sábado, 28 de setembro de 2013

Haraquiri teológico – parte 2: a ignorância não protege ninguém


Por Jorge Fernandes Isah


A doutrina do “não-senhorio de Cristo”[1] nada mais é do que a repaginação de outra distorção, uma nova vestimenta para algo velho também chamado de antinomismo [gr. Anti=contra + Nomos=lei, literalmente quer dizer contra a Lei], em que a obediência consciente, objetiva e voluntária à Palavra de Deus é confundida com o legalismo, e assim se tem uma justificativa para se transgredir a Lei, assumir a imoralidade, destruindo os fundamentos essenciais do Cristianismo, de forma que a igreja se torne ineficaz, não ultrapasse o limite que a torne em sal e luz em meio a uma sociedade transgressora e que cada dia mais rejeita qualquer noção, por menos que seja, proveniente da revelação divinamente expressa. É uma nova tentativa de anular o Evangelho e a obra completa de Cristo na vida do eleito; de anular o Evangelho e obra de Cristo na igreja; de anular o Evangelho e a obra de Cristo no mundo. Esses homens pregam o anti-evangelho, cujo fim é a morte.

O problema está sempre em abandonar aquilo que a Escritura diz e que foi corroborado através dos séculos pela igreja. Uma interpretação que suprima um princípio ou descontextualize a Bíblia implicará na heresia ou no erro [ambos se misturam de tal forma que é difícil separá-los, ainda que se tente fazê-lo tenazmente]. E aqui encontramos dois pilares do Cristianismo que têm sido alvos dos inimigos de Deus, os quais muitos que se dizem cristãos combatem ferozmente: a Escritura como palavra divinamente inspirada, inerrante e infalível, e a igreja. Não é interessante o empenho de quem diz ser a Bíblia a sua regra de fé, mas colocam-na sempre em dúvida? E igualmente interessante que exista uma igreja universal e celestial mas sem a necessidade de que haja um corpo local? Diz-se normalmente que a igreja é formada pelos salvos, de que são os homens e não os templos construídos por mãos que tornam-na igreja. E nisto, eu concordo. Porém, não é estranho que a igreja, para eles, seja um agrupamento etéreo, metafísico, diáfano, apenas formado pelas almas/espíritos dos eleitos? Sempre penso: onde entra o corpo nesse esquema, visto serem os homens formados por corpos/almas? Parece uma igreja de ficção científica, possível de se idealizar, mas impossível de se realizar aqui neste mundo.

Acontece que tem de haver uma fragmentação, dissociação, ruptura, na doutrina bíblica para poder se criar algo tão equivocado como a teologia do não-senhorio de Cristo. Seria o mesmo que se querer um cristianismo sem Cristo, onde ele apenas nos salvaria sem jamais ser o nosso Senhor. Seria negar toda a Escritura em seu princípio mais evidente: Cristo como Senhor e Salvador. Na maioria das vezes em que Cristo é apresentado na Escritura é-o  como Senhor e como Salvador. A profusão de vezes em que a Bíblia se refere a Deus como Senhor é esmagadoramente maior do que quando ela se refere isoladamente a ele como Salvador. Em quase todas, quando se utiliza a designação Salvador para Deus, ela vem associada à palavra Senhor. É uma prova incontestável de que Deus não pode apenas salvar a quem não está debaixo do seu senhorio. Assim é-nos revelado que para sermos salvos é necessário que sejamos também escravos de Cristo. Separá-lo nada mais é do que se criar um outro cristo, um cristo não bíblico, parte de um cristianismo não-bíblico, não revelado; e que nem mesmo pode ter um “reino” visto não haver súditos para formá-lo. Penso que o autonomismo e a ignorância, tão vivamente difundidos nos últimos séculos, têm levado o homem a uma ruína cada vez maior, pois o tem lançado em um labirinto onde não há saída ou, quando muito, as “saídas” tem-no tornado ao mesmo lugar. Permanece-se o círculo vicioso em que o indivíduo necessita desesperadamente de ajuda mas não a quer, porque sequer imagina-se capaz de precisar dela; em sua autosuficiência ele definha-se enquanto se imagina enrobustecer.

