Existem duas
vontades em Deus?
Por: Dr. Sam
Storms
O que a
Bíblia quer dizer quando fala da vontade de Deus? Deus sempre impõe sua
vontade? Pode a vontade de Deus ser resistida ou frustrada? Considere os
seguintes textos:
Bem sei que
tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado. (Jó 42:2).
Todos os
moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele
opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa
deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Dn. 4:35)
No céu está
o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada. (Sl 115:3; cf Ef. 1:11).
Todavia,
dizemos que a vontade de Deus é que todos os homens sejam salvos; (I Tm 2:4)
que todos cheguem ao arrependimento (2 Pe 3:9). Como podemos reconciliar essas
duas declarações aparentemente contraditórias? Uma reposta é encontrada na
distinção entre a vontade preceptiva de Deus e sua vontade decretiva.
Considere
Ex. 4:21-23 e a dureza do coração de faraó. Deus, através de Moisés, ordenará
que Faraó deixe o povo ir. Esta é a vontade preceptiva de Deus, isto é, sua
vontade de preceito ou ordem. Ela é o que Deus diz que deveria acontecer.
Outros fazem referência a isso como a vontade revelada de Deus ou sua vontade
moral. Mas Deus também diz que endurecerá o coração de Faraó, de sorte que
Faraó recusará a ordem de deixar o povo ir. Esta é a vontade decretiva de Deus,
ou seja, sua vontade de decreto ou propósito. O que Deus tem ordenado
acontecerá. Ela é também conhecida como sua vontade oculta, ou vontade soberana
ou vontade eficiente. �Assim, o que vemos [em Êxodo] é que Deus ordena que Faraó
faça algo que a vontade do próprio Deus não permite. A boa coisa que Deus
ordena ele impede. E aquilo que ele traz envolve pecado� (John Piper, “Are There Two Wills in
God?”, 114).
Assim, a
vontade decretiva de Deus refere-se ao secreto, tudo que engloba seu divino
propósito de acordo com o que ele predestinou, seja o que for que venha a
acontecer. Sua vontade preceptiva refere-se às ordens e proibições nas
Escrituras. Alguém necessita contar com o fato de que Deus pode decretar aquilo
que ele tem proibido. Ou seja, a sua vontade preceptiva pode ter ordenado que o
evento X deve ocorrer, ao passo que nas Escrituras, a vontade preceptiva de
Deus, ordena que o evento X não deva ocorrer.
John Frame
coloca isto da seguinte forma:
A vontade de
Deus é às vezes frustrada porque ele assim o quer, pois ele tem dado a um dos
seus desejos precedência sobre outro. (No Other God, 113)
Deus não
planeja causar tudo o que ele valoriza, mas ele nunca falha em causar tudo o
que ele planejou. (113)
Ou
novamente: Deus está frequentemente satisfeito em ordenar sua própria
insatisfação.
1. Talvez o melhor exemplo seja encontrado em
Atos 2:22-23 e 4:27-28. Aqui nós encontramos em certo sentido Deus �desejoso� de entregar seu próprio Filho, enquanto
em outro sentido �não desejoso� porque era algo pecaminoso para seus executores cumprirem
isto. Como Piper explica, �O desprezo de Herodes por Jesus (Lucas 23:11), a conveniência
da covardia de Pilatos (Lucas 23:24), o 'Crucifica-o! Crucifica-o!' dos judeus
(Lucas 23:21), e a zombaria dos soldados gentios (Lucas 23:36), também foram
atitudes e atos pecaminosos. Ainda em Atos 4:27-28 Lucas expressa seu
entendimento da soberania de
Deus nestes atos, registrando a oração dos santos
de Jerusalém: �porque
verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao
qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios as pessoas de Israel, para
fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito (boule) predeterminaram�! Herodes, Pilatos, os soldados, e o
grupo de judeus levantaram suas mãos para se rebelar contra o Altíssimo somente
para provar que a rebelião deles era um serviço inconsciente (pecaminoso) nos
inescrutáveis planos de Deus... Portanto, sabemos que não era a �vontade de Deus� que Judas, Pilatos, Herodes, os
soldados gentios e os judeus desobedecessem a lei moral, pecando ao entregar
Jesus para ser crucificado. Assim, sabemos que Deus, em certo sentido, permite
sua vontade e que não permite em outro sentido. (111-112).
