segunda-feira, 16 de julho de 2018

Pressupostos e Método Teológico (3/3)– Carl Henry



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Com certeza, muitas escolas de pensamento não bíblicas opõem-se com vigor à ideia cristã de Deus e do mundo. A história da filosofia oferece muitos princípios primordiais rivais — dos átomos democríticos às mônadas leibnizianas e o Absoluto Hegeliano, da evolução terrestre darwiniana por meio da mutação lenta, gradual, quase imperceptível, aos genes primitivos de Hoyle que emergem de uma sopa estelar e montam nas caudas dos cometas para invadirem nosso cosmo. De modo semelhante, a história das religiões oferece muitas alternativas globais, do Brama mundo-alma impessoal do hinduísmo ao fundamentalismo xiita iraniano, dos princípios Soka Gakkai no Japão ao êxtase (enthusiasm) da Nova Era nos EUA, e muito mais.

Muitas dessas opções de fé sequer se interessam pela verdade objetiva e eterna. Não é verdade que todas as religiões ou filosofias exerçam de fato a pretensão de verdade universal. Os que apelam apenas à decisão subjetiva ou consideram a verdade culturalmente relativa, ou os que em sentido místico transcendem a distinção entre verdade e falsidade, não podem mesmo, com legitimidade, fazer alegações de verdade.

A inconsistência lógica embaraça as alegações de qualquer sistema especulativo, e o faz do modo mais destrutivo quando os princípios básicos parecem instáveis.

Os positivistas lógicos postulam que apenas premissas verificáveis pelos dados sensoriais podem ser significativas ou verdadeiras. Neste caso, porém, a própria premissa — em si mesma não verificável empiricamente — não pode ser julgada significativa ou verdadeira.

Os proponentes da “teologia da revolução” olham para o êxodo hebreu da opressão egípcia como paradigma e legitimação bíblica da utilização de violência para promover a transformação social. No entanto, já que os proponentes da revolução abraçam opiniões críticas da Escritura, com que base podem eles, de forma peremptória, invocar o registro do Êxodo?

E mais, os hebreus nunca subverteram o governo egípcio; a força deles não jazia na violência, mas na obediência espiritual a Yahweh. Embora seja corrente nos círculos interconfessionais ecumênicos o conceito de que a revelação é encontrada em todas as religiões, o fato é que a doutrina da revelação divina racional é muito incomum entre as religiões e as filosofias do mundo, muito mais incomum que os eruditos da Religionsgeschichte nos querem fazer crer.

É digno de nota que entre todas as grandes religiões mundiais, apenas o judaísmo, o cristianismo e o islã assegurem “o Deus que fala”; além disso, até onde o islã o assevere, sua dependência da herança prévia judaico-cristã, bíblica, é indiscutível. Não pode haver escolha decisiva entre opções se negamos qualquer referente externo para julgar as afirmações de verdade. A questão crucial não é se um estudioso deve iniciar com a fé; antes, a questão crítica é se essa fé se trata de uma crença não racional. A razão e as evidências públicas são em absoluto relevantes às alegações de verdades teológicas e, no caso afirmativo, qual é exatamente o papel das duas?

Ao apelar à revelação transcendental como axioma epistêmico básico, o cristianismo lança sua vindicação de verdade de maneira abrangente sobre todas as áreas da vida humana. O fato de o cristianismo postular princípios primordiais e afirmar crenças nucleares fixas não exclui a propriedade dos testes racionais. Nem a adequabilidade do teste racional implica que o cristianismo deva ser reputado apenas como hipótese.

Um teste externo eficaz de validade universal e de verdade é a consistência lógica. A inconsistência lógica sacrifica a plausibilidade; um sistema logicamente inconsistente não pode ser válido ou verdadeiro. A consistência lógica não pode comprovar de forma decisiva a verdade das alegações intelectuais; entretanto, é um potente teste negativo.

A autorrevelação de Deus é desvelamento inteligível; a revelação divina é uma atividade mental. O Deus que fala — que torna sua natureza e vontade conhecidas por meio de enunciados proposicionais inteligíveis — articula de maneira verbal a verdade. A consistência é uma perfeição divina. Ao convencer os seres humanos de sua pecaminosidade, o Espírito Santo usa a verdade como meio de persuasão.

Por fim, a humanidade regenerada será plenamente conformada à mente e santidade de Cristo. Portanto, a ortodoxia evangélica não tem motivo algum para evitar a lógica; tem ela toda a razão para de forma aberta exibir premissas que se derivem com consistência de seus axiomas básicos — a saber, a criação divina do mundo e dos seres humanos à imagem de Deus; o domínio da humanidade sobre o cosmo, bem como a mordomia desse; a queda de Adão e de sua posteridade na revolta moral; a oferta divina de redenção a pecadores penitentes; o pacto de Yahweh com Israel e o exílio punitivo dos hebreus; o misericordioso dom da salvação mediante Jesus Cristo, que, como o crucificado-ressurreto, encabeça uma nova sociedade regenerada; a missão global de evangelismo e a promoção da justiça social por parte da igreja; o iminente retorno de Cristo para julgar a humanidade e as nações; a vindicação de retidão e a completa derrota do mal; e o destino dual da humanidade baseado na reação espiritual e moral do indivíduo.

