quinta-feira, 12 de julho de 2018

DIÁLOGO DE UM FILÓSOFO CRISTÃO E DE UM FILÓSOFO CHINÊS (5/5) Sobre a Existência e a Natureza de Deus - Nicolas Malenbranche

O Cristão: — As vossas abstrações ainda vos seduzem. Que gênero de ser é essa Lei e essa regra? Como subsiste na matéria? Qual é o seu Legislador? Dizeis que é eterna. Portanto, concebeis que o Legislador é eterno. Acrescentais que é necessária e imutável; afirmais ainda que o Legislador é necessário e que não é livre de constituir, nem de seguir ou não esta lei. Concebeis que esta lei só é imutável e eterna porque está por assim dizer escrita em caracteres eternos na ordem imutável dos atributos e das perfeições do Legislador, do ser eterno e necessário, do Ser infinitamente perfeito. Mas não digais que subsiste na matéria. Explico-me: O Ser infinitamente perfeito conhece-se perfeitamente e ama-se inevitavelmente a si mesmo, por necessidade da sua natureza.

Não podeis conceber de outra maneira o Ser infinitamente perfeito. É que a sua vontade não é como em nós uma impressão que vem de outra fonte. Não pode ser senão o amor natural que Ele tem a si próprio e às suas perfeições divinas. Daqui se segue que estima e ama necessariamente mais os Seres que melhor participam nas suas perfeições. Portanto, estima e ama mais o homem, por exemplo, do que o cavalo, o homem virtuoso e que se lhe parece do que o homem viciado que desfigura a imagem da divindade que traz consigo, pois sabemos que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. A ordem eterna, imutável e necessária que existe entre as perfeições que Deus contém na sua essência, de que desigualmente participam os seres, é, pois, a Lei eterna necessária e imutável.

O próprio Deus se obrigou a segui-la; mas permanece independente, uma vez que só é obrigado a segui-la porque não pode nem errar nem mentir, envergonhar-se de ser aquilo que é, deixar de se estimar e amar, deixar de estimar e amar todas as coisas na proporção em que participam na sua essência. Nada o obriga a seguir esta Lei a não ser a excelência imutável e infinita do seu ser, excelência que conhece perfeitamente e ama de modo invencível. Por conseguinte, Deus é justo essencialmente e a própria justiça, a regra invariável de todos os espíritos que se corrompem se deixam de se conformar com esta regra, isto é, se deixam de estimar e amar todas as coisas na proporção em que são estimáveis e amáveis, na proporção em que mais participam das perfeições divinas.

Como é no Ser infinitamente perfeito ou, para falar como Vós, no Li, que vemos todas as verdades, ou todas as relações que existem entre as ideias eternas e imutáveis que Ele contém, é claro que vemos aí as relações de perfeição, como também as simples relações de grandeza, as relações que regulam os juízos do espírito, e ao mesmo tempo os movimentos do coração, bem como os que regem apenas os juízos do espírito; numa palavra, as relações que têm força de lei, como ainda as puramente especulativas. A Lei eterna está assim em Deus e é o próprio Deus; pois tal Lei não é mais que a ordem eterna e imutável das perfeições divinas. E esta Lei é dada a conhecer a todos os homens pela união natural, ainda que agora muito enfraquecida, que têm com a soberana razão, ou enquanto são racionais; e além disso, mediante os sentimentos de aprovação ou de reprovação interior com que esta mesma razão os consola quando obedecem a esta Lei, ou os desola quando não lhe obedecem, convencidos como estão de que ela lhes é imposta. Mas porque os homens se tornaram demasiado carnais, rudes, escravos das suas paixões, numa palavra, incapazes de entrar em si mesmos para consultarem atentamente a Lei soberana e a seguirem constantemente, todos necessitam das luzes e dos auxílios da Nossa Santa Religião. De facto, ela não só expõe claramente todos os nossos deveres, mas nos proporciona também todos os auxílios para os pôr em prática. Comparai, pois, sem preconceitos a vossa doutrina sobre o Li com a que acabo de expor-vos.

