quinta-feira, 12 de julho de 2018

A natureza das ideias segundo Nicolas Malebranche

Resumo

O artigo pretende analisar a dificuldade interpretativa encontrada nos textos de Nicolas Malebranche acerca da natureza das ideias. A partir da conjunção de teses afirmadas pelo autor ao longo do desenvolvimento da sua teoria da cognição, a visão em Deus, as ideias não parecem pertencer à nenhuma categoria ontológica reconhecida por Malebranche. Em um primeiro momento, será apresentado de que maneira a teoria das ideias conduzem à afirmação de uma, ao menos, aparente contradição entre a epistemologia e a ontologia sustentada por Malebranche. E, em um segundo momento, de que maneira podemos apresentar alternativas interpretativas que não coloquem em questão a validade da teoria que é proposta pelo autor.

Palavras-chave

Malebranche; Teoria das Ideias; Ontologia.

O homem, Nicolas Malebranche nos adverte desde o início da Recherche de la verité (OCM I, p. 09; PS, p. 37-38),1 é um ser ambivalente. Sua natureza é constituída por duas uniões: uma da alma ou do espírito com Deus; e outra da alma ou do espírito com o corpo.2 Essa caracterização do homem, que Malebranche expressamente invoca de Agostinho,3 não é, contudo, simétrica. A alma do homem não se relaciona da mesma forma com Deus e com o corpo. Enquanto, por um lado, temos as afirmações de que a união com Deus é imediata e muito íntima (eleva o espírito acima de todas as coisas; é a união mais natural e mais essencial ao espírito; é através dela que o homem recebe sua existência, seu conhecimento e sua felicidade); por outro lado, a união com o corpo é aquela que não é absolutamente essencial ao homem; ela abaixa o espírito acima de todas as coisas. Mesmo que esta última apresente o que é preciso para a manutenção do composto em seu estado atual, também se configura como a causa de todos os erros e misérias do homem.

Nota-se, em primeiro lugar, que o emprego da noção ‘união’ é bastante abrangente em Malebranche. Estar unido a  algo pode  significar uma  dependência de  ordem  metafísica,  em que a existência do espírito do homem é parasitária de Deus (da sua união com Deus), conforme as seguintes afirmações de Malebranche: “é por meio dela que ele recebe sua vida”(OCM I, p. 09; PS, p. 38) ou “...mas a relação que ela tem com Deus é tão essencial, que é impossível conceber que Deus possa criar um espírito sem essa relação” (OCM I, p. 10; PS, p. 39).4 Tendo em vista que a felicidade também encontra seu fundamento na união com Deus, podemos dizer que há dependência moral em Deus. Há, também, dependência  de  ordem  causal.  A  tese  do ocasionalismo afirma que, além de Deus, nenhum outro ser possui  o  poder causal  por si,  mas  pode apenas vir a ser uma ocasião para que o poder causal divino se manifeste. Tal teoria causal torna o homem (assim como os outros seres) dependente de  Deus  na  produção  de  qualquer  estado de coisas real no mundo.

Além disso, essa noção pode referir-se a uma dependência epistêmica, como no caso da visão em Deus. Na Recherche,5 Malebranche pretende demonstrar a absoluta dependência do homem em relação a Deus mediante as ideias, para ter cognição e conhecimento dos objetos materiais. Ao aceitarmos a teoria da visão em Deus na Recherche de Malebranche temos, entre outras, a afirmação das seguintes teses: as ideias existem; não são modificações da substância pensante do homem; e são ou existem, de alguma forma, em Deus. Isoladamente, ou, ainda, no contexto da apresentação da doutrina, tais teses não parecem ser problemáticas. Todavia, ao colocarmos em perspectiva certos princípios metafísicos empregados por Malebranche, as dificuldades começam a surgir.6 Em diversas passagens da sua obra, encontramos a defesa do princípio de tudo que é ou é uma substância ou é um modo de uma substância. Na Recherche, ele afirma esse princípio mais de uma vez: “...todo ser é necessariamente ou uma substância ou modo de uma substância. Pois, em última análise, tudo que é pode ser ou concebido por si ou não; não há médio entre proposições contraditórias” (OCM II, p. 425). Ainda, “...tudo que é, exista ou não, e, consequentemente, tudo que é inteligível, se reduz a ser ou modo. Por ser eu entendo aquilo que é absoluto, ou aquilo que pode ser concebido por si e sem relação à coisa alguma. Por modo eu entendo o que é relativo, ou que não pode ser concebido por si” (OCM III, p. 174).