Uma rotineira queixa evidencialista contra os pressuposicionalistas é a de que eles estão trancados em suas admissões de hipótese, ao passo que os evidencialistas estão preocupados com evidência externa. Contudo, essa reclamação é tão falaciosa quanto a insistência evidencialista de que os evidencialistas estão livres de suposições. De modo algum todos os pressuposicionalistas consideram as evidências irrelevantes às asserções da fé, nem todos os pressuposicionalistas reputam a fé hostil à razão.

Os pressuposicionalistas insistem que a evidência objetiva relevante existe externamente aos axiomas cristãos básicos e suas implicações. Tal evidência com certeza não se baseia em dados empíricos da espécie em que os evidencialistas confiam na tentativa de demonstrar a existência de Deus a partir do não Deus.

Antes, a evidência decisiva é inspirada na Escritura; a Bíblia é o princípio verificador acreditado da teologia cristã. Por meio da observação sensorial é impossível provar que Deus criou o universo ex nihilo; que todos os seres humanos portam a imagem divina; que toda a humanidade é culpada em Adão; que Jesus nasceu de uma virgem e viveu sem pecado nos dias de sua carne; que ele morreu pelos pecados da humanidade; que após a crucificação ele ressurgiu corporalmente, para nunca mais morrer — as primícias da ressurreição geral vindoura; e que os seres humanos estão destinados à vida futura que envolve um impressionante destino dual na eternidade. Tais doutrinas não são empiricamente dedutíveis; elas são corroboradas pelo ensino escriturístico inspirado.

A mais notável confiança em fatores empíricos por parte dos teólogos de mentalidade evidencialista jaz na promoção de “provas” — alguns prefeririam dizer com mais modéstia “evidências” — da existência de Deus. Malgrado tais argumentos partilharem muita coisa em comum com a chamada prova quíntupla de Tomás de Aquino, os círculos protestantes habitualmente as identificam como os argumentos cosmológico, teleológico e antropológico.

Essas formulações começam com o universo — ou seja, o cosmo e o homem — e prosseguem de forma indutiva até Deus como a causa pessoal, inteligível e moral de toda a existência finita. Inversamente a Tomás, mesmo os evangélicos de maior orientação empírica anuem ao fato de que as “provas” não são demonstráveis pela lógica; antes, defendem que as “evidências” indicam a alta probabilidade da existência de Deus, uma probabilidade tão irresistível que torna a incredulidade da humanidade imoral.

Não repetirei aqui as críticas a essa tese, já detalhadas em God, Revelation and Authority [Deus, revelação e autoridade], volume I.[34] O esforço evidencialista é uma variante da teologia natural. Mas, se as provas são conclusivamente demonstrativas, elas conduzem a uma realidade divina que é inferior a ou mesmo outra que não o Deus da Bíblia. Não se pode elaborar um argumento decisivo em prol da infinita deidade apenas por extensão do não Deus; por principiar com a existência finita e prestar estrita atenção a procedimentos lógicos chegar-se-á ao infinito só por meio de um salto de fé não racional.

Assim, por mais que o evidencialismo invista suas provas da aura de razão, inconscientemente cai sob o mesmo juízo que ele gratuitamente emite sobre o pressuposicionalismo — a saber, o de promover a fé sem a razão.

Como o tomismo, o evidencialismo introduz a revelação divina na discussão tarde demais para ser aproveitável. Isso não é descartar a ordem cósmica e a razão e consciência humanas como de nenhum significado para o teísmo; a ênfase sobre o design, bem como sobre a racionalidade e a moralidade, podem ter utilidade bem outra do que demonstrar a existência de Deus. Pior ainda, muitos empiristas evangélicos agora confundem a revelação geral com a teologia natural. Eles direcionam textos que trazem a revelação universal de Deus na natureza, na história e na consciência para apoiar a tese bastante contestável de que, a despeito da queda, sobrevive em toda a humanidade um conjunto compartilhado de doutrinas teológicas e moral.

Essa teoria não só disfarça as divergências cognitivas, mas pressupõe da mesma forma uma ideia por demais otimista da condição da humanidade depois da queda. Que o Deus vivo continua a se revelar em todo o universo na natureza e na história, na e à mente e consciência do homem, não se debate aqui. Nem se põe em dúvida a lucidez da revelação universal, tampouco sua potência em verdadeiramente, em todos os lugares, penetrar a razão e a consciência humanas. Não devemos culpar a revelação divina universal como defeituosa em sentido epistêmico. Não há na revelação divina nenhuma necessidade inerente dessa distorção epistêmica.