Os vossos doutores eram muito esclarecidos, estou de acordo, mas eram homens como vós e como nós. E nós sabemos que há um Deus, um Ser infinitamente perfeito, não só por uma infinidade de provas que julgamos demonstrativas, mas porque o próprio Deus se deu a conhecer aos autores das nossas Escrituras. Mas deixando agora de lado a autoridade divina dos nossos livros sagrados e a dos vossos doutores, verificai se é possível se o vosso Li sem se tornar o nosso, isto é, o Ser infinitamente perfeito, pode ser a luz, a sabedoria, a regra que ilumina todos os homens.

Poderíamos ver nele tudo o que vemos se  não contivesse eminentemente a realidade? Poderiam ver-se num plano, se fosse visível por si mesmo, sólidos que aí não estão? Não é evidente que aquilo que se vê imediata e diretamente não é nada, e que ver nada e não ver é a mesma coisa? Como encontraríeis no vosso Li estes espaços infinitos, isto é, aqueles que o vosso espírito percepciona imediatamente e que sabe não terem limites? Pois não falo dos espaços materiais que não se vêem em si mesmos e que consequentemente poderíamos ver, ou antes julgar que víamos sem existirem, e aos quais, apesar de tudo, atribuís uma existência eterna que certamente só convém à sua ideia.

Com efeito, a ideia destes espaços ou os espaços, que são o objeto imediato e direto do vosso espírito, são necessários e eternos, uma vez que não é mais do que a essência do Ser infinitamente perfeito enquanto representativa dos espaços materiais. Dizei antes como nós que o verdadeiro Li, o qual nos ilumina imediatamente e no qual descobrimos todos os objetos dos nossos conhecimentos, é infinitamente perfeito e contém eminentemente na simplicidade perfeita da sua essência tudo quanto há de verdadeira realidade nos seres finitos. Fazei justiça ao verdadeiro Li, confessando de boa vontade que é essencialmente justo, pois, ao amar necessariamente a sua essência, ama também todas as coisas na proporção da sua progressiva perfeição, já que são tanto mais perfeitas quanto mais dela participam.

Dizei também que é a própria justiça, a Lei eterna, a regra invariável, dado que toda a Lei eterna não é mais que a ordem imutável das perfeições que Ele encerra na infinidade e simplicidade da sua essência: ordem que é a própria Lei de Deus e a regra da sua vontade e a de todas as vontades criadas. Mas desconfiai das vossas abstrações, vãs subtilezas dos vossos doutores. Estas formas ou qualidades abstratas não existem. Todas as qualidades não são mais do que modos de Ser de algumas substâncias. Se amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, seremos justos, sem sermos, se assim se pode dizer, informados por uma forma abstrata de justiça que não subsiste em parte alguma.

Credes que é o Li que ordena a matéria nesta admirável ordem que observamos no universo, que é Ele que dá aos animais e às plantas tudo quanto é necessário para a conser vação e propagação da sua espécie. Portanto, é claro que age relativamente a certos fins. Contudo, defendeis que não é sábio nem inteligente, e faz tudo isto por uma impetuosidade cega da sua natureza bem-fazeja. Que prova tendes de tão estranho paradoxo?

O Chinês: — Ei-la. Se o Li fosse inteligente como pensais, sendo bom por sua natureza, não haveria monstros nem qualquer desordem no universo. Porque é que o Li teria feito nascer cega uma criança com dois olhos? Porque é que faria crescer as searas para as destruir a seguir mediante os temporais? Será que um Ser infinitamente sábio e inteligente pode continuamente alterar o seu plano, fazer e desfazer logo a seguir o que fez? O universo está cheio de manifestas contradições: sinal de que o Li que o governa não é sábio nem inteligente.

O Cristão: — O quê? Aquele que nos deu os olhos e os colocou no alto da cabeça não planeou que nos servíssemos deles para ver, e vermos mais longe? Quem deu asas às aves não soube nem quis que pudessem voar nos ares? O que não direis então das desordens do universo, pois sendo o vosso espírito finito, não conheceis os fins ou os diversos planos do Li, cuja sabedoria é infinita. Pelo facto de o universo estar cheio de efeitos que se contradizem, concluís que o Li não é sábio. Eu concluo demonstrativamente o contrário. Eis como.

