1. Deus prometeu que a descendência de Abraão herdaria a terra (Gn 17.7,8; 22.15-18; Rm 4.13; Gl 3.29).
Mostrou-se no Capítulo 1 que o pacto abraâmico é uma realidade presente na era da nova aliança. Suas promessas pertencem aos cristãos de hoje. Uma delas é a posse da terra de Canaã por Israel e a derrota dos seus inimigos.
Portanto, nós, cristãos da nova aliança, temos direito à terra de Canaã e à derrota dos inimigos de Israel? Sim, mas temos direito a muito mais do que isso (além de responsabilidade), e de forma muito mais abrangente.
Quando Paulo se refere em Romanos 4.13 às promessas da terra e às promessas da benção do pacto abraâmico, ele as estende para incluir não apenas Canaã, mas toda a terra. Abraão e sua descendência devem ser “herdeiro do mundo”. Isso não é bem como o AT estrutura as promessas da terra, ou as promessas de bênçãos. Lá, as promessas a respeito da terra dizem respeito, essencialmente, a Canaã, conhecida como a “terra prometida”; e as promessas de bênçãos declaram apenas que a descendência de Abraão abençoará as nações da terra. Paulo, contudo, interpreta essa promessa de forma mais ampla. Esse é apenas mais um caso em que o NT interpreta (ou reinterpreta) o AT.
Como a nova aliança expande o povo de Deus para incluir uma raça mundial de redimidos, ela também expande as promessas da terra do pacto abraâmico, a fim de incluir a terra inteira. Toda a terra foi prometida ao povo de Deus da nova aliança. John Murray afirma:
A cláusula “de ser herdeiro do mundo” explica a promessa feita a Abraão e à sua descendência; também nos mostra em que consistia a promessa. Nestes termos exatos, não encontramos qualquer promessa no Antigo Testamento. Onde a encontramos? Naturalmente, pensamos na promessa feita a Abraão, de que nele todas as famílias da terra seriam abençoadas (Gn 12.3), bem como nas promessas correlatas outorgadas mais tarde (cf. Gn 13.14-17; 15.4,5,18-21; 17.2-21; 22.15-18). Entretanto, à luz de todo o ensino paulino, não podemos excluir do escopo desta promessa, conforme ela é definida pelo apóstolo, o propósito messiânico mais abrangente. Foi definido, como promessa feita a Abraão, que ele seria herdeiro do mundo, mas isso também é uma promessa feita ao seu descendente e, por isso mesmo, dificilmente pode envolver qualquer outra coisa senão o domínio universal prometido a Cristo e à descendência espiritual de Abraão, em Cristo. Trata-se de uma promessa que tem seu cumprimento final na consumada ordem dos novos céus e nova terra. [26]
É verdade que o “cumprimento final” do pacto abraâmico não ocorrerá até o estado eterno; mas, como Murray sugere, o “domínio universal” começa com Cristo e os cristãos na presente era da nova aliança. As promessas de domínio em Canaã aos judeus da antiga aliança são expandidas no NT para incluir a terra inteira, que não pertence aos judeus étnicos, mas ao verdadeiro Israel, a igreja cristã.
Veremos na seção 3 que a promessa da derrota dos inimigos de Israel (e, portanto, de Deus) é cumprida por Cristo nesta era da nova aliança. O Israel multinacional e global da nova aliança (a igreja cristã) substituiu o Israel étnico da antiga aliança. De modo similar, a comissão do domínio mundial substituiu a comissão do domínio da Palestina.
A descendência de Abraão é a realidade presente na era entre as duas vindas. Viu-se no Capítulo 1 que todas as pessoas unidas a Cristo pela fé, na presente era, são a descendência de Abraão e os herdeiros das promessas pactuais com Abraão. Observe-se que as quatro principais promessas: o relacionamento (Deus seria o Deus de Abraão em sentido especial), a terra (Canaã), a descendência (Deus seria o Deus da posteridade de Abraão em sentido especial, e lhe daria a terra) e a bênção (para outras nações).
É importante notar que o mesmo Deus que prometeu ser o Deus de Abraão e de sua descendência (que o NT identifica como Cristo e todas as pessoas unidas a ele pela fé), também promete que sua descendência abençoaria as nações e herdaria a terra. As nações são abençoadas em Cristo, que destrói a limitação do pacto do AT aos judeus étnicos, e agora chama seu povo de todas as nações debaixo do céu (Ef 2.11-22; Ap 7.9,10).