O que Deus
tem eternamente decretado que acontecerá pode ser o oposto do que ele, nas
Escrituras, diz que deve ou não deve acontecer. É importante manter em mente
que nossa responsabilidade é obedecer à vontade de Deus revelada, e não especular sobre o que está oculto. Somente
raramente, como no caso da profecia preceptiva, Deus nos revela a sua vontade
decretiva. Exemplos da vontade preceptiva ou revelada incluem: Ezequiel 18:3;
Mateus 6:10; 7:21; Efésios 5:17; e I Tess. 4:3. Algumas também seriam colocadas
nesta categoria: I Tm 2:4 e II Pe 3:9. Exemplos da vontade decretiva ou
escondida de Deus incluem: Tiago 4:15; I Co 4:19 e Mat 11:25-26.
(2) Outro
exemplo é encontrado em Ap 17:16-17. Claramente �empreender guerra contra o Cordeiro é
pecado e pecado contrário à vontade de Deus. Contudo o anjo diz (literalmente),
�Porque em seu coração incutiu Deus
[os dez reis] que realizem o seu pensamento, o executem a uma e dêem à besta o
reino que possuem, até que se cumpram às palavras de Deus� (v.17). Portanto Deus desejou (em um
sentido) influenciar os corações dos dez reis de maneira que eles fariam o que
era contra sua vontade (em outro sentido)�. (Piper, 112; minha ênfase).
(3) Em Dt
2:26-27, lemos o pedido de Moisés para que os israelitas pudessem passar
através da terra de Seom, rei de Hesbom. Teria sido uma �boa� coisa que aquele rei tivesse
permitido. Porém, ele não permitiu porque o Senhor �endureceu seu espírito e obstinou seu
coração� (Dt 2:30). Assim, �foi a vontade de Deus (em um sentido)
que Seom agisse de uma forma que fosse contrária à vontade de Deus (em outro
sentido), ou seja, que Israel fosse abençoado, e não amaldiçoado� (115).
(4) Muito do
mesmo é encontrado em Josué 11:19-20, onde somos informados que o Senhor �endureceu os corações� de todos aqueles em Canaã para
resistir à Israel, de maneira que ele, o Senhor, pudesse destruí-los assim como
disse que o faria.
(5) De
acordo com I Rs 22:19-23 (II Cr 18:18-22) Acabe estava procurando formar uma
aliança com Josafá, rei de Judá, de forma que juntos pudessem atacar
Ramote-Gileade, a qual estava sob o controle da Síria. Josafá insistiu para que
primeiro eles consultassem o profeta para ver a perspectiva de Deus. Acabe, de
outro lado, ajuntou 400 dos seus profetas e disse a eles para atacar
Ramote-Gileade e que seriam vitoriosos. Josafá consultou o profeta Micaías, o
qual lhe contou a visão que teria tido quando viu o Senhor assentado no seu
trono, e todo o exército do céu estava junto a ele. Nesta visão, Deus perguntou
quem enganaria a Acabe, para que suba e caia em Ramote-Gileade? Um �espírito� (anjo?) se apresentou para ser o �espírito mentiroso na boca de todos
os profetas de Acabe� (v.22). Deus concordou. O espírito foi e assim o fez; Acabe
ouviu a voz dos profetas, e foi para a batalha, onde veio a morrer.
Alguns
argumentam que o �espírito� era de fato o diabo, todavia, não há indicação disto no
texto. O espírito é retratado simplesmente com um em meio aos outros. Não há
evidências de que ele tinha uma posição superior ou especial. Seria um anjo
caído, um demônio? Provavelmente. Realizou uma função má: incitou os profetas
de Acabe a mentir. Apesar do espírito não ser o diabo em si, existem inegáveis
paralelos entre este texto e o de Jó 1. Também, a passagem parece atrair uma
distinção entre o espírito que inspira os profetas de Acabe e o que inspira
Micaías (v. 24). �A implicação é que Micaías e os profetas de Acabe poderiam
não ter recebido as mensagens da mesma fonte. Existe, naturalmente, duas fontes
distintas, mas é Micaías quem tem a fonte correta. Afinal de contas, é a sua
profecia que vem e acontece� (página 79).
Observe que
mesmo este espírito demoníaco está absolutamente sujeito à vontade de Deus. É o
comando de Deus.
Está claro para Micaías que era Deus quem �pôs o espírito mentiroso na boca de
todos estes teus profetas; e o Senhor falou o que é mau contra ti� (v.23). Assim Deus pode e
frequentemente usa espíritos demoníacos para satisfazer seus propósitos.