O Li, ou antes, o Ser infinitamente perfeito, que adoro, deve agir sempre de acordo com o que é, de uma maneira conforme com os seus atributos, cujo carácter revela. Com efeito, prestai atenção, Ele não tem nem pode ter outra Lei e outra regra de conduta além da ordem imutável dos seus próprios atributos. É necessariamente nesta ordem que encontra o motivo ou a regra que o determina a agir antes de uma maneira do que de outra. Só se determina pela vontade e a sua vontade não é mais do que o amor que tem a si próprio e às suas divinas perfeições. Não é uma impressão que lhe vem de alhures e para alhures o leva. Tudo o que vos afirmo está necessariamente contido na ideia do Ser infinitamente perfeito.

Ora, formar para si leis gerais das comunicações de movimentos, leis gerais da união da alma e do corpo, e outras semelhantes, após ter previsto todas as conseqüências, eis o que certamente revela o carácter de uma sabedoria e de uma pré-ciência infinitas. Mas agir em todos os momentos através de vontades particulares revela uma sabedoria e uma providência limitada, como a nossa. Além disso, agir mediante leis gerais revela o carácter de uma causa geral, a uniformidade na conduta exprime a imutabilidade da causa. Isto é evidente e refuta as vossas dificuldades.

Dizeis que o Li destrói as searas que fez crescer; logo, não é sábio. Faz e desfaz sem cessar, contradiz-se; logo, muda de plano ou, antes, age por uma impetuosidade cega e natural. Enganais-vos. Pelo contrário, porque o verdadeiro Li segue sempre as leis muito simples das comunicações dos movimentos é que os temporais se formam e danificam as searas, e as chuvas produzidas igualmente pelas mesmas leis, as fizeram crescer.

Com efeito, tudo o que acontece naturalmente na matéria mais não é do que uma conseqüência destas leis. É a mesma conduta que produz efeitos tão diferentes. É porque Deus não altera a sua maneira de agir e segue sempre as mesmas leis que se observam no universo tantos efeitos que se contradizem. É por causa da simplicidade destas leis que os frutos são danificados; mas a fecundidade destas mesmas leis é tal que depressa reparam o mal que fizeram. Numa palavra, estas leis são tais que a sua simplicidade e fecundidade juntas revelam mais o carácter dos atributos divinos do que qualquer outra lei mais fecunda mas menos simples, ou mais simples mas menos fecunda.

Deus não se honra apenas pela excelência da sua obra, mas também pela simplicidade das suas vias, pela sabedoria e uniformidade da sua conduta. Deus estabeleceu as leis gerais da união da alma e do corpo, em conseqüência das quais, segundo as diversas impressões se produzem no cérebro, devemos ser avisados da presença dos objetos, ou do que acontece ao nosso corpo. No cérebro de um homem que perdeu um braço, dá-se a mesma impressão como quando tinha gota no dedo mendinho.

De igual modo no cérebro de um homem que dorme surge a mesma impressão que outrora fazia o seu pai, há pouco falecido. A que se deve que este seja avisado da presença do pai, e que o outro ainda sofra da gota num dedo que não tem? É que Deus não quer compor as suas vias, nem perturbar a uniformidade e a generalidade da sua conduta para remediar ligeiros inconvenientes. Em virtude das mesmas leis, quando um homem quer mexer o braço mexe-o, sem que saiba sequer o que é necessário para o mexer.

Vê-se perfeitamente que a finalidade desta lei é necessária para a conservação da vida e da sociedade. Mas a que se deve não haver nenhuma excepão e que Deus, que ordena a esmola e proíbe o homicídio, preste o seu concurso tanto àquele que estende a mão para socorrer o próximo como ao que mata o inimigo? É, sem dúvida, porque Deus não quer privar as suas vias da simplicidade e generalidade, reservando para o dia das suas vinganças punir o abuso criminoso que os homens fazem no poder que lhes concede pelo estabelecimento das suas leis.