Com este pano de fundo ontológico, Malebranche claramente apresenta a influência que René Descartes exerce em sua metafísica. A descrição dos tipos e graus das entidades do mundo entre substância e modo é desenvolvida nas Meditações Metafísicas e nos Princípios de Filosofia (AT VII, 44; AT IX-II, 46-9).7 As ideias, neste contexto, na medida em que são uma entidade real, como Malebranche pretendeu ter mostrado no argumento para a necessidade das ideias na percepção na abertura da segunda parte do livro III da Recherche (OCM I, p. 413), constituem-se como uma substância ou como modo de uma substância.

A alternativa cartesiana que logo se apresenta, para classificarmos as ideias nessa estrutura, é a afirmação de que as ideias são modos da substância pensante. Porém, essa alternativa não está disponível para Malebranche. A recusa das ideias como modificações de uma substância pensante é uma parte essencial para a demonstração da visão em Deus e constitui uma das maiores parcelas do seu debate com Antoine Arnauld (OCM I, p. 422-436).8 Ora, se as ideias não são modificações da mente e da análise da visão em Deus sabemos que elas existem em Deus, somos levados naturalmente a pensar que Malebranche assume a tese que as ideias são modificações em Deus, modificações de uma mente infinita.

Há um argumento precedente na Recherche que teria uma estrutura similar (Cook, 1998, p. 528). Malebranche, ao investigar a natureza das qualidades sensíveis, reconhece que as sensações, como, por exemplo, cores, sabores, sons etc., possuem propriedades inconsistentes com a natureza das coisas extensas e, portanto, não podem ser modos dessas substâncias. Entretanto, elas não são meras ficções, possuem um grau de realidade. Na medida em que não podem ser concebidas por si e são coerentes com a natureza da substância pensante, Malebranche conclui que elas são modos dessa substância. Todavia, este não é o caso para as ideias. Para Malebranche, elas tampouco podem ser modificações da substância infinita. No Éclaircissement X, Malebranche diz: “...o ser infinito é incapaz de modificações” (OCM III, p. 149). Na sequência, é explicado que modificações requerem alguma imperfeição:

...uma substância que possui modificações é limitada pelas suas modificações. A circularidade de um objeto extenso é uma modificação desse objeto, na medida em que é a extensão de uma certa maneira. Contudo, Deus não é um ser de uma certa maneira, ele é o ser infinito. Assim, Deus não possui modificações. Tampouco é um ser em particular ou um determinado ser. Tal ser possuiria uma essência limitada, mas Deus é o ser sem restrição; em Deus não há negação, limitação e, por conseguinte, não há modificação.

Não podemos, portanto, apelar para o conceito de modo ou modificação de uma substância para resolver a dificuldade em relação ao estatuto das ideias. Dado que Deus é um ser infinitamente perfeito e imutável, ele não possui modificações. Nesse caso, as ideias não podem ser modificações de Deus ou da mente divina. Não sendo modificações nem da mente finita nem da mente infinita o que são as ideias para Malebranche?9 Resta investigarmos se as ideias são substâncias. De fato, Malebranche, no livro III da Recherche (OCM I, p. 414-415; PS, p. 166-168), ao defender que as ideias não são meras ficções, mas entidades efetivamente reais, parece dar elementos para a classificação das ideias como substância. Nessa passagem, Malebranche afirma que as ideias possuem ser, na medida em que possuem propriedades. Somos capazes de discriminar as ideias através de seu conteúdo; por exemplo, a ideia de sol é diferente da ideia de pedra, pois possuem diferentes conteúdos de representação. Tal dessemelhança denota que diferentes ideias possuem diferentes propriedades e, a fortiori, que as ideias têm propriedades.


Ora, o nada não possui propriedades. Então, as ideias não são o puro nada; as ideias são alguma coisa.