Novamente, vemos que a pergunta, �Quem fez isto, Deus ou o Diabo?� pode ser respondida, �Sim�. Porém Deus é sempre último. [Um
paralelo próximo a essa passagem é encontrado em Juízes 9:23, onde Deus
suscitou um espírito de aversão entre Abimeleque e os cidadãos de Siquém.]
O que é
importante para o nosso propósito é o fato óbvio de que Deus ordena que suas
criaturas não mintam ou enganem. Mentir ou enganar é, portanto, contrário à
vontade de Deus. Todas as criaturas de Deus são moralmente obrigadas a dizer a
verdade. Todavia, aqui temos um exemplo no qual Deus coloca um espírito
enganador nos lábios daqueles homens. Neste sentido, pareceria que as palavras
que eles falaram foram de acordo com a vontade de Deus, ao mesmo tempo que, em
outro sentido, as palavras que eles falaram foram contra a vontade de Deus.
(6) Outras
citações são encontradas em Rm 11:7-9, 31-32 e Mc 4:11-12. No primeiro texto
vemos que �embora
seja a ordem de Deus que seu povo veja, ouça e responda em fé” (Is 42:18),
contudo, Deus tem suas razões para enviar de vez em quando um espírito de estupor
de maneira que sua vontade não seja obedecida� (115). Igualmente, �o ponto em Rm 11:31...é que o
endurecimento de Israel por Deus não é um fim em si mesmo, mas é parte de um
propósito salvador que abraçará todas as nações. Mas, durante um pouco de tempo,
temos que dizer que ele deseja uma condição (endurecimento do coração) que ele
ordena que as pessoas lutem contra (Não endureçais vossos corações [Hb 3:8,15;
4:7])� (116). No texto de Marcos, �Deus deseja que uma condição
prevaleça sobre uma outra que ele considera repreensível. Sua vontade é que
eles se arrependam e creiam no Evangelho (Mc 1:15), mas ele age de forma a
restringir a realização dessa vontade� (115).
(7) Em I Sm
2:22-25 lemos sobre a maldade dos filhos de Eli; a maldade era claramente contra
a �vontade� de Deus. A �vontade� revelada de Deus era para que eles
ouvissem a voz de seu pai e parassem de pecar. Aprendemos ainda que a razão
pela qual eles não obedeciam a Eli (e Deus) era porque �o Senhor os queria matar.� Como Piper nota, �isto faz sentido somente se o Senhor
tivesse o direito e o poder para parar a desobediência deles. Um direito e
poder que ele desejou não usar. Assim, devemos dizer num sentido que Deus
desejou que os filhos de Eli fossem fazer o que ele não ordenou que fizessem;
não honrar seu pai e cometer imoralidade sexual� (117).
(8) Outros
exemplos similares ao de I Sm 2 são II Sm 17:14; I Rs 12:9-15; Jz 14:4 e Dt
29:2-4. Estes são todos incidentes, dentre vários outros que poderiam ser
citados, onde Deus escolhe (�deseja�) que certos comporamentes aconteçam, os quais ele não
ordenou (�não
deseja �) que acontecesse.
(9) Ainda
outro exemplo é encontrado em Gn 50:20. Aqui José diz a seus irmãos, �Vós, na verdade, intentastes o mal
contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se
conserve muita gente em vida�. Diz Grudem: �Aqui, a vontade revelada de Deus para
os irmãos de José era que os mesmos deveriam amá-lo e não roubá-lo ou vendê-lo
como escravo ou intentar plano de matá-lo. Mas a vontade secreta de Deus era
que na desobediência dos irmãos de José uma grande coisa seria feita quando
José, tendo sido vendido como escravo no Egito, ganhasse autoridade sobre toda
a terra e fosse capaz de salvar sua família� (Systematic Theology, 215).