Não imagineis que o mundo é a mais excelente obra que Deus poderia fazer; é, sim, a mais excelente que pôde fazer pelas vias tão simples e sábias de que se serve7. Se puderdes, comparai a obra com as vias, a obra inteira e em todos os tempos com todas as suas vias. Com efeito, foi o conjunto de toda a. obra que Deus escolheu juntamente com as vias, o que mais revela o carácter dos atributos divinos. Não se determinou por esta obra a não ser pela sua vontade, de acordo com o seu motivo e a sua lei. Mas a sua vontade não é mais do que o amor que Ele tem a si próprio, e o seu motivo e lei mais não são do que a ordem imutável e necessária que existe entre as divinas perfeições. Como Ser infinitamente perfeito, basta-se a si mesmo, e é livre de nada fazer. Mas não é livre de escolher mal, isto é, de escolher um plano que não seja infinitamente sábio, e desmentir assim o que Ele verdadeiramente é. Não humanizeis a divindade, nunca julgueis por vós próprio o Ser infinitamente perfeito.

Um homem que constrói uma casa e que poucos dias depois a desfaz, assinala provavelmente através da alteração da sua conduta a sua inconstância, o seu arrependimento, a sua pouca previdência; é que só pode agir mediante vontades, com planos parciais e limitados. Mas a causa universal age e deve incessantemente agir por meio de vontades gerais e seguir exatamente as sábias leis que prescreveu após ter previsto todas as conseqüências.

Após, dizia eu, ter previsto e querido positiva e diretamente todos os efeitos que tornam a sua obra mais perfeita, já que é devido a estes bons efeitos que estabeleceu tais leis; mas previu e apenas permitiu os maus, isto é, indiretamente quis que acontecessem. Pois não quer diretamente estes maus efeitos; só os quer porque quer diretamente agir segundo o que Ele é e manter na sua conduta a generalidade e uniformidade que lhe convém, a fim de estar de acordo com os seus atributos. Não quer dizer que, quando a ordem destes mesmos atributos o exigir ou permitir que Ele aja por meio de vontades particulares, não o faça.

Foi o que aconteceu na instituição da nossa santa religião, pois sabemos que foi confirmada por muitos milagres. O princípio geral de tudo isto é que as causas agem de acordo com aquilo que são. Assim, para saber como agem em vez de nos consultarmos a nós mesmos, importa consultar a ideia que se tem das causas. O vosso imperador é da mesma natureza que vós; contudo, não imaginais que deva agir como agiríeis em ocasiões semelhantes. Efetivamente, se se glorificasse mais a sua dignidade do que a sua natureza, poderia fazer planos em que nunca teríeis pensado.

Consultai pois, a ideia do Ser infinitamente perfeito, se quiserdes conhecer algo da sua conduta. Mas, por outro lado, não vedes que é absolutamente necessário para a conservação do género humano e estabelecimento das sociedades que o verdadeiro Li aja incessantemente em nós como conseqüência das leis gerais da união da alma e do corpo, cujas causas naturais ou ocasionais são as diversas mudanças que ocorrem nas duas substâncias de que os homens são compostos? Partindo apenas do suposto de que Deus não nos dá sempre as mesmas percepções, quando nos nossos olhos ou no nosso cérebro existem as mesmas impressões, só isto destruiria todas as sociedades. Um pai desconheceria o seu filho, e um amigo o seu amigo.

Confundiríamos uma pedra com o pão e, geralmente, tudo ficaria numa terrível confusão. Tirai a generalidade às leis naturais, tudo cai num caos onde nada mais se conhece, pois as vontades particulares do verdadeiro Li que governa o mundo ser-nos-iam inteiramente desconhecidas. Talvez se julgasse, por exemplo, que ao arrojarmo-nos pela janela descêssemos com tanta segurança da nossa casa como se fosse pelas escadas, ou que confiando em Deus, cuja natureza é bem fazeja, andássemos por cima da água sem nos afundarmos.

