Cristo.
Nesse caso, a polaridade lei—evangelho é entendida conjuntamente: tanto a lei quanto o evangelho são essenciais à salvação. Outras vezes, os mesmos termos são usados disjuntivamente: ou nos apegamos à lei e somos condenados, ou confiamos no evangelho e somos salvos. Essa maneira de pensar aumentou a tensão na teologia de Lutero. Quase invariavelmente, Lutero escolheu viver com a tensão, em vez de dissolver o paradoxo. Devemos ver agora como essa dialética é desenvolvida em sua doutrina da justificação.
Timothy George
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