Por toda a sua longa história, a filosofia sempre reconheceu a legitimidade de, sem prova, admitir a hipótese de um axioma filosófico ou princípio postulatório como base inicial de raciocínio. Demócrito jamais demonstrou que a substância consiste em partículas indivisíveis e imperceptivelmente pequenas; ele postulou a premissa e tentou explicar toda a existência de modo consistente em seus termos. Platão nunca demonstrou a existência independente do mundo invisível das Ideias Eternas; ele arrazoou que a existência inferior nelas participa ou as espelha. Ademais, é provável que ele teria rejeitado como sofista e não merecedor de atenção quem, na ausência de provas empíricas da existência das Ideias Eternas, privasse-o de ser ouvido. Ao tentar explanar o todo da realidade e da vida, a história da filosofia em grande medida gira em torno de princípios explanatórios abrangentes postulados por uma sucessão de filósofos. As teorias seculares que emulam o teísmo cristão são divergentes e instáveis.
Muitas são incoerentes em sentido autorreferencial. Sequer conseguem satisfazer aos padrões ou testes epistêmicos propostos pelos promotores para distinguir a verdade da falsidade; ou seja, nem mesmo podem justificar os próprios princípios básicos pelos critérios especificados. Suas especulações acerca da verdade e sua verificação não devem ser consideradas autorizadas de forma autoevidente; elas apenas gozam de aceitação convencional. Kant, por exemplo, não inferiu suas formas de pensamento transcendentais da teoria epistêmica, que identificava todo o conhecimento como coproduto de conteúdo sensorial e formas apriorísticas.
Pelo fato de as formas apriorísticas não serem perceptíveis aos sentidos, Kant deve tê-las postulado de maneira independente da teoria. Não há como o naturalista filosófico “provar” a verdade declarada de sua cosmovisão cientística senão confiando nas próprias suposições da teoria. A evidência há muito citada — a saber, que a teoria “funciona” — é largamente disputada por quem observa na verdade o desapontamento causado pelo cientificismo, já que não oferece nenhum ponto de vista significativo do futuro, da moralidade ou do propósito.
Por fim, a própria ciência moderna reconhece a importância precedente de modelos teóricos para interpretar dados empíricos. Nesse sentido Frederick Suppe fornece um profícuo panorama de como aconteceram mudanças no pensamento científico moderno recente.[32] De 1920 a 1950 a teoria científica foi dominada em grande escala pelo positivismo lógico e pela análise empírica, que repudiava os anúncios em prol de verdadeira teoria científica; hipóteses científicas eram vistas como aproveitáveis apenas para predizer fenômenos observáveis.
Então, entre 1950 e 1970, quando a teoria científica ainda não fora declarada explanatória e definitiva, apenas histórica e relativa em sentido cultural, as cosmovisões científicas abrangentes emergiram por meio das cosmologias de filósofos da ciência influentes como Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Stephen Toulmin. Foi entre 1970 e 1977, no entanto, na chamada era do “realismo crítico-histórico”, que as alegações científicas tornaram-se mais dogmáticas.
Os cosmólogos falaram com mais confiança sobre entidades transcendentes não observáveis; além disso, alegaram maiores poderes explanatórios, e perseguiram possibilidades de reafirmar a verdadeira teoria científica. Na presente década, entretanto, as perspectivas de cosmovisão mais uma vez se tornam sociológica e historicamente orientadas. A teoria científica agora emprega modelos conjecturais e invoca com generosidade a analogia e a metáfora, embora a possibilidade de falsificação empírica seja admitida e aceita como característica da autêntica ciência empírica.
Ao lado dessas perspectivas científicas mutantes, William A. Rottschaefer monitora um movimento paralelo de pontos de vista religiosos.[33] Ele relaciona a investigação empírica com o realismo crítico, isto é, com a tese de que a experimentação — seja naturalista ou teísta — produz entendimentos cognitivos e crescente poder explanatório.
Concentrando-se na experiência religiosa, ele conclui que a ciência e a religião possuem um caráter epistêmico similar. Essa opinião é desafiada pelos naturalistas científicos de forma contínua; para eles a mutável teoria científica é muitas vezes mais instrumental que objetivamente cognitiva e explanatória. Contudo, dizem os teístas religiosos, seja o que for que possamos deduzir a mais da experiência religiosa, permanece o fato de que os artigos do Credo apostólico não foram destilados da experiência universal.
Além disso, acrescentam que a experiência progressiva e ampliadora não pode acomodar nenhuma finalidade não passível de revisão. Em contraste, os teístas cristãos afirmam que a realidade cristológica é a mesma “ontem, hoje e para sempre”, uma fé “de uma vez por todas confiada” [NVI].
Fundado por Schleiermacher, o modernismo teológico considerava o empirismo científico a via confiável do conhecimento e como consequência depreciava os milagres como não científicos e pré-científicos. Ele ancorava a argumentação a favor de Deus na experiência religiosa universal. Conquanto afirmasse a existência de Deus, um dos resultados foi a desaprovação modernista da finalidade na definição da natureza divina. Substituir a atestação das doutrinas nucleares cristãs por considerações empíricas, como fazem os evidencialistas, traz altos riscos.
Além do que, faz-se uma asserção impossível de cumprir se, na busca pela certeza demonstrável, espera-se de sua metodologia mais que elevada probabilidade. O ponto de vista cristão sobre Deus e o mundo fica bem servido pela metodologia que, quando muito, pode afirmar com 95 por cento de probabilidade que Jesus morreu pelos pecadores ou 90 por cento de probabilidade de que ele ressurgiu corporalmente da tumba? Dissemos que o metafísico especulativo que postule um princípio primordial explanatório bem pode descartar como bastante arbitrária qualquer exigência de que ele primeiro proveja alguma legitimidade empírica externa para seu princípio como o preço a ser pago antecipadamente pelo direito de projetar seu axioma controlador.