Antes, a falta se localiza na humanidade. A frustração da revelação divina geral se deve à obstinada e instável volição humana. Na própria recepção da revelação de Deus, os seres humanos caídos e rebeldes querem “deitar por terra” e suprimir a revelação; eles a distorcem, pervertem e afinam ao que é mais compatível e agradável à vontade alienada. Essa reação intelectual revoltosa é atestada entre os intelectuais pela multiforme história da filosofia e, ainda de modo mais genérico, pelas múltiplas religiões mundiais e suas muitas crenças particulares.
Todavia, por meio da imago Dei, dada na criação, todo ser humano recebe o conhecimento inerradicável da existência de Deus, de outros egos e do mundo interior também. Para início de conversa, todo ego humano sabe ser genuína e inescapável a distinção entre Deus e o não Deus, a distinção entre o bem e o mal, e a distinção entre a verdade e a falsidade. Além disso, todo ser humano está a par de que conhecer a verdade e o bem coloca alguém em contato com a humanidade.

No entanto, não só os seres humanos todos compartilham sim esses aspectos formais da imago, mas também conhecem instintiva e intuitivamente que Deus sem dúvida existe, que o mundo existe de fato, e que na verdade existem outros egos.

O teísta cristão não carece de argumentos indutivos para saber que Deus existe, ou que ele mesmo existe, ou que o cosmo e outros egos existem. Ademais, no pensamento e na consciência, todo ser humano mantém-se de forma inevitável e perpétua nos relacionamentos divino-humanos que carregam alguma consciência da natureza de Deus e da bondade e verdade essenciais. A imago Dei não apenas possui conteúdo formal; ela igualmente possui conteúdo material. Ninguém se encontra de todo sem luz, e todo ego humano é culpável de revolta contra a luz. Dada a rebelião volicional do ego humano, a luz da revelação geral pode sobreviver em distintos contextos e em diferentes padrões e intensidades, dependendo do grau e da profundidade da animosidade humana.

Entretanto, a revelação tem uma presença inextinguível, uma presença que torna a espécie humana culpável de revolta contra a deidade em sentido moral e espiritual. Por causa das relações espirituais flutuantes e fugazes da humanidade caída, a busca da certeza não é promissora. Alguém está duplamente mal-orientado quando se volta às considerações empíricas e experimentais como o fundamento da fé ou como prova demonstrável. Quase todas as preocupações humanas do cotidiano estão classificadas no domínio das probabilidades; a probabilidade é a regra da vida.

Mesmo nosso sistema legal no julgamento dos criminosos fia-se em evidências circunstanciais. Não obstante, temos sede de mais do que a mera probabilidade respeitante ao destino humano. A teologia cristã satisfaz a demanda por certeza com o lembrete de que a certeza não tem conexão necessária com a verdade; ela pode ser mais emocional ou volitiva que cognitiva. Algumas pessoas têm certeza sobre a data precisa do regresso do Senhor; outras estão certas de que comer toranja alivia enxaqueca, ou de que vinagre cura verrugas.

A fé cristã não oferece certeza matemática ou especulativa, e sim convicção espiritual. A autoridade divina elimina a lacuna racional entre a probabilidade e a certeza. Semelhante segurança está baseada, não em probabilidades empíricas, mas no testemunho sobrenatural do Espírito Santo que aviva a Escritura objetivamente inspirada de forma individual. O Espírito emprega a verdade como instrumento de persuasão, a verdade atestada pela Escritura e que pode ser provada pela consistência lógica.

Portanto, o cristianismo em nada receia a razão pública; ele não é fideísta nem empirista, tampouco racionalista. O cristianismo não tem menos direito de afirmar seus princípios explanatórios definitivos que as outras visões do mundo e da vida. Alguém persuadido com base em outros fundamentos não precisa dos argumentos empíricos nem dos existenciais e especulativos para expor sua argumentação. Sugerir que alguém é irracional caso defenda o teísmo sem primeiro subscrever às demandas do empirismo ou de algum outro “ismo” é dar-se à propaganda em vez de ao exercício lógico.

Enquanto fé alicerçada na revelação e inteligível, o cristianismo parte da prioridade ontológica do Deus vivo e da prioridade epistemológica da revelação divina. Desses postulados básicos ele infere e desenvolve todas as doutrinas nucleares da religião cristã. Entre essas está o dom divino da fé salvadora que atrai o ego inteiro no amor, na adoração e no serviço obediente do Criador e Juiz infinito da humanidade e das nações.

A teologia dedutiva chama a atenção dos incrédulos à consistência lógica como teste negativo da verdade e à verificação das Escrituras. As asserções da teologia dedutiva são inteligíveis a qualquer pessoa que dê atenção à lógica, seja crente ou não.

Contudo, como uma de suas doutrinas, o cristianismo afirma o Espírito de Verdade como a realidade dinâmica pela qual o Deus vivo nutre de modo soberano a fé salvadora na vida do penitente. O cristão pode conservar elevados a cabeça e o coração se, sobre o próprio fundamento — e de maneira bem independente de Platão, Aristóteles, Hume ou Hegel — ele diz com Paulo: “Eu sei em quem tenho crido e estou certo…” (2Tm 1.12).

Extraído: O Resgate da Fé Cristã, Carl Henry, Cap. 2, Ed. Monergismo

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