Muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros - Álvaro César Pestana
No mundo é costume dizer que os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres; os primeiros serão sempre os primeiros e os últimos continuarão sendo sempre os últimos. Jesus foi aquele que mudou esta idéia em teoria e prática, no sonho e na realidade. Jesus afirmou: “Muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros.” Jesus propõe uma inversão completa da realidade. Às coisas, no final, não serão como parecem ser na atualidade; o futuro reserva grandes surpresas.
Promessa, advertência e ameaça
Este provérbio de Jesus, assim como muitos outros provérbios bíblicos e populares, é constituído por um par de sentenças que se contrapõem, ou seja. temos aqui um caso de paralelismo antitético onde uma linha do provérbio tem uma idéia contrária à afirmação do outro. O assim chamado paralelismo antitético era uma das formas prediletas de Jesus se expressar. Quando usava esta linguagem, geralmente queria dar ênfase à segunda parte do provérbio.
Jesus usou o provérbio sobre os primeiros e os últimos nas seguintes formas: "Muitos primeiros serão últimos; e os últimos. primeiros" em Marcos 10.31 e Mateus 19.30; "Os últimos serão os primeiros: e os primeiros serão últimos" em Mateus 20.16 e Lucas 13.30. Sabendo que a ênfase está na segunda parte do provérbio, e também levando em conta os contextos de cada versículo, chegaremos à seguinte conclusão: estes provérbios contémpromessa, advertência e ameaça.
Uma promessa maravilhosa
Um moço rico, influente e religioso deveria ser um verdadeiro símbolo de sucesso. Mas, quando este moço virou as costas a Jesus, transformou-se num verdadeiro fracasso. Era "mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus." É a formulação de uma impossibilidade (Marcos 10.17-25).
Diante de tal afirmação os discípulos reagiram bruscamente. De acordo com os conceitos do judaísmo, prosperidade e riqueza eram sinais da aprovação divina; ser rico equivalia a ser salvo. Os discípulos questionavam: "Se este homem rico (abençoado) não está salvo. quem estará?" Jesus não se ocupou em negar este conceito, mas mostrou que a salvação é dom de Deus, e portanto, impossível aos homens (Marcos 10.26-27).
Foi então que Pedro lembrou-se de que os doze abandonaram tudo para seguir Jesus: que seria deles? A resposta do Mestre foi: "Vocês vão receber muito mais agora e no porvir. Certamente haverá perseguição, mas sua escolha foi a melhor" (Marcos 10.28-30).
O ponto alto deste ensino foi apresentado com o provérbio: "Muitos primeiros serão últimos e os últimos, primeiros." O moço rico que rejeitou Jesus era contado entre os primeiros perante a sociedade judaica daqueles dias; ele seria um dos últimos no juízo final, pois rejeitou a salvação. Por outro lado os discípulos de Jesus, pescadores iletrados e gente da "ralé", que eram considerados os últimos perante o mundo, estes sim, é que seriam os primeiros perante o Deus Altíssimo (Marcos 10.31). Que bela promessa!
Há inúmeros exemplos bíblicos desta forma de Deus agir para com os homens. Raabe, uma prostituta, a última pessoa em dignidade na cidade de Jerico, por causa de sua fé atuante, tornou-se não somente a única a ser salva, com sua família (Josué 2.1; 6.22-25), mas também acabou se tornando a tataravó do rei Davi e uma das ascendentes do próprio Jesus Cristo (Mateus 1.5-6)! Pela fé, a última tornou-se a primeira. Gideão, o último dos últimos veio a ser o primeiro em seu tempo, em sua submissão à ação divina (Juizes 6.15). O caso do próprio Davi também ilustra esta norma divina, Ele era o último filho de Jessé, e provavelmente menos vistoso que seu irmão mais velho, Eliabe, mas foi ele o escolhido para ser o primeiro, não só em sua família, mas em todo Israel (1 Samuel 16.1-13).
