Agência de curas divinas
A
cura divina como tal, isto é, como objetivo único de um grupo ou de um
líder carismático, não constitui Igreja, mas “movimento”.
Os
líderes carismáticos de cura divina estabelecem balcões de oferta de
bens de religião a uma clientela flutuante e descompromissada na qual a
relação do fiel com o sagrado ocorre na base do “dar para receber”. A
prática dos grupos de cura divina avizinha-se das práticas de magia, e
como afirmou E.Durkheim, não há Igreja mágica. Embora alguns
desses grupos mantenham seu discurso nos parâmetros da fé cristã, sua
prática às vezes se afasta dela, enquanto outros apresentam discurso e
prática quase irreconhecíveis do ponto de vista do cristianismo
ortodoxo.
A maior agência brasileira de cura divina é a Igreja Pentecostal “Deus é Amor”, de David Miranda,
que tem numerosas similares em grandes ou pequenas salas espalhadas nas
áreas deterioradas ou nas periferias pobres dos grandes centros
urbanos. Seu público é a massa desesperada em busca dos bens mínimos de
sobrevivência como saúde e emprego. É a religião da aflição, em palavras
de Peter Fry. Atrai gente de muitas religiões e não exige das
pessoas nenhum compromisso a não ser a contraparte das graças recebidas.
Na cura divina o milagre é fim, e não percurso, como nas Igrejas
pentecostais.
Diariamente
afluem para a sede da “Igreja Pentecostal Deus é Amor”, um megatemplo
construído no bairro do Glicério na cidade de São Paulo – Milhares de
pessoas que participam dos cultos de cura divina. “Deus é Amor” já se
faz presente em muitos estados da Federação.
Apesar
do nome Igreja, entretanto, “Deus é Amor” ainda é apenas um movimento.
Sua população é flutuante, e a relação fiel/liderança/sagrado ainda é
contratual e descompromissada. É impossível falar em número de membros. O
movimento atrai as massas trabalhadoras periféricas e pobres por causa
da ênfase na cura no seu sentido mais amplo, isto é, saúde, emprego e
problemas existências.
Sem
entrar em valores religiosos, o pentecostalismo e o movimento de cura
divina exercem papel social importante, promovendo a catarse dos
conflitos do cotidiano que desabam sobre a classe trabalhadora pobre e
periférica dos grandes centros urbanos e das áreas camponesas de
trabalhadores assalariados.
Organizações paraeclesiásticas
Para o historiador K.S. Latourette,
o período entre 1815 e 1914 constitui o “grande século” do
cristianismo. Pelo menos para o protestantismo, o século XIX foi o
período de formação de sua teologia e de sua grande difusão, no caminho
aberto pela expansão dos impérios coloniais anglo-saxões. Mas ao mesmo
tempo em que no interior dos grandes avivamentos formava-se a teologia
prática do conversionismo, motor das missões protestantes, nos
subterrâneos do Iluminismo gestava-se a teologia liberal que iria, no
século XX, minar as próprias bases das missões. Acresça-se, ainda, que
Igrejas e missões se fundamentaram no postulados do século XIX de que o
cristianismo, no caso entendido como protestantismo, era a religião mais
avançada do mundo e, como tal, representava também a civilização mais
desenvolvida. Hoje o cenário mudou. Religiões e nações não-cristãs
revitalizaram-se e puseram em xeque essa convicção.
Há
duas causas, portanto, para os recuos, perdas e crises do
protestantismo missionário de 1914 para cá: a teologia liberal e a
revitalização das nações não-cristãs. Carl Joseph Hahn entende
que teólogos do século XIX, ao tentarem tornar o cristianismo aceitável à
geração da “idade da razão”, fizeram concessões em demasia e tiraram da
fé cristã o que é essencial ao trabalho missionário. Desde I.Kant, passando por F. Schleiermacher, G.F. Hegel, D. Strauss e B. Baur, até J. Wellhausen,
a fé cristã foi sendo reduzida a uma questão de consciência, e não de
revelação. Além disso, a historicidade de Jesus foi questionada,
debatida e devassada, culminando com a clássica obra de Albert Schweitzer, de 1906, em que o teólogo e missionário retorna às teses de D. Strauss
em A vida de Jesus, de 1835. A teologia liberal, cujo principal
componente foi a crítica histórica, minou dois grandes pilares das
missões protestantes: a inspiração da Bíblia e a cristologia.