Imaginemos um rato enjaulado. Ao se abrir a portinhola da gaiola, o que ele fará? Ainda que tenha nascido na gaiola e não conheça nada além dela, mesmo que se gaste algum tempo, ele se aventurará pela porta que o levará à liberdade. No caso do homem, ele não reconhece a porta, não a vê, e prefere manter-se preso entre as grades. Ele não admite que pode fazê-lo, e por isso não faz; então bate a cabeça nas grades, lança-se ao chão, escala as paredes e se joga lá do alto, corre desarvoradamente no cubículo, mas não pode ver a abertura que o tirará dali. A sua própria incapacidade de perceber o que é bom, legítimo e verdadeiro, coloca-o na única opção possível: perceber apenas o falso e enganoso, explorando-o à exaustão. Com isto não quero dizer que os ratos são melhores ou mais capacitados do que o homem, porque os ratos não vivem a realidade humana, nem estão afeitos às mesmas consequências que o homem. O rato não é um ser moral, não toma decisões morais, nem pode sofrer por tê-las ou não, já que não as têm. O rato não tem uma consciência que vá além das suas necessidades básicas: a sobrevivência. Ainda que seja um animal social, ao viver em bando, questões como o bem e o mal não lhe afetam, nem o move a decisão, mas apenas e tão somente a subsistência do bando. De certa forma, o bando é o “indivíduo” pelo qual o rato vive e existe. A sua realidade é outra; a sua liberdade é outra; o que o leva a sair não é o mesmo que leva o homem a ficar, ou o moveria a escapar; pois o homem, ao contrário do rato, é um ser moral, mesmo que ele a rejeite ou viva imoralmente. O fato de se ser imoral pressupõe a existência de uma moral, de forma que a imoralidade nada mais é do que a rebelião. E essa revolta é contra o próprio Deus, visto ser ele quem estabeleceu quais são os princípios  morais e a ordem do homem ser dirigido por eles. Não há escolha! Portanto, quer se queira quer não se queira, o homem é e sempre será um ser moral; e toda a sua vida será guiada pelo desejo de se manter obediente a ela ou não. Apelar para a imoralidade representará apenas a não-obediência, como uma decisão que está anos-luz da ideia de neutralidade ou melhor, da ideia de nulidade ou de aniquilação da moral. A moral subsiste no homem, independente dele reconhecê-la ou não. Por isso a questão do homem que não pode ver a porta que o levará à liberdade é ainda mais grave: ele não a alcança exatamente porque sua consciência moral foi de tal forma afetada pelo pecado que o tornou escravo do pecado; mesmo que estivesse livre para fugir, não conseguiria.

Mas qual seria essa liberdade que o homem despreza?  Cristo, ora! pois, “o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” [2Co 3.17]. Sem o agir do Espírito, o homem não verá a abertura, ainda que esteja tão próximo que, dado um passo, o levaria à liberdade; mas esse passo ele não pode dar por si mesmo. Foi o que o Senhor disse:“Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” [Jo 8.31-32]. E Paulo complementou, referindo-se exatamente ao senhorio de Cristo: “Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos” [At 17.28]. A vida de muitos é simplesmente mentirosa, falsa, de maneira que estão aprisionados em uma realidade atroz, sem chance de saírem pelos seus esforços. Eles permanecerão inúteis, e gastar-se-ão até à morte. Por isso, quando as pessoas dizem: “vou comprar uma Bíblia que tenha uma linguagem mais atual”, eu entendo que isso signifique algo que seja diluído à exaustão até não haver mais mensagem alguma ali, de maneira que a ignorância seja alimentada e privilegiada… E para se ser ignorante, não é preciso muito esforço.

Quando as pessoas recusam-se a ler e estudar, se informarem além das ondas do JN ou da sopa de letrinhas dos tabloides diários, não querem nada além do manterem-se protegidos na ignorância.

Quando sites, blogs, livros, programas e workshops ditos cristãos refletem apenas a escuridão que há no homem, rejeitando completamente o Espírito revelacional, se tornam em farsantes como muitos insistem em não se assumir; tudo como parte de uma espiritualidade doentia e maligna.