Os Arminianos
tem tradicionalmente objetado contra esta distinção entre �duas vontades em Deus� quando diz respeito à questão da
salvação individual. Estou pensando em particular na declaração de I Tm 2:4 e
II Pe 3:9. Mas �no final os Arminianos também devem dizer que Deus deseja
algo mais fortemente do que ele deseja a salvação de todas as pessoas, pois de
fato nem todos são salvos�. Os Arminianos afirmam que a razão pela qual nem todos são
salvos é que Deus deseja preservar o livre arbítrio dos homens mais do que ele
deseja salvar alguém. Mas isto não está fazendo uma distinção entre dois
aspectos da vontade de Deus? Por outro lado, a vontade de Deus é que todos
sejam salvos (I Tm 2:5-6; II Pe 3:9). Mas também em outro sentido sua vontade é
de absolutamente preservar o livre arbítrio. De fato, ele deseja a segunda mais
do que a primeira. Portanto, isto significa que os Arminianos também necessitam
concordar que em I Tm 2:5-6 e II Pe 3:9 Deus não diz que ele deseja a salvação
de todos de uma maneira absoluta e não qualificada � eles também necessitam concordar que
os versículos fazem referência a um tipo ou a um aspecto da vontade de Deus
(684).
Tanto
Calvinistas como Arminianos, portanto, devem concordar que existe algo mais que
Deus considera como mais importante que a salvação de todos: �Teólogos reformados dizem que Deus
julga sua própria glória mais importante do que a salvação de todos, e que (de
acordo com Rm 9) a glória de Deus é também promovida pelo fato de que nem todos
são salvos. Os teólogos Arminianos também dizem que algo é mais importante para
Deus do que a salvação de todos os homens, a saber, a preservação do livre
arbítrio dos homens. De maneira que no sistema reformado o mais alto valor para
Deus é sua própria glória, e no sistema Arminiano, o mais alto valor para Deus
é o livre arbítrio do homem�. (684).
Adendo:
Observações de Edwards
É importante
tomar nota da explanação de Jonathan Edwards sobre este ponto:
Quando a
distinção é feita entre a vontade revelada de Deus e sua vontade secreta, ou
seu desejo de comando ou decreto, a vontade é certamente tomada em dois
sentidos: Sua vontade de decreto não é a sua vontade no mesmo sentido que sua
vontade de comando. Portanto, não difícil de forma alguma supor, que uma pode
ser o contrário da outra: sua vontade em ambos os sentidos é sua inclinação.
Mas quando dizemos que ele deseja virtude, ou ama a virtude, ou a felicidade de
sua criatura, então através disso, é pretendido que a virtude, ou a felicidade
da criatura, absoluta ou simplesmente considerada, está de acordo com a
inclinação da sua natureza. Sua vontade de decreto é sua inclinação para uma
coisa, não tal para coisa absoluta e simplesmente, mas com respeito à
universalidade das coisas que foram, são ou serão.
Assim, Deus, embora odeie uma
coisa como ela é simplesmente, poder inclinar-se para ela com referência à
universalidade das coisas. Embora ele odeie o pecado em si, todavia, ele pode
permiti-lo, para a maior promoção de sua santidade nessa universalidade,
incluindo todas as coisas, em todos os tempos. Assim, embora ele não tenha
nenhuma inclinação para a miséria da criatura, considerada absolutamente,
todavia, ele pode desejá-la, para a maior promoção de felicidade nessa
universalidade. Deus se inclina para excelência, que é harmonia, mas, todavia,
ele pode se inclinar para o sofrimento que não é harmonioso em si, para
promoção da harmonia universal, ou para a promoção da harmonia que há na
universalidade, e fazê-la brilhar com mais intensidade (Misc., 527-28).
Novamente,
ele insiste que:
Não há
inconsistência ou contrariedade entre a vontade decretiva e preceptiva de Deus.
É bastante consistente supor que Deus possa odiar a coisa em si, e, todavia,
desejar que ela aconteça. Sim, eu não receio em afirmar que a coisa em si possa
ser contrária à vontade de Deus, e ainda que possa ser agradável que sua
vontade venha a acontecer em outro caso. Supor que Deus tem vontades contrárias
para com o mesmo objeto, é uma contradição; mas não o é quando se supõe que ele
tenha vontades contrárias sobre diferentes objetos. A coisa em si, e que a
coisa que deva acontecer, são diferentes, como é evidente; porque é possível
que uma possa ser boa e o outra possa ser má. A coisa em si pode ser má, e
ainda pode ser bom que ela aconteça. Pode ser bom que uma coisa má aconteça; e
frequentemente, muito certamente e inegavelmente, é isso o que acontece, e
provado está. (Misc., 542-43)
Traduzido
por: Marcos Medeiros
Agradecemos
ao tradutor, que gentilmente se dispôs a traduzir esse artigo para o site
Monergismo.com.
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