No
primeiro caso, transformou a Bíblia num livro condicionado pela
história. No segundo, pôs em dúvida a historicidade de Jesus e, desse
modo, seu papel de Salvador absoluto. A questão da revitalização de
nações não-cristãs como Japão, China, países árabes e africanos pôs em
dúvida a superioridade do cristianismo em relação às religiões ditas
“pagãs”.
Os
fatores em questão exigiam, para a retomada da expansão protestante,
ainda vista como garantia dos valores e do status quo das nações
dominantes do capitalismo mundial, uma retomada da teologia
conversionista e a revisão da estratégia missionária.
A
teologia convercionista, componente da tradição missionária, repousa
sobre o princípio de que convertendo-se os indivíduos a sociedade
acabará se convertendo e mudando para melhor. Mas, ao contrário do que
cria o Evangelho Social, a sociedade nunca será inteiramente justa a não
ser no milênio. A mudança de estrutura social está fora de cogitação. A
estrutura ideal é essa que está aí, que precisa apenas ser
aperfeiçoada. O grande responsável pelos males e injustiças é pecado
individual. Daí a ênfase na conversão o duplo papel de, ao mesmo tempo,
reparar as brechas provocadas pela teologia liberal e prosseguir a
ocupação ideológica do status quo.
Mas
o veículo não podia ser mais a velha estrutura das Igrejas, que
revelava certo cansaço e alguma relutância em aceitar missionários
estrangeiros por causa do nacionalismo e do surgimento de liderança
própria.
Neste
cenário é que surgem as organizações paraeclesiásticas, justamente após
a II Guerra Mundial, quando as nações vitoriosas dividem o mundo em
dois blocos ideológicos distintos e quando o bloco ocidental busca
estender sua hegemonia sobre nações subdesenvolvidas, tradicionalmente
em sua periferia. Elas passaram a representar, no fim dos anos de 1950,
uma nova estratégia missionária.
Paraeclesiásticas
são organizações missionárias diferentes das tradicionais. Elas não se
ligam às juntas ou comitês das grandes Igrejas norte-americanas, mas se
organizam independentemente delas com contribuições em dinheiro de
membros das diversas Igrejas que assumem compromissos individuais de
sustentação de missões ou missionários. No entanto, como não estão
ligadas às grandes estruturas eclesiásticas, mas a compromissos
individuais teoricamente precários, são chamadas “missões de fé”.
As
paraeclesiásticas agem em três diferentes níveis: evangelização de
massa, acampamentos para juventude e literatura. A evangelização de
massa, em que organizações paraeclesiásticas como a Visão Mundial
esforçam-se por envolver as denominações em geral em campanhas
evangelísticas de grande amplitude, inspira-se no “Pacto de Lausanne”, celebrado no Congresso Internacional de Evangelização realizado em Lausanne, Suíça, em 1974. O “Pacto de Lausanne” inspira-se no movimento “evangelical” do século XIX e procura mobilizar as Igrejas para a evangelização mundial.
Em
1983, em Belo Horizonte, a Visão Mundial realizou o Congresso
Brasileiro de Evangelização em que os temas de Lausanne foram retomados e
atualizados em termos de realidade brasileira.
Não
se pode avaliar ainda o movimento quanto ao crescimento das Igrejas.
Sob o ponto de vista da mobilização das Igrejas para o compromisso com a
sociedade brasileira, é de crer que o conteúdo teológico muito
conservador não as leve nessa direção. É possível, ao contrário, que
convercionismo individualista e o messianismo de espera, tradicionais no
protestantismo brasileiro, sejam reforçados e dificultem ainda mais a
aproximação do protestantismo tradicional das realidades sociais do
país.
Os
acampamentos de juventude, cujo protótipo no Brasil é a organização
Palavra da Vida, são estratégia para a conversão de jovens. Partem do
princípio de que todos necessitam de conversão, mesmo os jovens fiéis
das Igrejas tradicionais, que afluem em grande número aos seus retiros
semanais de férias escolares. O resultado, pelo que se pode inferir dos
testemunhos desses jovens que, em equipes, saem pelas Igrejas com o
objetivo de atrair outros jovens, é uma sensível alienação em relação à
família, à Igreja e à sociedade.