A questão é que a ignorância não protege ninguém, antes lança-os no covil dos lobos, e ali, sem nenhuma proteção, além de serem assaltados serão devorados rapidamente. Vivemos tempos de privilegiar a desinformação, de privilegiar as sensações, de privilegiar tudo aquilo que pode tirar o homem da sua realidade, de forma que ele não a veja, e seja transposto para um local ainda mais escuro, tão escuro que ele é capaz de tropeçar nas próprias pernas. A Bíblia chama esse lugar de trevas, privação completa de luz. E a luz é Cristo, também chamado de a Palavra, na Escritura.

O que muitos distorcidamente alegam é que Cristo, como sendo a Palavra, não é necessariamente a palavra revelada expressamente; como se pudéssemos dissociá-lo da sua revelação, a mesma revelação que o revelou a nós. O próprio significado de “Palavra” para essa turma pode ser qualquer coisa: o espasmo de um cão hidrófobo, o suspiro de um gato preguiçoso, ou a letra “inspirada” da última sensação musical, ou qualquer lixo produzido sob inspiração diabólica. Deus pode falar ao homem de várias formas não autorizadas, e isso não é ignorância mas um alto nível de espiritualidade, ao ver deles; mas afirmar que ele se revelou integral e exclusivamente através da sua palavra inspirada é o atestado de estupidez, ainda ao ver deles. Paulo, inspirado divinamente, disse: “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus” [1Co 1.18]. O que me leva a pensar: o que eles têm verdadeiramente? Além de si mesmos? Nada. E o que podem contribuir com o que têm? Nada. E ainda assim fazem péssimo uso do que têm; porque “àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado” [Mt 13.12].

O único meio de se chegar ao conhecimento de Cristo é através da Escritura, que por ele foi-nos revelada, sendo ela a sua palavra. Mas as pessoas consideram possível tê-lo sem ser necessário tê-la; só é preciso que expliquem a si mesmas como se é possível conhecê-lo sem que ele seja revelado pela única fonte capaz de mostrá-lo. São as sutilezas do mal, como se houvesse delicadeza nas presas mortíferas de uma serpente.

Por isso, esse ideal maligno e rebelde de se ser salvo sem se ter um Senhor não pode continuar dragando vidas impunemente. Tem de ser revelado como aquilo que é em toda a sua desonestidade, imoralidade, como uma calamidade, uma desgraça que levará ao declínio, à degeneração, à impossibilidade real de consciência daquilo que se é e do que se precisa para deixar de ser, e se tornar no que se deve ser: igual, semelhante a Cristo. Ao se manter o homem numa espécie de satisfação doentia, um torpor psicótico com o pecado, está-se impossibilitado de viver a vida como Paulo nos disse que deveríamos viver, assim como ele vivia: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” [Gl 2.20].

O que todos os alvoroçados com a falsa representação mental de que se pode ser algo sem ser necessário sê-lo ainda não descobriram é que, como naquela velha história do cobertor curto, se cobre-se a cabeça, descobre-se os pés e vice-versa. Deus somente realizará a sua obra segundo os seus princípios, as suas normas e, por mais atraentes que possam vir a ser qualquer plano arquitetado pelo homem, devemos reconhecer que ele não é o plano divino. Sendo imperfeitos, pecadores e desobedientes, manejaremos aquilo que favorecerá a nossa imperfeição, pecado e rebelião. Ou seja, aperfeiçoaremos o imperfeito de forma que ele se tornará cada vez mais imperfeito. Seria como alguém diante de um doente, sem saber efetivamente o mal que lhe acomete, manejando uma prateleira de substâncias diferentes também sem conhecê-las, sem ao menos poder identificá-las, pois não apresentam rótulos. Certamente ele administrará um remédio que não curará o doente, piorando o seu estado. Sem saber quem somos e porque somos, qualquer solução será perigosa quando não mortal. Apenas Deus nos conhece, e tem o remédio na proporção correta e eficaz, capaz de curar. Desprezá-lo, e entregar-se aos seus próprios devaneios e loucuras, é o mesmo que considerar um privilégio estripar-se a si mesmo. E o haraquiri[2] nunca absolveu alguém, antes o que ele deixa evidente é a condenação.

Nota:
[1] Leia a primeira parte deste texto AQUI
[2] Haraquiri – Técnica de suicídio praticada por membros da classe guerreira japonesa. A pessoa que comete haraquiri faz uma incisão em seu abdome, de determinada maneira prefixada, e estripa-se a si mesma. O termo japonês para designar esse ritual é Seppuku.

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Fonte: NAPEC

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