Raquia é o termo hebraico que descreve o espaço criado por Deus no segundo dia da criação para acomodar a existência humana no sentido mais pleno da palavra. O espaço designado como raquia consistia basicamente numa expansão no meio das águas, afirma Gênesis 1.6, projetada para manter as águas de cima longe do espaço para a existência humana. Mais especificamente, raquia era um espaço firme em meio a fluidez das águas que formavam a primeira condição do nosso planeta. Após ter concluído esse prodígio arquitetônico, o Criador resolveu dar um nome para esse espaço – céus, é o nome que lemos em Gênesis 1.8.
Ora, “céus” é uma palavra curiosa, pois sugere que esse firmamento é na verdade uma proteção dupla, protegendo o ser humano das águas debaixo e das águas que estão acima dele. O termo hebraico traduzido por “céus” não está no plural, mas sim numa forma sem paralelo na língua portuguesa chamada dual, cuja definição seria algo próximo do que conhecemos como “par”. Algumas palavras em hebraico eram comumente usadas no dual, por exemplo, olhos, faces e, obviamente, a palavra céus. É por isso, então, que o leitor original da narrativa de Gênesis conseguiria ver esta blindagem dupla do espaço designado ao ser humano, quando o termo “céus” era utilizado.
Ao considerar estas coisas, me pergunto constantemente: O que está acontecendo com nosso espaço, criado especialmente para nossa existência e convivência? Mais do que em qualquer outro momento, as catástrofes atuais no Japão parecem indicar que o nossoraquia está ruindo, sendo invadido pela águas de baixo e de cima. Será que nosso espaço tem um prazo de validade? Será que havia restrições e condições de uso que acabaram alterando a arquitetura original do raquia?
Quando observo o modo como outras religiões do mundo antigo entenderam e conceberam o espaço da sua existência, fico pensando na proposta por detrás da descrição encontrada em Gênesis 1. Há uma inscrição no teto do recinto onde se encontra a tumba de Ramsés IV (ca. 1163-1156 a.C.), em Tebas, no Egito, que descreve vários tópicos relacionados ao assunto da criação. Nessa inscrição, o falecido é identificado como a fonte de onde todas as coisas foram criadas nos seguintes termos: “Eu sou as Águas, únicas, sem igual! Eu sou aquele que deu início, nas águas. Eis que o dilúvio é subtraído de mim! Eu sou aquele que me criou. Eu construí a mim mesmo segundo o que desejou meu coração.” Na cosmovisão egípcia, então, as águas não foram criadas pela divindade que eles adoravam (muito menos pelo Deus da Bíblia!), mas aságuas eram o próprio deus. A primeira impressão que um egípcio dos dias de Ramsés IV teria ao ler o relato da criação seria negativa - um relato arrogante, ele diria! A idéia do raquia comunicaria imediatamente a tentativa de isolar o ser humano da divindade responsável pela criação. Como um egípcio de então explicaria a tragédia do Japão? Provavelmente leria os eventos como uma intervenção direta da divindade contra a humanidade.
Como o leitor original (talvez seria melhor dizer ‘como o autor original’!?) explicaria os eventos recentes à luz do relato da criação? Partindo do pressuposto que o autor nesse caso é o próprio Deus, o relato de Gênesis 1 introduz uma grande polêmica com a cosmovisões de outros povos, como exemplificado no caso dos egípcios. Ao tratar as águas como algo (e não alguém) que tem que abrir mão do seu espaço para criar espaço para o ser humano, o Deus das Escrituras ataca frontalmente a honra devida aos deuses dessas nações. Afastar águas para caber o ser humano pode ter sido entendido pelos egípcios de então como uma brincadeira de muito mal gosto, uma provocação desnecessária. Assim, o relato de Gênesis nos oferece uma perspectiva importante para avaliarmos e entendermos os eventos atuais.
O relato de Gênesis nos apresenta um habitat criado para o ser humano, capaz de projetá-lo como alguém especial, com um relacionamento especial com seu criador, mas também com responsabilidades especiais – encher a terra e sujeitá-la. Essa responsabilidade tão especial requeria, sem dúvidas, um relacionamento contínuo e crescente com o Criador. Creio que as tragédias assistidas por nossa geração assinalam a falência do ser humano isolado de Deus no exercício de sua responsabilidade de sujeitar a terra. A grandeza e magnitude dos agentes de destruição nesses eventos atuais deveriam nos alertar para a grandeza e magnitude do Deus que preparou esse espaço para nossa existência.
Antes de tentar simular uma responsabilidade divina para os eventos atuais, deveríamos lembrar das nossas responsabilidades como seres humanos criados de encher e sujeitar a terra. O fato de vermos a terra enchendo e sujeitando o espaço originalmente designado ao ser humano é um indicativo de que, sozinhos, estamos perdendo o nosso espaço.
D. Santos
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