UMA ADVERTÊNCIA CONTRA A MESQUINHEZ
Quando Mateus registrou o mesmo evento, adicionou detalhes omitidos por Marcos. As principais adições são: a promessa dos tronos de glória (Mateus 19.28) e a parábola dos trabalhadores da vinha (Mateus 20.1-16). Por causa destas adições, vamos notar que em Mateus o provérbio citado tem conotação de advertência. A parábola dos trabalhadores da vinha é a que mais contribui para esta entonação do provérbio. A parábola dos trabalhadores da vinha é iniciada (Mateus 19.30) e concluída (Mateus 20.16) com esta declaração proverbial de Jesus. Este recurso de iniciar e terminar um ensino com uma mesma frase chama-se "inclusão". Assim, uma mesma frase inicia e termina um assunto fazendo uma espécie de "sanduíche":
PROVÉRBIO
PARÁBOLA
PROVÉRBIO
A forma dos provérbios varia um pouco no princípio e no fim da parábola, preservando uma estrutura do tipo ABBA, onde no centro temos os últimos tornando-se os primeiros e no início e no fim a idéia dos primeiros tornando-se os últimos:
A "Muitos primeiros serão últimos;
B e os últimos, primeiros." (Mateus 19.30)
B “Os Últimos serão os primeiros:
A e os primeiros serão últimos.” (Mateus 20.16)
Este modo artístico de construir o texto e deixar todos os temas ligados entre si faz com que possamos apreciar a parábola dos lavradores da vinha em ligação com o discurso de Jesus para seus discípulos dando resposta às indagações de Pedro.
A moderna divisão de capítulos e versículos ocasionalmente dá a impressão de que a parábola dos trabalhadores da vinha nada tem a ver com o assunto iniciado na conversa com o jovem rico. Este é um engano comum. Na verdade, a parábola dos trabalhadores da vinha faz parte da resposta que Jesus deu a Pedro (aos doze) sobre o que eles receberiam por terem deixado tudo para segui-lo como Mestre.
Jesus provavelmente percebeu em Pedro uma atitude mercenária e interesseira. Pedro estaria cobrando de Jesus pelos sacrifícios a favor do reino. A parábola dos trabalhadores é remédio contra corações mercenários. Fala de um fazendeiro que contratou um grupo de homens para colher suas uvas, prometendo uma moeda por dia de trabalho. Mais tarde, naquele mesmo dia, contratou outros homens, mas em horários tais em que eles não conseguiriam dar o mesmo número de horas de trabalho que os primeiros. No fim do dia pagou a mesma quantia para todos (uma moeda). Os que tinham trabalhado às doze horas reclamaram do dono dizendo: “Não é justo que eles recebam o mesmo que nós.” Eles queriam mais. Quando o fazendeiro soube da crítica, respondeu a um dos queixosos: “Fique contente por receber o que é justo! Foi o que combinamos. Quanto aos outros, com os quais estou sendo bondoso, deixe-os em paz, pois minha bondade para com eles não deve gerar rancor ou inveja em você.” A atitude interesseira daqueles trabalhadores não os deixava apreciar a bondade do fazendeiro. Eram mercenários, pois só pensavam em ganhar o máximo possível com o que faziam.
Assim também Pedro é advertido a não ficar cobrando de Deus pelos sacrifícios feitos, pois em última instância, é a bondade de Deus que transforma os últimos em primeiros, e é o espírito mesquinho que faz com que muitos se sintam os últimos. No fim das contas, Deus é quem salva pela sua bondade; não há razão para cobrança.
A compreensão correta desta parábola não precisa levar em conta a expressão entre colchetes no verso 16. O provérbio “porque muitos são chamados mas poucos escolhidos” não pertence a este discurso, mas foi adicionado neste ponto copiado de Mateus 22.14.