Ao
creditar ao acampamento seu novo programa de vida, o jovem, no seu
testemunho e nas suas ações, desqualifica a família, que não “soube
conduzi-lo na religião”, a Igreja, que “não lhe deu o ambiente adequado à
sua conversão”, e a sociedade, cujos valores ele repudia, incluindo a
educação e o trabalho. Os jovens frequentadores de acampamentos tendem a
formar, nas Igrejas, grupos separados, às vezes em clara oposição às
lideranças.
A
literatura religiosa protestante é atualmente muito numerosa no Brasil.
A qualidade das publicações, sob o ponto de vista da apresentação
gráfica, é boa e relativamente barata. Os temas explorados pelas
editoras dessa literatura – Betânia (extinta) e Vida Nova, por exemplo –
são variados. No entanto, obtêm grande sucesso os livros que veiculam
aquilo que em outro estudo chamamos de protestantismo positivo. O
protestantismo positivo é a contrapartida da classe média ao
pentecostalismo e à cura divina e se baseia na crença de que problemas
existenciais e de saúde podem ser resolvidos mediante um programa
devocional bem elaborado e seguido à risca.
Histórias
reais de pessoas, em geral de outros países, que resolveram seus
problemas seguindo este ou aquele método devocional encorajam os
leitores a fazer o mesmo. O resultado é o fortalecimento de uma
religiosidade individualista e solitária, tendente a enfraquecer o
sentido de vida religiosa comunitária.
Em
suma, as organizações paraeclesiásticas, todas de origem estrangeira,
tendem a enfraquecer as Igrejas pelo menos em dois aspectos: primeiro,
pela paralisação a que induzem pela teologia conservadora que programam
e, segundo, pelo conformismo das Igrejas que acabam delegando às
paraeclesiásticas os projetos que deveriam empreender: a formação de
novas gerações. As paraeclesiásticas correm em pista própria e apagam o
brilho das Igrejas tradicionais.
Considerações Finais
No
cenário protestante brasileiro atual, composto de mais ou menos de 25
milhões de evangélicos – somados tradicionais e pentecostais, a balança
pende negativamente para os protestantes tradicionais.
Esses
talvez cheguem a somar 5 milhões, ficando o restante com as igrejas
pentecostais. Em 1990, estimava-se que os pentecostais atingiriam 30
milhões até o final daquele século, porém não se contava com a “explosão
neopentecostal”.
Alguns
fatores considerados neste estudo, podem contribuir para uma nova
explosão dos pentecostais frente a uma retração das Igrejas protestantes
tradicionais.
As
Igrejas tradicionais de origem missionária não conseguiram inserir-se
na sociedade brasileira, mesmo depois de algumas terem se afastado das
missões estrangeiras. Atualmente as paraeclesiásticas estão contribuindo
para reforçar e prolongar o distanciamento dos membros dessas Igrejas
em relação ao mundo circundante por meio de conceito de salvação
individual e do messianismo de espera. Sendo Igrejas de classe média e
propensa à manutenção do discurso lógico-teológico e intelectualizado,
não atraem a massa de assalariados pobres, cada vez maior. Adicione-se a
isso outro fator: o isolacionismo das comunidades protestantes
tradicionais, que se assemelham a clubes fechados em que se entra
mediante convite especial. Há um bom número de templos que mais se
assemelham a capelas particulares, quase escondidos em fundos de
terrenos arborizados, em ruas secundárias, às vezes sem saída, ou
perdidas em meio a salões e salas de reuniões.
O
elemento simbólico, importante em todas as religiões, foi praticamente
perdido pelas Igrejas tradicionais de origem missionária.
__________________
MENDONÇA, A.G. e VESLASQUES Filho, P. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo. Edições Loyola, 1990, p. 55-59.
Sobre o autor: Rev. Rogério da Silva Cardoso é Pastor na Igreja Presbiteriana de Parque Terra Nova II - São Bernardo do Campo - SP. É formado em Teologia pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Durante sete anos foi missionário no Acre; É professor no Instituto Bíblico Ashbel Green Simonton.
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