O adolescente escuta enquanto o professor [re]afirma a posição de Nietzche quanto a convicções religiosas: “toda convicção é uma prisão...” O moço então pergunta se afirmativas como esta e como a morte de Deus não seriam também prisões. “Então, de acordo com o filósofo, você precisa duvidar de toda opinião, até mesmo desta”, foi a resposta rápida do professor. Só que o aprendiz, sem esquecer o ódio que o professor nutre por quem classifica Nietzche como niilista (posição filosófica que nega a realidade substancial, a possibilidade da verdade ou qualquer moral transcendente), perguntou maroto: “mas isso não seria, então, uma forma de niilismo?” Essa troca aconteceu pouco tempo atrás, em uma classe de ensino médio.
A história é antiga. A expressão “não existe absolutamente nenhuma verdade absoluta” é a mãe de todas as filosofias absolutistas! “Todo discurso normativo é uma tentativa de dominação...” ou “toda metanarrativa é uma agressão ideológica...” E por aí vão as declarações aparentemente libertadoras, mas surpreendentemente totalitárias. Fico pensando se Alvin Plantinga não tinha razão quanto afirmou: “Acho difícil ver essa atitude como manifestação de tolerância ou de humildade intelectual: parece-me mais uma condescendência paternalista...” (Alvin Plantinga, Warrented Chistian Belief).
Uma questão tem ocupado minha cabeça: por que é que se fala tanto sobre liberdade de pensamento enquanto radicalizações, coercivas ou não, parecem se multiplicar como coelhos!? E isso, sem gastar tempo mostrando como tal estado de coisas vem acompanhado do ocaso do debate frutífero de idéias bem firmadas, cuidadosamente articuladas e respeitosamente expressadas.
Pensei em chamar este texto pelo título: “Voltaire, socorro!” (Voltaire, ou François Marie Arouet, 1694-1778). Mas, talvez, o título não ficasse bem para um pastor, e, portanto, preciso me explicar (já que acabei deixando escapar!). A antiga tradição da tolerância, a do Iluminismo, dizia algo mais ou menos assim: posso discordar de suas idéias, mas lutarei para que você as possa ter. A suposta “tolerância” de hoje, entretanto, parece gritar: acredite no que quiser menos em que sua crença seja verdadeira!
Fico lembrando que houve tempo em que idéias eram defendidas na ponta da lança ou no tacape. Alguns povos mais espertos, entretanto, resolviam suas diferenças de forma mais “maneira”. Para algumas tribos, as diferença podiam ser resolvidas no grito e no volume do som do bater dos pés. Mas outras tradições milenares apostavam no diálogo, no debate, ou mesmo nas disputas, como melhor maneira para defender idéias e convicções. É assim na tradição bíblica, no pensamento cristão, e especialmente na herança dos reformadores: idéias são importantes, convicções são necessárias e existem acertos e erros, e cada um vai se comprometer com certas crenças e visões das coisas. É claro que, para alguém que crê assim, será inevitável o estabelecimento de um ponto de referência, tal como de uma confiança em que esse ponto de referência seja passível de conhecimento.
Para um cristão, o ponto final de referência é o próprio Criador, que é conhecido de forma pessoal em sua revelação e especialmente e Cristo, o Deus-homem. Mas, exatamente porque reconhece esse ponto de referência externo a ele mesmo, e porque ele aceita que Deus se revela, é que o cristão valoriza o debate de idéias e aceita que o convencimento da verdade envolve fatores racionais, afeitos e, finalmente, de motivos do coração – como eu reajo ao conhecimento de Deus que me confronta nas múltiplas formas como esse Deus se revela. Isso gera uma dupla atitude: firmeza nas convicções já alcançadas e, ao mesmo tempo, tranquilidade quanto ao fato de que essas convicções podem e devem ser objeto de discurso persuasivo, mas nunca poderão ser impostas a outros por força externa – nem mesmo no grito ou no bate-pé!
Aliás, é por aí que vai o apóstolo Paulo quando argumenta em favor da verdade e afirma que, mesmo não pensando ter alcançado a plenitude do conhecimento, prossegue para o alvo de ver as coisas por meio da ótica de Cristo, e, então, completa:
“Todos nós que alcançamos a maturidade, devemos ver as coisas dessa forma, e, se em algum aspecto vocês pensam de modo diferente, isso também Deus lhes esclarecerá. Tão-somente vivamos de acordo com o que já alcançamos” (Filipenses 3,15-16).
Davi Charles Gomes
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Publicado em Revista Mackenzie, Ano XV - No. 56 - 2013
Fonte: Coramdeo
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