Esse argumento, por sua vez, por basear a sua conclusão no fato de as ideias serem tomadas como um sujeito capaz de atribuição de propriedades, pode levar a pensar que as ideias podem ser consideradas sujeitos de atribuição por si, capazes de serem concebidas sem uma concepção ulterior (a não ser Deus). Teríamos, nesse quadro, as ideias como substâncias e os conteúdos representativos como modos da substância. A ideia de sol seria a ideia existindo de uma maneira e a ideia de pedra a ideia existindo de outra maneira. Essa interpretação, todavia, tem vida curta. Logo após apresentar o argumento para a realidade das ideias, Malebranche nos adverte que tais entidades não são substâncias:

Caso se diga que uma ideia não é uma substância, eu estou de acordo; mas é sempre uma coisa espiritual e, como não é possível fazer um quadrado de um espírito, ainda que um quadrado não seja uma substância, não é possível também formar, de uma substância material, uma ideia espiritual, ainda que uma ideia não seja uma substância (OCM I, p. 424; PS, p. 178).

Na medida em que a visão em Deus implica que as ideias sejam em Deus, possuímos outra razão para afirmarmos que as ideias não são substâncias. Em seu artigo, Cook (1998, p. 529) faz referência a uma carta de Malebranche em que este afirma que Deus não contém em si substâncias diferentes dele mesmo e que tudo que está em Deus o é inteiramente. Disso, notamos que Malebranche não poderia coerentemente afirmar que as ideias são substâncias. Ideias estão em Deus, e coisas que estão em Deus não podem ser substâncias diferentes de Deus. Em outra passagem, dessa vez direcionada a Arnauld, Malebranche sustenta que a sua teoria das ideias não o aproxima de Platão, ou seja, uma teoria que defenderia o caráter substancial das ideias. Malebranche diz: “A percepção que Deus possui da matéria, por exemplo, a ideia da matéria, não é tomada como um ser representativo externo ao ser de Deus, ou distinto de sua essência...” (OCM IX, p. 952).

Diante da dificuldade em estabelecer o estatuto ontológico das ideias em Malebranche, alguns comentadores atestam que ele sustenta quatro teses que se contradizem (Connell, 1967, p. 342; Radner, 1978, p. 05; Watson, 1991, p. 22-34; Jolley, 1990, p. 78-80). De um lado, a adoção cartesiana da dualidade metafísica, tudo aquilo que é ou é substância ou é modo de substância. De outro lado, temos, como acabamos de ver, a recusa de que ideias sejam modificações ou substâncias. Ademais, ideias são objetos reais, não ficções. Assim, os resultados da investigação epistêmica proposta por Malebranche conduzem à uma tensão com seus princípios ontológicos: Tudo aquilo que existe é substância ou modo; ideias existem, mas não são substâncias ou modos. Qual é, portanto, a natureza das ideias para Malebranche? É possível conceber uma teoria consistente do estatuo ontológico das ideias? A saída apresentada na literatura secundária trata de circunscrever o princípio de que todo ser é substância ou modificação apenas para as criaturas criadas. Isso, por sua vez, permitiria que as ideias, na medida em que não são criaturas, não devessem ser compreendidas em termos de substância ou modificação.

Todavia, tal sugestão não parece ser pertinente. A forma como Malebranche apresenta esse princípio metafísico não parece abrir espaço para rejeição ou restrição. A distinção entre substância e modo é feita a partir daquilo que a mente humana pode conceber, sendo substância definida como aquilo que se pode conceber por si e modificação, aquilo que se pode conceber como inerente a outra coisa. Nesse sentido, tudo, seja criado ou incriado, deve ser concebido como substância ou como modo. Uma passagem dos Entretiens sur la Métaphysique elucida esse ponto:

Tudo que existe pode ou ser concebido por si ou não. Não há intermediário, pois as duas proposições se contradizem. Agora, tudo que pode ser concebido por si e sem se pensar em outro ser – eu digo, pode ser concebido por si como existindo independentemente de outra coisa ou pode ser concebido sem a ideia que representa essa outra coisa – isto é certamente uma substância; e qualquer ser que não possa ser concebido por si ou sem se pensar em outra coisa, tal ser é uma maneira de ser, ou a modificação de uma substância (OCM XIII, Entretien 27).