Mesmo na ciência do século XX, importantes desenvolvimentos emergiram por meio de projeções criativas quando os eruditos, em vez de extrapolarem seus postulados explanatórios da observação empírica, apenas aplicaram postulados criativos aos dados à mão. Alguns dos progressos mais dramáticos ocorrem quando novas suposições cognitivas destituem teorias há muito entrincheiradas.
É irrelevante para o poder explanatório de um axioma se o seu promotor chegou ou não a ele por observação empírica, conjectura filosófica, meditação religiosa, revelação privada ou mesmo pelo que ele ou ela considera simplesmente um pressentimento. O axioma ontológico primário do cristão é o único Deus vivente, e seu axioma epistemológico primário é a revelação divina. Desses axiomas básicos dependem todas as crenças nucleares do teísmo bíblico, incluindo a criação divina, o pecado e a queda, a promessa e a provisão de redenção, a encarnação de Deus em Jesus de Nazaré, a igreja regenerada como uma nova sociedade e também uma escatologia abrangente.
Todavia, a visão metafísica que professe decifrar toda a realidade e a vida e envolva a vindicação da verdade universal deve aduzir alguma justificação epistemológica caso tenha de evitar ser rejeitada como fideísmo ou fé pura que derroga a razão. A discussão de Agostinho sobre a verdade apoiada pela fé é precedida pela investigação intelectual da verdade; a inquirição racional expõe a necessidade de aceitar certas crenças ou princípios básicos mediante a fé.
Além disso, ele reconhece a necessidade de demonstrar que seus compromissos não são ilógicos. Para Agostinho, a fé é o modo de conhecer da mente. Trata-se de pensar em vista de uma autoridade revelatória divina mais alta reforçada pelo assentimento da vontade.
A fé é a certeza de que, à luz da autoridade mais elevada, sonda e analisa o que é crido e estipula seu conteúdo. Só com atenção cuidadosa para com o papel dos pressupostos o desastre de suspender a verdade cristã em considerações empíricas será evitado. Todo esforço de falar em sentido dogmático a respeito de Deus apenas com base na percepção sensorial ou na experiência humana é vulnerável e malfadado.
Schleiermacher defendia a realidade de Deus baseado no senso do homem de absoluta dependência, mas os críticos com rapidez mostraram que a experiência humana não é um comentário sobre a teologia, mas sim sobre a antropologia.
O método empírico lida com a realidade fenomenal, não com a numenal; ele não pode adjudicar a existência e a natureza do sobrenatural.
Pior ainda, apenas produz conclusões experimentais e revisáveis; ele não pode apresentar um veredicto irreversível sobre coisa alguma. Assentar o argumento pró-cristianismo em um apelo empírico não só não é promissor como metodologia, mas é também de caráter teológico arriscado.
Todavia, o pressuposicionalista evangélico não aceita a caracterização do axioma como arbitrário. O fiel cristão conhece com segurança que seus postulados e crenças controladoras não estão fundados em conjectura, mas ancorados na autoexistência e na autorrevelação do Deus trino. O cristão sabe ser Deus a fonte de toda a verdade; a verdade é o que Deus pensa e diz. O cristianismo nunca ficou desconcertado com a centralidade do Logos na Trindade; o Logos e a sabedoria são intrínsecos à Divindade. O cristão reafirma que seus axiomas são pressupostos fundamentais de todo pensamento e ser; eles são básicos à estrutura noética humana. Todo ser humano deve supor tais axiomas, sustenta ele, a fim de explicar a realidade e a inteligibilidade da existência. Ele insiste que seus princípios explanatórios estão, em última análise, alicerçados na eternidade no Logos de Deus. Destaca ainda que a doutrina cristã da criação oferece uma garantia transcendente da unidade, ordem, inteligibilidade e estabilidade dos processos naturais; provê igualmente uma base para a crença na existência de alguma imbricação racional entre as imagens explanatórias e os objetos da experimentação. Além disso, o cristão conhece que é apenas pela graça divina que ele, com fé, participa das realidades epistêmicas e ônticas declaradas pela herança bíblica.
Entretanto, ele não afirma que a verdade do cristianismo só pode ser conhecida pelos convertidos. Ateus, agnósticos, panteístas ou deístas — se atentos aos dados — podem apreender as doutrinas cristãs essenciais apenas por meio da leitura da Bíblia. A expiação substitutiva e a ressurreição corporal de Jesus, o perdão divino dos pecados e a necessidade que a humanidade tem do novo nascimento para lograr participação no Reino de Deus são afirmações confessionais solenes que mesmo escolares podem compreender. A ortodoxia evangélica não defende que se deva primeiro apropriar-se da verdade bíblica para entendê-la. Fosse esse o caso, a distribuição de Bíblias, o evangelismo e a apologética fariam pouco sentido. Bem ao contrário, a Bíblia avisa do castigo divino que se aproxima por causa da deliberada negligência da verdade da qual os humanos sabem até mesmo no estado não regenerado.
Extraído: O Resgate da Fé Cristã, Carl Henry, Cap. 2, Ed. Monergismo |
segunda-feira, 16 de julho de 2018
Pressupostos e Método Teológico (2/3)– Carl Henry
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