quarta-feira, 3 de outubro de 2012


   Sua Graça não foi em Vão - João Calvino


Porque sou o menor (1Co 15. 9,10). Não é certo se seus inimigos falavam isso aos outros com o intuito de enfraquecer sua confiança nele, ou se ele procedeu assim numa confissão inteiramente extraída de sua livre vontade. Quanto a mim, não tenho dúvida de que ele jamais teve a menor hesitação de estar preparado e mesmo feliz em se subestimar a fim de magnificar a graça divina, embora eu suspeite que neste versículo ele pretendesse refutar falsas acusações assacadas contra ele. 

Em Corinto, havia pessoas que se ocupavam de minar sua autoridade, falando maliciosamente contra ele. Podemos deduzir tal fato das muitas passagens precedentes, e também de uma comparação que ele introduz um pouco mais adiante, o que jamais faria se não fora forçado a assim fazer pela fraqueza de algumas pessoas. Ele poderia ter posto assim: "Insultai-me tanto quanto vos agrade, eu não me importarei de ser rebaixado abaixo do próprio pó; não me importarei de ser tido na conta de nada, para que a benevolência divina para comigo esteja em muito maior evidência. 

Portanto, que eu seja considerado como o menor dos apóstolos; na verdade, tenho consciência de nem mesmo merecer essa posição [e título]. Pois, que méritos tive eu que seria capaz de alcançá-lo? Quando costumava perseguir a Igreja de Deus, o que merecia, pois? Porém, não há necessidade alguma de determinardes minha dignidade, porque o Senhor não dá a menor importância ao tipo de homem que fui, mas, pela operação de sua graça, ele fez de mim outro homem."

O que importa é o seguinte: Paulo não recusa ser o menor de todos, na verdade quase uma nulidade, contanto que, ao ser assim considerado, não constituísse um obstáculo ao seu ministério, em qualquer sentido, e nem prejudicasse um mínimo sequer o seu ensino. Ele se sente plenamente satisfeito consigo mesmo ao ser considerado indigno de qualquer honra, contanto que pudesse encomendar seu apostolado em razão da graça que lhe fora concedida. E Deus certamente não o honra com dons mui excelentes para que sua graça seja sepultada no olvido, mas sua intenção era tornar o apostolado de Paulo o mais notável e o mais confiável possível.

E sua graça... não foi em vão. Aqueles que se põem deliberadamente em oposição à graça de Deus, temendo que venhamos fazê-lo totalmente responsável por tudo o que de bom fazemos, torcem estas palavras para que se ajustem ao seu ponto de vista, como se Paulo estivesse vangloriando-se de que, por seus próprios esforços, cuidasse de impedir a Deus de lhe conferir sua graça para nenhum propósito. Conseqüentemente, chegaram à conclusão de que a graça é certamente oferecida por Deus, mas o uso correto dela é algo que o homem tem em seu próprio poder, e a responsabilidade de obtê-la, mantendo-a latente, é sua. 

Nego, porém, que estas palavras de Paulo dêem qualquer apoio a esse ponto de vista equivocado, porque neste versículo ele não está reivindicando nada para si mesmo, como se tivesse feito, independentemente de Deus, algo louvável. Então, o que ele quer dizer? A fim de não dar a impressão de fazer fútil ostentação, com todo o vocabulário, porém carente de realidade, ele declara que está afirmando aquilo que está à vista para quem quiser ver. Finalmente, concedido que estas palavras mostram que Paulo não fazia mau uso da graça de Deus, e não a tornou inútil por sua própria negligência, todavia sou de opinião que não temos qualquer justificativa, por essa conta, para dividir entre ele e Deus o louvor que deve ser atribuído exclusivamente a Deus, à vista do fato de que Deus nos outorga não só a capacidade de agir bem, mas também a vontade de agir bem e o resultado de nossos esforços.

Trabalhei muito mais. Alguns acreditam que esta expressão se direciona aos fanfarrões que, ao denegrirem a pessoa de Paulo, estavam promovendo a si próprios e a seus futuros interesses pessoais; porque, segundo este ponto de vista, não seria digno de Paulo querer entrar em competição com os apóstolos. Mas quando ele se compara aos apóstolos, ele o faz motivado por pessoas ímpias que tinham o hábito de confrontá-lo com eles a fim de rebaixarem sua reputação, segundo vemos na epístola aos Gálatas (1.11). Assim, é bem provável que ele esteja falando dos apóstolos, quando avalia seus próprios esforços acima dos esforços deles. E certamente é verdade que ele se sobressaía nas demais áreas, não só em suportar muitas dificuldades, em passar por muitas provas e experiências, em abster-se de muitas coisas para cujo uso ele tinha toda a liberdade, mas porque o Senhor estava coroando seus esforços com uma maior medida de sucesso. Pois considero 'labor' como que significando os resultados que deviam ser vistos em seu trabalho.

Não eu, mas a graça de Deus que era comigo. Ao omitir o relativo [que], a Vulgata deu aos que não conhecem o grego uma oportunidade de cometer equívoco. Porquanto ela traz: "Não eu, mas a graça de Deus comigo", o que leva à conclusão que só a metade do crédito é atribuída a Deus, enquanto que a outra metade é atribuída ao homem. Portanto, o seu raciocínio é que Paulo não agia por conta própria, porquanto nada poderia fazer sem a graça cooperante, enquanto que, ao mesmo tempo, seu próprio livre-arbítrio e seus próprios esforços tinham sua própria participação na ação. Porém, suas palavras vibram uma nota completamente diferente, pois, havendo dito que algo lhe era aplicável, ele corrige isto e o transfere inteiramente para Deus; inteiramente, insisto, e não apenas uma parte; pois afirma que, seja o que for que pareça ter sido feito por ele, na verdade era totalmente obra da graça.

 Este é deveras um versículo notável, não só em reduzir a pó o orgulho humano, mas também em fazer evidente como a graça divina age em nós. Porque, como se tivesse cometido um equívoco em fazer dele mesmo a fonte de algo bom, Paulo corrige o que havia dito, e declara que a graça de Deus é a causa eficiente de tudo. Não devemos imaginar que Paulo está meramente simulando humildade, aqui. Ele está falando de seu coração, como costuma fazer, e porque sabe que esta é a plena verdade. Devemos, pois, aprender que o único bem que temos é aquele que o Senhor nos concedeu graciosamente; que o único bem que praticamos é aquele que ele produz em nós; que nada fazemos por nós mesmos, senão que agimos somente quando somos influenciados; em outras palavras, quando estamos sob a direção e influência do Espírito Santo.

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