Como aponta a passagem, Malebranche sustenta a distinção a partir de uma verdade lógica. Com isso, a tentativa de rejeitar ou restringir tal princípio não é condizente com o texto de Malebranche. Entretanto, não parece ser razoável atribuir tal contradição a Malebranche. A inconsistência em questão é bastante evidente e é estabelecida por teses de um mesmo contexto argumentativo, isto é, elas estão claramente relacionadas e são apresentadas na demonstração da visão em Deus. Assim, se é pretendido considerar o sistema filosófico de Malebranche e, em particular a visão em Deus, como digna de uma investigação, tal contradição precisa, ao menos nos termos em que é apresentada, ser revisada.

Mas o que Malebranche afirma positivamente sobre o estatuto ontológico das ideias? Até aqui, vimos passagens em que ele nega que as ideias sejam substâncias ou modificações de substâncias. Positivamente, é introduzida a tese, ainda obscura, de que elas são entidades em Deus. De fato, a afirmação de que as ideias são entidades em Deus sugere que haja uma distinção entre as ideias que estão em Deus e a essência de Deus em si, o que coloca a teoria das ideias de Malebranche em uma difícil situação. Porém, há outras inúmeras passagens que apresentam as ideias sendo em Deus, e não que as ideias estão em Deus. Nesse caso, em vez de tomarmos as ideias como substâncias em si, as tomaríamos como uma substância, ou constituintes, ainda que não como partes, de uma única substância. De que forma devemos compreender as ideias como sendo Deus ou como a sua essência? A esse respeito, Malebranche afirma: “As ideias que Deus possui das criaturas são, como diz São Tomás, apenas a sua essência, na medida em que pode ser participada ou imperfeitamente imitada, pois Deus contém toda perfeição do domínio das criaturas de uma forma divina e infinita” (OCM III, p. 149); ou, em outro lugar, “ideias são a própria substância de Deus, não de acordo com o seu ser absoluto, mas na medida em que é representativo às criaturas e participável por elas” (OCM IX, p. 1002; OCM IX, p. 1069). Tais afirmações, por sua vez, conduzem à adoção da tese de que as ideias são a substância de Deus (Cook, 1998, p. 532). Contudo, a qualificação de que as ideias são a substância de Deus, apenas na forma em que as criaturas podem participar da sua substância, reapresenta a posição de as ideias parecerem algo em Deus ou um aspecto de Deus. As ideias seriam uma parte ou aspecto de Deus que se relaciona com as criaturas, enquanto a essência ou substância de Deus propriamente dita não possui tal relação.

A chave para a compreensão dessas passagens está na compreensão da utilização que Malebranche empresta à expressão ‘enquanto’. Isto é, a utilização dela introduz uma distinção entre partes ou modos de uma substância ou apenas uma forma de considerar tal substância? Ou, devemos considerar, ainda, a diferença entre a substância de Deus em si e a substância de Deus considerada de uma certa maneira como uma diferença de objetos ou como uma diferença de consideração de um mesmo objeto?

De acordo com Malebranche, Deus é o ser infinitamente perfeito. Como tal, Deus contém todas as perfeições, toda a realidade de todos os seres criados e possíveis. Além disso, Deus contém tais perfeições sem nenhuma limitação, ao passo que limitação é uma característica necessariamente presente nas criaturas. Disso, contudo, não se segue que Deus seja, para Malebranche, em um sentido estrito, material ou espiritual ou que a sua realidade seja identificável com a das criaturas. Malebranche afirma que Deus possui eminentemente a realidade de todas as criaturas. ‘Eminentemente’, em Malebranche, não significa que Deus contenha a natureza idêntica das criaturas, mas que contém em si naturezas que são capazes de produzir as criaturas. Assim, possui a natureza das criaturas em uma forma  superior.  E, como indica explicitamente em cartas, tal característica, isto é, a posse eminente da natureza  das  criaturas, permite a Malebranche afirmar que as ideias constituem a substância de Deus: “A substância de Deus contém divinamente tudo que há  de realidade ou perfeição  nos seres, criados  ou possíveis, e desta forma... contém todas as ideias deles” (OCM IX, p. 933). E “...é apenas a natureza divina, na medida em que contém eminente ou divinamente toda realidade e perfeição      da extensão que é representativa da extensão” (OCM IX, p. 952).

