A discussão da revelação no Antigo Testamento ficaria incompleta sem darmos alguma atenção aos artifícios manipuláveis, como o tirar a sorte e a categoria especial delas, o sacerdotal Urim e Tumim. Conforme observamos acima, era absolutamente proibido valer-se de técnicas típicas de divinização e de encantamento do Oriente Próximo da Antigüidade. Contudo, o lançar de sorte como meio de decisão divinamente sancionado não só era permitido sob determinadas circunstâncias, mas, na verdade, ordenado. A informação produzida por esse meio, embora não fosse verbal no sentido estrito, fornecia acesso à mente do Senhor em resposta a perguntas verbais.
A sorte (hebraico, gôrãl) foi empregada quase que exclusivamente para a divisão da terra entre as tribos e clãs de Israel depois da conquista e da distribuição das designações levíticas e sacerdotais no tabernáculo e no templo. Números 26 é a primeira passagem a atestar o uso da sorte, passagem em que a questão era a partilha equitativa da terra prometida. A terra devia ser distribuída de acordo com a população dos clãs (vv. 53,54), mas as partes da herança tribal na qual eles poderiam se estabelecer seria determinada pela sorte (w. 55,56). A natureza desses artifícios e como eles eram empregados não podem mais ser conhecidos, mas é provável que fossem semelhantes aos dados usados nos tempos modernos.
Uma vez concluída a conquista, a sorte foi lançada conforme Moisés estipulara, e as várias entidades receberam sua herança de direito (Js 14.1,2; 15.1; 16.1; 17.1,14,17; etc). Os levitas eram um caso especial, desde que eles não tinham uma cota geográfica, mas apenas determinadas cidades em que deviam ministrar para os povos circunvizinhos. Mas essas cidades, como a distribuição das tribos e dos clãs, também eram determinadas pela sorte. Assim, os coatitas (Nm 21.11-26), os gersonitas (w. 27-33) e os meraritas (w. 34-40) ocuparam 48 cidades em toda a terra, conforme o Senhor deixou claro para eles por meio do lançamento da sorte.
Davi, uma vez que construiu sua casa de adoração no monte Sião e instalou a arca lá, encarregou-se do recrutamento do pessoal do templo, designando-lhes seu lugar de residência de acordo com a prescrição da Torá (lCr 6.54-81) e, depois, definiu, por sorteio, as várias obrigações deles no templo e em relação ao templo (lCr 24.5,7,31). O mesmo foi feito para os músicos levitas, cujo ministério também estava associado ao templo. As obrigações, organização e programação deles eram todas determinadas por sorteio (25.8,9). Da mesma forma, os porteiros seguiam os procedimentos determinados por sorteio (26.13,14).
Um uso especial do lançar a sorte estava associado ao Yom Kippur, Dia da Expiação, em que dois bodes, como parte importante do ritual, eram selecionados como oferta de pecado. Um deles seria morto, mas o outro, o bode expiatório, poderia permanecer vivo e garantir a expiação para o povo ao ser levado para o deserto. Esse segundo animal era escolhido por sorteio, não aleatoriamente, ou de acordo com algum critério (Lv 16.7-10).
Mas o outro bode também era escolhido dessa maneira. Era "o bode cuja sorte caiu para o SENHOR" (V. 9) e, por isso, devia ser oferecido no altar. No processo, eram usados dois sorteios, não apenas um. Um devia apontar o bode expiatório, e o outro, o bode sacrificial, mas não fica claro de que maneira ou por qual meio isso era feito. O que está claro é que tudo isso era feito sob a orientação de Deus (Lv 16.1,2).
O Urim e Tumim eram semelhantes às sortes recém-descritas, contudo, as diferenças também são dignas de menção.28 Primeiro, a origem, a descrição e até mesmo o sentido dos termos ("luzes" e "retidão"?) estão envolvidos em mistério. Eles são primeiro mencionados em conexão com as vestes do sumo sacerdote, que devia pôr o Urim e Tumim no peitoral de seu mantelete (Êx 28.29,30; cf. Lv 8.8), talvez em algum tipo de bolso ou bolsa.
O propósito deles, se não seu modo de funcionamento, é bastante claro: o sumo sacerdote poderia usá-los para extrair revelação do SENHOR, provavelmente de uma maneira binária simples: sim ou não (Nm 27.21). Quando o rei Saul, em desespero, procurou uma revelação do Senhor, "este [Senhor] não lhe respondeu nem por sonhos nem por Urim nem por profetas" (1Sm 28.6). Ou seja, ele não teve uma palavra particular de Deus nem pôde conseguir uma por intermédio de sacerdotes nem de profetas.
O lançar da sorte — incluindo o Urim e Tumim — fornecia revelação infalível quando administrado de forma adequada, mas essa revelação, antes, era obviamente ad hoc e muito ligada a situações especiais e limitadas. Apenas a palavra mediada por intermédio de profetas e, no fim, escrita e canonizada forneceu primeiro para Israel e, depois, para a igreja revelação divina relevante clara e eterna.
Fonte: Eugene Merrill – Teologia do Antigo Testamento.
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