Uma ameaça aos descuidados
Lucas registra outro uso deste aforismo. No caminho para Jerusalém, Jesus é questionado sobre o número dos salvos. Ele não responde diretamente a questão, mas passa a incentivar todos para que se incluam no número dos salvos. A resposta não é quantitativa, mas qualitativa. No fim ele anuncia, profeticamente, que muitos dos que deviam ser salvos (os primeiros) acabariam sendo os perdidos (os últimos); ou seja, muitos judeus que deveriam aceitar o Cristo e ser redimidos, não iriam fazê-lo, e se perderiam. Por outro lado, muitos dos gentios (os últimos) seriam salvos (os primeiros). Assim, a afirmação de Jesus neste contexto é uma ameaça para os judeus e para os discípulos. “Há últimos que virão a ser primeiros, e primeiros que serão último” (Lucas 13.22-30). A ênfase fica sobre a ameaça final: ''...primeiros sendo últimos"!
Saul, o primeiro rei de Israel é um triste caso de um dos primeiros tornando-se último. Aquela disposição inicial de fazer a vontade de Deus, uma vez rejeitada, fez com que sua vida e seu fim se tornassem miseráveis. 0 próprio rei Salomão, que foi o primeiro em grandeza na sua época, ao fim da vida, velho, tornou-se infiel ao Senhor. Este provérbio deve nos ensinar que o descuido e o desleixo espirituais levam à ruína.
APLICAÇÃO
Observemos ao menos três aplicações deste provérbio de Jesus:
1. Acontecerá uma inversão. Não confie na aparência deste mundo. Confie em Deus. O sucesso verdadeiro vem dele. O dia do juízo final será um dia de grandes surpresas. Negue a si mesmo e aos impulsos mundanos: siga Jesus. As bem-aventuranças e os ais de Lucas 6.20-26 exemplificam muito bem esta inversão de que Jesus fala neste aforismo. Como é que os pobres, os famintos, os que choram e os odiados podem ser considerados felizes? A resposta está no fato que eles serão herdeiros do reino de Deus, serão fartos, virão a rir e receberão o mesmo galardão dos homens de Deus dos tempos antigos. Os últimos tornar-se-ão os primeiros. Que perigo há na riqueza, fartura, riso e louvor popular? O fato é que ter estas coisas dá ao indivíduo um falso sentido de consolação e segurança que o afasta de Jesus. Então, no porvir, os ricos ficarão sem consolo, famintos, chorando e terão o destino dos falsos profetas. Os primeiros deste mundo serão os últimos. Esta inversão já estava acontecendo no tempo de Jesus. Os religiosos, que teoricamente estavam mais preparados para submeter-se ao plano de Deus (os primeiros), estavam rejeitando esse plano; mas os pecadores, os publicanos desonestos e as prostitutas (os últimos) estavam se arrependendo e se convertendo a Cristo — estavam se tornando os primeiros na salvação e no reino (Mateus 21.28-32). Mesmo sendo os últimos, podemos ser os primeiros, pela graça de Deus.
2. Não sejamos mercenários em busca de recompensa, indo para o último lugar só para poder cobrar um lugar como o primeiro (Lucas 14.11-14). Cristo adverte contra a "soberba de ser humilde". Somente Deus é bom e a nossa salvação sempre será pela sua graça. Não se pode confiar em si mesmo e nem em uma aparente situação de honra: afinal, Judas era um dos doze apóstolos e Saulo não. Só podemos confiar em Deus e na graça dele.
3. Privilégio gera responsabilidade. Oportunidades de primeira exigem uma resposta obediente. Caso contrário, a bênção torna-se castigo e o primeiro torna-se último. A parábola sobre o demônio expulso que retorna ao "lar" com sete outros demônios (Mateus 12.43-45) ilustra o perigo de não aproveitarmos a oportunidade do evangelho (Mateus 12.38-42). Os que deviam ser os primeiros salvos, tornam-se os últimos, pessoas perdidas. A parábola do rico e Lázaro é uma ilustração deste princípio (Lucas 16.19-31). O rico, o primeiro neste mundo, tornou-se o último no além. Lázaro, que era o último nesta vida, recebeu a bênção no porvir. Esta inversão não ocorreu em decorrência de suas condições sócio-econômicas, mas conforme se observa no fim da parábola: ocorreu devido à obediência (Lázaro) ou desobediência (rico) às Escrituras.
Fonte: Provérbios de Jesus - Álvaro César Pestana
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