Em adição, esses cristãos de todas as nações são agora herdeiros com Cristo (Rm 8.17) da terra inteira (Rm 4.13). Não se pode dizer que só algumas promessas feitas a Cristo como descendência de Abraão se cumprem na comunidade da nova aliança, na presente era, e que após a segunda vinda, as outras promessas serão cumpridas. É possível dizer que todas as promessas são cumpridas agora apenas em parte, e que o cumprimento pleno ocorrerá só na eternidade; no entanto, não se pode dizer que algumas promessas do pacto abraâmico não foram outorgadas à descendência de Abraão — às pessoas unidas a Cristo pela fé.
Uma promessa feita a Abraão em Gênesis 22.15-18 diz que sua descendência possuirá as portas dos seus inimigos, possivelmente prefigurando Mateus 16.18, que afirma que as portas do Inferno não prevalecerão contra a igreja de Cristo. A linguagem é simbólica. As portas da cidade são identificadas com seu poder, o lugar de sua autoridade (Pv 31.23; Jr 14.2,3). Possuir as portas da cidade significa, portanto, ter a posse da cidade e controlá-la.
A promessa feita à descendência de Abraão assegura a derrota dos inimigos de Israel. A partir do NT, sem dúvida, descobre-se que os cristãos são a descendência de Abraão, o verdadeiro Israel. Eles são herdeiros das promessas do pacto abraâmico (Gl 3.29). Uma das promessas é a promessa da terra, expandida no NT para incluir o mundo inteiro.
Isso requer a subordinação dos inimigos de Cristo (1Co 15.24,25); é exatamente o que Gênesis 22 predisse: a descendência de Abraão possuirá as portas dos seus inimigos. Isso não pode preconizar menos que o domínio mundial de Cristo e dos seus eleitos — o restabelecimento da civilização e da cultura cristã.
2. Deus prometeu que o reino de Cristo encherá a terra (Dn 2.31s.)
O capítulo 2 do livro de Daniel registra a interpretação desse profeta a respeito do sonho de Nabucodonosor sobre a grande imagem. Talvez seja o ponto mais persuasivo sobre o favorecimento do pós-milenarismo no AT. Grande parte da revelação dada a Daniel, como a concedida a João no Apocalipse, é simbólica.
Nosso intento aqui não é oferecer uma interpretação de todo o livro, nem mesmo do capítulo inteiro. Em vez disso, é mostrar como o capítulo 2 (do v. 31 em diante) comprova o ponto de vista pós-milenarista. A imagem do sonho de Nabucodonosor se refere, na revelação e interpretação de Daniel, aos quatro reinos históricos similares que governaram em sequência. A maioria dos eruditos concorda [27] que os quatro reinos representam os quatro antigos grandes impérios do mundo: a cabeça da imagem feita de ouro fino é a Babilônia; o peito e os braços de prata da imagem retratam medos e persas; a Grécia é mencionada pelo ventre e quadris, de bronze; e o Império Romano é tipificado pelas pernas e pés de ferro e barro, a mistura de força e fraqueza (Dn 2.42,43).
Uma pequena “pedra soltou-se sem auxílio de mãos” (v. 34) e esmagou os pés da imagem (o Império Romano), destruindo-a. A pequena pedra então cresce e se torna uma montanha que enche a terra (v. 34,35). A interpretação dada por Daniel ao versículo 44 encerra o argumento pós-milenarista:
Mas, nos dias destes reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído; este reino não passará a outro povo; esmiuçará e consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre.
A expressão “nos dias destes reis” confirma o argumento pós-milenarista. O reino eterno que Deus estava para estabelecer começa quando a pedra colide com os pés da imagem (o Império Romano), consome todos os antigos impérios, dos quais Roma era a última parcela, e depois disso preenche a terra. Isto é, durante o Império Romano Deus estabeleceu seu reino final e indestrutível na terra. Quando foi isso?