Malebranche pretende defender a tese de que Deus percebe nele mesmo todos os seres por considerar as suas próprias perfeições, a sua própria natureza. Essa natureza, por sua vez, seria responsável pela representação desses seres para Deus. Tal tese é justificada pela aplicação do princípio de intencionalidade, que Malebranche já havia sustentado para cognição humana, à cognição divina (Cook, 1998, p. 534). Todo pensamento ou percepção possui um objeto. Malebranche toma esse objeto necessário a todo ato cognitivo como algo realmente existente. Para ele, perceber o nada não é perceber. Ou seja, se não há algo para ser percebido, não há percepção. Desse princípio, Malebranche parece extrair outra tese: tudo que percebemos possui as propriedades que percebemos. Se o nada não pode ser percebido, afirmar que há uma discrepância entre o conteúdo de percepção e a natureza do objeto percebido implicaria na afirmação da percepção de algo que não é. Todavia, isso não pode ser o caso, pois implica que não há erro cognitivo. Malebranche afirma que o erro ocorrerá na atribuição de uma correlação não examinada entre o conteúdo de percepção e um objeto externo. As ideias, que são os objetos imediatos de percepção, é que precisam conter em si tudo aquilo que nelas percebemos. Esse princípio pode ser verificado pelas seguintes passagens: “Pensamos o espaço ou a extensão como não possuindo limites, então a ideia de espaço ou extensão é infinita” (OCM IX, p. 949); “Nós pensamos em um círculo e nosso pensamento é de uma infinidade de diferentes círculos com diferentes diâmetros, assim a ideia de círculo é infinita” (OCM IX, p. 954); “Pensamos os triângulos em geral, então a ideia de triângulo é geral”(OCM IX, p. 954).

De forma similar, Deus, ao perceber algo, não pode perceber o nada e tudo que ele percebe contém em si as propriedades que são percebidas. Deus, ao perceber a si mesmo, tem cognição de suas diversas perfeições. Essas perfeições lhe apresentam diferentes naturezas. Mas em que sentido a percepção das perfeições divinas é representativa das criaturas? Em uma passagem anterior, vimos que, para Malebranche, as criaturas são feitas à imagem de Deus, ou que elas participam de forma finita e limitada da natureza divina. As criaturas possuem essa característica por conter em si, ainda que de forma limitada e imperfeita, as perfeições divinas que Deus percebe ao perceber a si mesmo. Deus, assim, percebe a natureza das criaturas por perceber as suas próprias perfeições. Se a extensão criada é uma versão limitada e imperfeita de uma perfeição divina, então, afirma Malebranche, essa perfeição pode representar tal criatura, pois ela é a sua versão perfeita e ilimitada. Isso, todavia, não implica, da perspectiva humana, em uma percepção de um não ser, mas em uma percepção parcial. Desse modo, as ideias em Deus são as perfeições divinas no seu aspecto representacional.

Aparentemente dizer que Deus possui diversas ideias e que estas representam diversas criaturas ou diversas propriedades das criaturas implica em afirmar que Deus possui diversas perfeições. A distinção das perfeições divinas, por sua vez, sugere que tomemos como diversas propriedades distintas entre si de Deus. No entanto, assim caracterizadas, estamos perto de admitir multiplicidade na substância divina, o que, dada a sua absoluta simplicidade, leva-nos a uma dificuldade. Para Malebranche, ao atingirmos esse ponto, atingimos os limites de compreensão que pode alcançar o entendimento finito. De maneira incompreensível para nós, Deus, ainda que simples, contém em si uma infinidade de perfeições:

Se me pedirem para explicar claramente como o verbo divino contém corpos de uma forma inteligível, ou como a substância divina, embora perfeitamente simples, pode  ser  representativa das criaturas, ou pode ser participável pelas criaturas, sem ter as imperfeições     e limitações das criaturas, eu devo responder que  esta  é uma  característica  do ser  infinito que parece incompreensível. Eu vou deixar assim – pois há muito tempo eu parei de me preocupar com problemas que estão acima de mim (OCM VI, p. 204).