Portanto, não julgueis que o Li age por uma impetuosidade cega devido aos males que nos acontecem. Ele deixa à vossa indústria esclarecida pelo conhecimento das leis gerais garantir-vos contra os da vida presente; e envia-no-los para nos ensinar o que é necessário para evitar os da vida futura, que são muito mais temíveis. Ele é infinitamente bom, é naturalmente bem-feitor.

Faz mesmo às criaturas, não receio afirmar tal, todo o bem que lhes pode fazer, mas agindo como deve agir prestai atenção a esta condição agindo de acordo com a ordem imutável dos seus atributos; pois Deus ama infinitamente mais a sua sabedoria do que a sua obra. A felicidade do homem não é a finalidade de Deus, isto é, o seu fim principal, o último fim. Deus é para si mesmo o seu fim; o seu fim último é a sua glória; e quando age, age em conformidade com aquilo que é, sempre de uma maneira que ostenta o carácter dos seus atributos, pois não tem outra lei ou outra regra da sua conduta.

O Chinês: — Confesso-vos que é necessário que o Li saiba o que faz e até o que quer. Fiquei bastante contente com a resposta que acabais de dar à objeção que vos fiz. Mas partis sempre do suposto de que a matéria foi criada do nada, o que não creio ser verdade por duas razões. A primeira é que há contradição que do nada se possa fazer algo. A segunda é que posso afirmar de uma coisa o que sei estar incluído na ideia que dela tenho. Por exemplo, posso asseverar que um quadrado se pode dividir em dois triângulos iguais e semelhantes, porque o concebo claramente, tal como posso afirmar que a extensão é eterna, porque a concebo eterna.

O Cristão: — À vossa primeira objecção respondo que é verdade que o próprio Deus não pode do nada fazer algo, no sentido de que o nada seja a base ou o sujeito da obra, ou que a obra seja formada e composta a partir do nada, pois haveria aqui uma manifesta contradição. A obra seria e não seria ao mesmo tempo, o que só por si dá origem à contradição. Mas que o Ser infinitamente perfeito e, por conseguinte, todo-poderoso pois a omnipotência está contida na ideia do Ser infinitamente perfeito queira e, por conseqüência, produza os seres cujas ideias ou modelos estão incluídos na sua essência que conhece perfeitamente, não há aí qualquer contradição. É que o nada e o Ser podem suceder-se um ao outro. Deus vê em si mesmo a ideia de extensão: logo, pode querer produzi-la. se quiser e esta, no entanto, não se produzir, não é todo-poderoso nem, por conseqüência, infinitamente perfeito.

Portanto, ou negais a existência de um Ser infinitamente perfeito ou confessais que pôde criar a matéria, e até que só Ele a criou porque a move, e a dispõe na ordem que admiramos. Sendo infinitamente perfeito, independente, não derivando os conhecimentos senão de si próprio, e conhecendo até desde toda a eternidade tudo o que sabe vir a acontecer, se não tivesse feito a matéria, não conheceria sequer as mudanças que nela ocorrem, nem até se existe.

O Chinês: — Confesso que não compreendo a menor relação entre a vontade do vosso Deus e a existência de um argueiro.

O Cristão: — Pois bem, quereis concluir que o Ser infinitamente perfeito não pode criar um argueiro? Portanto, negais que exista um Ser infinitamente perfeito, ou então que há muitas coisas que nem vós nem eu podemos compreender. Mas de boa fé concebeis claramente alguma relação entre a ação do vosso Li, seja ela qual for, ou entre a sua vontade (se agora estais de acordo que não faz nada sem saber e querer fazer) e o movimento do argueiro. Por mim, confesso também a minha ignorância: não veja nenhuma relação entre uma vontade e o movimento de um corpo.

