Arrependimento e Perdão – João Calvino
O ARREPENDIMENTO É DOM DA GRAÇA DIVINA, QUE FACULTA O PERDÃO A TODO PECADO, EXCETO O PECADO CONTRA O ESPÍRITO SANTO
Com efeito, à luz da exposição precedente, julgo ser o arrependimento um singular e mui claro dom de Deus, o que não exige uma nova elaboração e uma longa consideração. E assim a Igreja louva a benevolência de Deus e se maravilha de que ele tenha dado aos gentios o arrependimento para a salvação” [At 11.18]; e Paulo, ordenando a Timóteo que fosse paciente e brando para com os incrédulos, diz: “Instruindo com mansidão os que resistem, se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade, para que se livrem dos laços do Diabo” [2Tm 2.25, 26]. Deus, na verdade, afirma que quer a conversão de todos, e dirige suas exortações a todos em comum. A eficácia disso, no entanto, depende do Espírito de regeneração.
Porque, mais fácil seria criar-nos como homens do que revestir-nos de nossa natureza mais excelente com nossos próprios recursos. E assim, não sem causa, em todo o curso da regeneração somos chamados “feitura de Deus, criados para as boas obras, as quais ele preparou para que andemos nelas” [Ef 2.10].
A todos quantos Deus quer arrebatar da perdição, a esses os vivifica mediante o Espírito da regeneração; não que o arrependimento seja propriamente a causa da salvação, mas porque já se viu que ele é inseparável da fé e da misericórdia de Deus, quando Isaías atesta que “vem a Sião um redentor e àqueles que em Jacó se têm voltado da iniqüidade” [Is 59.20]. Com efeito, isto se estabelece com solidez: onde quer que floresça o temor de Deus, o Espírito tem operado para a salvação do homem.
E assim os fiéis em Isaías, enquanto se queixam e deploram que foram abandonados por Deus, põem isto como um sinal de sua rejeição: que seu coração foi divinamente endurecido [Is 63.17]. Querendo excluir também os apóstatas da esperança de salvação, o Apóstolo apresenta a razão: é impossível que estes sejam renovados para o arrependimento [Hb 6.4-6], porquanto, ao renovar aqueles a quem não quer que pereçam, Deus mostra, na verdade, o sinal de seu paterno favor e, por assim dizer, a si os atrai com os raios de seu sereno e propício semblante. Por outro lado, ao endurecer os réprobos, cuja impiedade é irreversível, seu rosto dardeja contra eles raios de indignação.
O Apóstolo denuncia aos apóstatas deliberados esta espécie de represália, os quais, enquanto se afastam da fé genuína do evangelho, têm a Deus em escárnio, desprezam obstinadamente sua graça, profanam e calcam aos pés o sangue de Cristo [Hb 10.29]; com efeito, quanto neles está, crucificam-no de novo [Hb 6.6]. Ora, aí ele não suprime, como querem certos indivíduos erroneamente rigorosos, a esperança de perdão a todos os pecados voluntários. Contudo, ensina que a apostasia é indigna de toda escusa, de sorte que não é de admirar que Deus puna com rigor inexorável a tão sacrílego desprezo de seu Ser.
Pois, nessa mesma Epístola, o Apóstolo ensina que “é impossível que aqueles que uma vez foram iluminados, já provaram o dom celeste, já foram participantes do Espírito Santo, tenham degustado a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, se decaem dessa bem-aventurada condição, sejam outra vez renovados para o arrependimento; estando, assim, crucificando de novo o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia” [Hb 6.4-6]. De igual modo, em outro lugar: “Se”, diz ele, “depois de recebido o conhecimento da verdade pecamos, deliberadamente, já não resta mais sacrifício pelos pecados; ao contrário, uma certa expectação horrenda de juízo” etc. [Hb 10.26, 27].
Essas são também passagens, em virtude de errônea interpretação, que os novacianos outrora extraíam matéria para suas aloucadas postulações, ofendidos pelo rigor das quais certos bons varões vieram a crer ser esta uma Epístola espúria, a qual, no entanto, em todo aspecto respira realmente o espírito apostólico. Mas, uma vez que não estamos a contender senão com aqueles que a abraçam como genuína, é fácil de demostrar quão longe estão essas expressões de favorecer seu erro. Primeiramente, é necessário que o Apóstolo esteja em harmonia com seu Mestre, o qual afirma que haverá de perdoar todo pecado e blasfêmia, exceto o pecado contra o Espírito Santo, o qual não se perdoa nem neste mundo, nem no vindouro [Mt 12.31, 32; Mc 3.28, 29; Lc 12.10].
Nenhum comentário:
Postar um comentário