Poderia ser apenas no período do ministério terreno de Cristo, sua ressurreição e sessão à mão direita do Pai (v. ponto 3, abaixo). Cristo alegou o estabelecimento do reino no primeiro advento (Mt 4.17,23; 12.27-29). Esse é o reino eterno do qual Daniel falou. É o reino anunciado pelos apóstolos (At 8.12; 20.25; 28.23,31). É o reino que por fim derrubou o Império Romano pagão em 312 d.C., com a conversão de Constantino. [28]
Observe com cuidado: o reino eterno — predito por Deus por meio de Daniel — não é estabelecido na segunda vinda de Cristo, mas na primeira. “Nos dias destes reis” — não no final do século XX ou XXI.
O reinado de Apocalipse 20, portanto, não é um reinado de Cristo em sentido físico na terra no futuro próximo ou distante (lembre-se que Apocalipse 20 não diz nada sobre Cristo reinar na terra). O reinado de Apocalipse 20 é o mesmo reinado de Daniel 2: o reinado presente de Cristo estabelecido em sua primeira vinda. Se há alguma dúvida sobre o tempo desse reino, podemos considerar a visão noturna de Daniel registrada em 7.13, 14. Mais uma vez, nosso propósito não é detalhar a ocasião histórica e toda a interpretação da visão. Antes, é notar que quando o Filho do homem (Cristo, Mt 16.13) veio com as nuvens do céu, ele foi levado ao ancião bem idoso (o Deus todo-poderoso; v. Dn 7.9,22), e recebeu um domínio mundial.
É difícil imaginar que alguém não reconheça as nuvens do céu como referência à ascensão de Cristo (At 1.9). Antes, o tempo principal que Cristo esteve ausente do seu lugar com o Pai (Fp 2.5-8) foi durante o ministério terreno (não existe nenhuma cristofania registrada [aparições do Cristo pré-encarnado] após o livro de Daniel). O único momento que Cristo alguma vez retornou de forma gloriosa e triunfante ao ancião bem idoso foi quando voltou ao céu depois do ministério terreno. Isso se deu quando ele foi escoltado de volta ao trono do Pai e recebeu formalmente o reino eterno.
O entendimento mais óbvio de Daniel 7.13, 14 é que Cristo recebeu o reino imediatamente após a ascensão. O reino estabelecido na primeira vinda de Cristo e formalmente reconhecido e concedido em sua ascensão é o reino da predição de Daniel que encheria a terra.
3. O NT ensina que a entronização de Cristo, mencionada em Salmos 110.1, foi instituída e/ou cumprida na presente era (At 2.29-36; Ef 1.20-22; 1Co 15.27; Hb 10.12-14).
Contudo, o ensino bíblico mais decisivo em apoio ao pós-milenarismo consiste nas passagens do NT que ligam o trecho da entronização no salmo 110 com o reinado presente de Cristo. O salmo 110 prediz a destruição dos gentios e de outros inimigos de Cristo como recompensa ao Senhor [Cristo] do SENHOR [Jeová].
A imagem usada é similar à de Gênesis 3.15 observada acima: os inimigos são feitos o “estrado dos pés” de Cristo “ponha teus inimigos debaixo dos teus pés”. Da mesma forma, o escopo da promessa recorda Gênesis 3.15 sobre o esmagar da cabeça da descendência da serpente:
“esmagará cabeças por toda a terra” e “esmagará os chefes por toda a terra” (Sl 110.6).
Essa é uma predição impressionante e totalmente abrangente.
4. Deus prometeu que o reino de Cristo avançará de forma gradual (Mt 13.31-33; Hb 2.8).
Um argumento comum contra o pós-milenarismo é que nós não vemos hoje o reino de Cristo avançar diante de nossos olhos, e que, na verdade, o mundo está se tornando cada vez mais ímpio. Nos dois casos a resposta é negativa, [29] mas o ponto principal aqui é que a Bíblia não exige a percepção imediata do avanço do reino apenas aos olhos humanos. De fato, ela exige quase o contrário.
Passagens que prometem a presença única e potente de Deus acompanhando e energizando o povo do seu pacto na comissão de fazer o reino avançar. Não só a Bíblia ensina que o reino de Cristo avançará no presente período entre as vindas; ela também ensina que Deus se comprometeu a energizar esse corpo pactual para realizar essa tarefa.
Daniel 7.27 promete: “O reino, o domínio e a grandeza dos reinos debaixo de todo o céu serão dados à multidão dos santos do Altíssimo. O seu reino será um reino eterno, e todos os domínios o servirão e lhe obedecerão”.