O verdadeiro Li formou-me dois olhos com uma estrutura maravilhosa e adequada à ação da luz. Quando os abro, tenho, mau grado meu, diversas percepções de diversos objetos, cada qual com um certo tamanho, cor, figura e o resto. Quem faz tudo isso em mim e em todos os homens? É um ser infinitamente inteligente e todo-poderoso. Fá-lo porque quer. Mas qual a  relação entre a vontade do Ser soberano e o menor destes efeitos? Não vejo claramente esta relação, mas deduzo-a da ideia que tenho deste ser.

Sei que as vontades de um ser todo-poderoso devem necessariamente ser eficazes, podendo até fazer tudo o que não encerra a contradição. Quando contemplar Deus tal qual é, o que a minha Religião me manda esperar, compreenderei claramente em que consiste a eficácia das suas vontades. O que agora concebo é que existe contradição em que o vosso Li possa mover um argueiro pela sua própria eficácia, se a existência deste argueiro não for o efeito da vontade do verdadeiro Li.

Efetivamente, se Deus quer e, por conseguinte, cria ou conserva o argueiro num determinado lugar e não o pôde criar sem o ter colocado em qualquer lado este estará onde Ele quer e nunca noutra parte. É que só existe aquele cuja vontade sempre eficaz dá a existência aos corpos que os possa mover, ou os faz existir sucessivamente em diferentes locais.

O Chinês: — Está muito bem. Mas que respondeis à minha segunda prova da eternidade da extensão? Não é demonstrativa? Só se pode afirmar o que claramente se concebe? Ora, quando pensamos na extensão concebemo-la eterna, necessária, infinita. Logo, a extensão não é feita: é eterna, necessária, infinita.

O Cristão: — Sim, sem dúvida, a extensão, a que imediata e diretamente percepcionais, a extensão inteligível é eterna, necessária, infinita. Com efeito, é a ideia ou o arquétipo da extensão criada, que percepcionamos imediatamente; e esta ideia é a essência eterna do próprio Deus enquanto relativa à extensão, de que o universo é composto. Mas a extensão de que se trata, aquela de que esta ideia é o modelo, é criada no templo pela vontade do Todo-poderoso. Será que ainda confundis as ideias dos corpos com os próprios corpos? Da existência da ideia que se percepciona de um magnífico palácio pode concluir-se a existência de tal palácio? Esta proposição é verdadeira: pode afirmar-se de uma coisa o que se concebe claramente incluído na ideia desta coisa. A razão está em que os seres são necessariamente conformes às ideias de quem os fez, e que se vêem na essência  de quem os criou, as mesmas ideias segundo as quais os criou. Com efeito, se vemos estas ideias de outra maneira, cada um de nós as vê, por exemplo, nas modificações da própria substancia; visto que Deus não fez o mundo segundo as minhas ideias, mas segundo as suas, eu não poderia afirmar de ser algum o que eu visse claramente estar contido na ideia que dele tivesse. Mas da ideia que temos dos seres não se pode concluir a existência actual destes seres. D a ideia eterna, necessária, infinita da extensão, não se pode inferir que há uma outra extensão necessária, eterna, infinita, nem sequer se pode concluir que haja qualquer corpo.

O Ser infinitamente perfeito vê na sua Essência uma infinidade de mundos possíveis de diferentes géneros, de que não temos nenhuma ideia, porque não conhecemos todas as maneiras como a sua Essência pode ser participada ou imperfeitamente imitada. Pode concluir-se que todos os modelos destes mundos são executados? Logo, é evidente que da existência necessária das ideias, nada se pode concluir quanto à existência necessária dos seres, de que estas ideias são modelos; apenas se podem descobrir, nas ideias destes seres, as propriedades com base nas quais tais seres foram feitos, precisamente por aquele em quem vemos as suas ideias.



NOTAS:

7 Era natural que Leibniz manifestasse a este respeito o seu desacordo: «Contando tudo, vias e efeitos, é absolutamente o mais excelente. As vias são uma parte da obra» (Cf. A. Robinet, Malebranche et Leibniz, Rei. Per., p. 488).

APROVAÇÃO

Por ordem de S. Ex.a o Chanceler, li um manuscrito intitulado Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filósofo Chinês. Paris, 7 de Janeiro de 1708. 

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