Apesar da sua simplicidade, estão presentes em Deus, ainda que de forma incompreensível para nós, todas as formas em que as criaturas são produzidas. Anteriormente, levantamos a possibilidade de que afirmar que as ideias estão em Deus sugeria uma distinção entre Deus e as ideias. Essa passagem aponta definitivamente para a posição contrária.10 As ideias estão em Deus, e não há distinção entre estar em Deus e ser Deus. De acordo com a passagem, Deus é, de maneira incompreensível, uma essência simples bem como todas as essências das criaturas. Ele é uma substância que possui diversas ideias. Voltando ao quadro conceitual ontológico que dispomos somos capazes de identificar, após a apresentação da relação entre as ideias e a substância divina, a posição das ideias? De certa forma, na medida em que constituem a natureza de Deus e Deus é uma substância, podemos dizer que as ideias são elementos de uma substância. E são elementos sem ser modificações ou partes integrantes da substância tendo em vista a simplicidade da substância em questão. Malebranche não viola o princípio ontológico em que apenas existem substâncias ou modos porque a existência das ideias está vinculada necessariamente a existência e essência da substância divina, e, assim em um sentido derivado, podemos afirmar que elas são uma substância. Certamente não são substâncias diferentes de Deus ou um ser em si em sentido absoluto, mas são elementos constitutivos da concepção de Deus como um ser em si e por si. Entretanto, é preciso reconhecer que a natureza da substância divina e as substâncias criadas é bastante diferente para Malebranche e, parece inevitável, a conclusão de que a teoria da visão em Deus mesmo que não seja contraditória com os princípios da metafísica cartesiana sugere adoção de uma distinção entre tipos de substância: as substâncias criadas e Deus.

Ainda que Malebranche professe a sua fidelidade a Descartes ao longo de toda Recherche, identificamos nesse texto que seu cartesianismo é parcial. Tal conclusão não é de modo algum original. Diversos comentadores da obra de Malebranche já argumentaram em favor das discrepâncias entre os sistemas dos dois filósofos (Guerolt, 1955; Alquié, 1974; Jolley, 1990). Notamos, particularmente, que a tese da visão em Deus, entre outras coisas, sustenta que as ideias, como entidades representacionais dos objetos externos, não são modificações da substância pensante, constituindo-se como uma posição anticartesiana, parte, em momentos fundamentais da sua demonstração, de princípios cartesianos. Portanto, o anticartesianismo de Malebranche é conduzido, de alguma forma, por posições essencialmente cartesianas. Ainda que adepto de princípios da metafísica cartesiana e do método vinculados à explicação da natureza da alma e da constituição de uma ciência das coisas materiais, Malebranche possui uma agenda filosófica própria. Ele pretende, mediante as suas obras, o estabelecimento de uma verdadeira filosofia cristã. Tal filosofia, aos seus olhos, necessita de uma retomada de Agostinho e de um abandono de uma escolástica aristotélica. Nesse contexto, Descartes surge tanto como uma autoridade como um instrumento argumentativo para o ataque a posições escolásticas. Porém, mesmo que a sua filosofia seja abundante em méritos, não é isenta de correções. A visão em Deus consiste, sob forte inspiração agostiniana, na correção de Descartes no que diz respeito a maneira de compreender a cognição humana.



NOTAS:

1 As referências aos textos de Malebranche seguirão a edição crítica Oeuvres Complètes de Malebranche (OCM) com o número do volume em algarismos romanos e o número da página em algarismos arábicos. Na ocasião das passagens citadas estarem presentes na tradução para português publicada por Plínio Smith, ao lado da referência à edição crítica, estará a paginação dessa edição na segunite forma: PS e o número da página em algarismos arábicos.

2 Os termos ‘alma’ e ‘espírito’ serão usados intercambiavelmente. Enquanto o texto francês traz a palavra ‘esprit’, o que sugere a adoção da segunda alternativa, a versão inglesa e os comentários de origem anglo-saxônica empregam ‘soul’ o que é mais condizente com a primeira alternativa. Por vezes, em contextos cognitivos, poderá ser empregado o termo ‘mente’ também no que cabe a esta última.