Os santos de Deus são incumbidos de possuir e manter o reino de Cristo (Ap 2.26,27). É quase desnecessário dizer que Deus os equipa e energiza para essa tarefa. Um exemplo óbvio é Mateus 16.18, no qual Cristo promete que as portas do Inferno não prevalecerão contra a sua igreja. Como mencionado antes, isso pode remontar à predição de Gênesis 22.17 de que a descendência de Abraão possuiria as portas dos seus inimigos.
É fundamental reconhecer que portas não são armas ofensivas; a figura em Mateus 16.18 não é a da igreja de Cristo aguentando (“segurando a porta”) até Cristo resgatar a igreja da pressão ferrenha de Satanás, mas sim a figura da incapacidade do Inferno resistir às investidas do exército da igreja de Cristo.
As portas do Inferno não podem resistir à igreja de Cristo em seu avanço terreno.
Mateus 28.18-20 ensina a mesma coisa de uma forma diferente. Essa “grande comissão” é que os cristãos devem discipular e batizar todas as nações, com a segurança que Cristo os acompanhará até o final dos tempos. Esse é um chamado abrangente; requer não apenas salvação individual, mas o discipulado das nações. Batizar as nações é colocá-las sob a autoridade de Cristo, visto que o batismo é o sinal pactual e selo que liga o Deus triúno ao crente e o crente ao Deus triúno. [31]
O batismo é a marca externa inicial do pacto (a comunhão é a marca externa contínua). Batizar significa começar a obra externa de fazer discípulos. Cristo comissionou a igreja a trazer todas as nações sob sua autoridade. [32]
Cristo promete acompanhar sua igreja na tarefa de conquistar o mundo até que a incumbência esteja completa na consumação dos séculos. Além disso, não muito antes da ascensão, em João 16.7-15, Cristo informou aos discípulos desencorajados sua necessidade do retorno ao céu para que o Espírito Santo, que convenceria o mundo, viesse e completasse os propósitos divinos redentores na terra.
Em 14.12, Jesus prometeu: “Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai”. O ensino de Cristo não é que sua obra era mais eficaz quando ele estava na terra, mas antes quando retornasse ao céu. Lá, como se observou, ele foi entronizado formalmente à mão direita do Pai, e enviou o Espírito para a igreja na terra (At 2.30-33).
Ele enviou o Espírito para capacitar seu povo para a tarefa de discipular as nações, exercendo domínio na terra sob sua autoridade régia.
Conclusão
A evidência bíblica apoia a perspectiva pós-milenarista. A Bíblia promete:
1) Uma grande e prolongada era de justiça, paz e prosperidade na terra;
2) O avanço gradual, e real, do reino de Cristo na história humana na era entre as duas vindas;
3) A presença especial e poderosa do Espírito Santo acompanhando e capacitando os cristãos na comissão de fazer o reino avançar. Sobre essas teses descansa a promessa do pós-milenarismo.
NOTAS:
[26] Romanos. São José dos Campos: Editora Fiel, 2003, p. 168-9.
[27] Mesmo o arquidispensacionalista Cyrus I. Scofield admitiu isso em The Scofield Reference Bible (New York, 1909), p. 900-1.
[28] Constantino é um dos personagens mais desprezados de toda a história do cristianismo, como disse certa vez Rousas J. Rushdoony.
Para uma visão diferente disso, veja o livro Defending Constantine: The Twilight of an Empire and the Dawn of Christendom, de by Peter J. Leithart. O livro, publicado pela IVP Academic (2010), tenta demonstrar a relevância duradoura do “momento Constantino” do quarto século. Em vez de focar nos resultados negativos, Leithart nos lembra de todos os bens que Deus trouxe a partir desse período controverso da história. [N. do T.]
[29] V. Boettner, op. cit., p. 38-47.
[30] Hebreus (Série Comentários Bíblicos). São José dos Campos: Editora Fiel, 2012, p. 59.
[31]
James Bannerman, The Church of Christ (Edmonton, Alberta, Canada), cap. 2, p. 8-12. Lançado em português com o título: A
igreja de Cristo (São Paulo: Os Puritanos, 2014, 1000 p.).
[32] V. Kenneth Gentry, The Greatness of the Great Commission (Tyler, TX, 1990).
Extraído: Pós-milenarismo: um guia introdutório, Andrew Sandlin, Ed. Monergismo.
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