3 Cf. Tratado Sobre São João; XXIII, 6 (BA LXXII, 368). Da Imortalidade da Alma; XIII, 22 (BA V, 210). As referências das obras de Santo Agostinho seguem a edição crítica Bibliotheque Augustinenne, Oervres de Saint Augustin (BA) com o número do volume em algarismos romanos e o número da página em algarismos arábicos.

4 Embora não se configure como um objetivo desta dissertação, cabe notar a limitação imposta por Malebranche a Deus nesse caso. Fica como sugestão para uma futura investigação em que sentido ‘não pode’ está sendo atribuído a um criador onipotente.

5 Por brevidade, a partir de agora apenas Recherche.

6 Steven Nadler (1992), Nicholas Jolley (1990), Monte Cook (1998), Richard Watson (1994) e Donald Cress (1971) apresentam diferentes versões dessa dificuldade em compreender a natureza das ideias em Malebranche.

7 As referências às obras de Descartes serão feitas segundo a edição de Charles Adam e Paul Tannery (Vrin-CNRS, 11 volumes, 1974), designada pelo (AT), seguida do volume em algarismos romanos e das páginas em algarismos arábicos.

8 O debate entre Malebranche e Arnauld sobre a natureza das ideias e o seu papel na cognição humana se extende por diversos anos e compreende uma variedade de textos. Se inicia com a publicação de Des vraies et fausses idées de Arnauld (1986) que é dedicada a demonstrar os erros e falácias da teoria malebranchista. A partir disso os autores trocaram diversas cartas sobre o tema e debate repercute no desenvolvimento dos projetos filosóficos dos dois autores bem como influencia o desenvolvimento de teorias da cognição em outros autores do século XVII e XVIII. Denis Moreau (1999) procura reconstruir esse debate detalhadamente.

9 Existiria ainda a hipótese de as ideias serem modificações da extensão. Contudo, na abertura da discussão acerca da natureza da cognição no livro III da Recherche, Malebranche apresenta um argumento que veio a ser conhecido como argumento da “alma caminhante” onde afirma a necessidade das ideias na percepção e que elas não podem ser identificadas com os objetos materiais. Assim, fica de antemão descartada a alternativa de interpretarmos as ideias como modificações da extensão.

10 Cook (1998, p. 539) também pensa assim.



Referências

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ALQUIÉ, Ferdinand. Le cartésianisme de Malebranche. Paris: J. Vrin, 1974. ARNAULD, Antoine. Des vraies et des fausses idées. Paris: Fayard, 1986. ARNAULD, Antoine. Oeuvres d’Arnauld. Lausanne: Édition de Lausanne, 1784.

BROWN, Stuart. Nicolas Malebranche: his philosophical critics and successors. Assen: Van Gorcum, 1991.

CONNELL, Desmond. The vision in God: Malebranche’s scholastic sources. Louvain: Nauwelaerts, 1967.

COOK, Monte. The ontological status of malebranchean ideas. Journal of History of Philosophy, v. 36, n. 4, p. 525-44, 1998.

CRESS, Donald. The immediate object of consciousness in Malebranche. Modern Schoolman, v. 48, n. 4, p. 359-369, 1971.

DESCARTES, René. Oeuvres de Descartes. Paris: J. Vrin, 1964-74. GUEROULT, Martial. Malebranche. 3 vols. Paris: Aubier, 1955.

JOLLEY, Nicholas. The light of the soul: theories of ideas in Leibniz, Malebranche, and Descartes. Oxford: Clarendon Press, 1990.

MALEBRANCHE, Nicolas. A busca da verdade. Tradução de Plínio J. Smith. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2004.

MALEBRANCHE, Nicolas. De La Recherche de La Verité. Paris: J. Vrin, 2006. MALEBRANCHE, Nicolas. Oeuvres Complètes de Malebranche. Paris: J. Vrin, 1958-70. MOREAU, Denis. Deux Cartésiens: la polémique Arnauld Malebranche. Paris: J. Vrin, 1999. NADLER, Steven. Malebranche and ideas. Oxford: Oxford University Press, 1992.

RADNER, Daisie. Malebranche: a study of a cartesian system. Assen: Van Gorcum, 1978.

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WATSON, Richard. Malebranche and Arnauld on ideas. Modern Schoolman, v. 71, n. 4, p. 259- 270, 1994.




Pedro Falcão Pricladnitzky Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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