terça-feira, 28 de maio de 2013

Conhecimento médio - Parte 3/3



Fontes de explanação.

XV. 1 Samuel 23.11,12 não pode favorecer esse conhecimento intermediário, porque não é tanto uma predição de coisas futuras que são ainda uma futurição (como uma revelação de coisas que então existiam, ainda que secretas, a saber, dos planos discutidos entre os homens de Queila sobre a entrega de Davi caso ele permanecesse ali). Pois quando Davi ficou em dúvida sobre o desígnio de Saul e a intenção dos homens de Queila em relação a ele, e por isso inqueriu do Senhor se Saul estava para descer contra os homens de Queila e se o entregariam nas mãos de Saul (caso ele ficasse entre eles), Deus respondeu que Davi devia esquivar-se e fugir de sua fúria, e que Saul desceria e os homens de Queila o entregariam (caso permanecesse ali), porque de fato tanto Saul se cingiu para a jornada como os homens de Queila estavam mesmo planejando secretamente entregar-lhe Davi. "Pois eles te entregarão", isto é, pretendem agir assim como reza o comentário interlinear. Então as palavras "descer" e "entregar" não se referem ao ato em si como hipoteticamente futuro, mas (como amiúde em outros lugares) expressam o propósito e a intenção, isto é, ter em mente agir assim (como At 12.6 e 16.27).

XVI. As palavras de Cristo: "Porque, se em Tiro e em Sidom se tivesse operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam arrependido com pano de saco e cinza" (Mateus 11.21), não devem restringir-se à letra como se referindo a algo que, numa certa condição, seria determinantemente futuro. Pois é um tipo de linguagem hiperbólica e proverbial, em que Cristo (por uma comparação odiosa para os judeus) deseja exagerar a contumácia e a rebelião de suas cidades (as quais se tornaram ilustres por seus milagres), as quais, como aquele que sonda os corações (kardiognostes), ele bem sabia que eram maiores e mais obstinadas que a perversidade dos habitantes de Tiro e Sidom. E assim Cristo não fala da presciência de coisas condicionais futuras, mas deseja, pelo uso de uma hipérbole, repreender os judeus por sua ingratidão e impenitência mais graves que as do tírios e sidônios; como se um mestre (dirigindo-se a um estudante moroso e obtuso) dissesse: se eu tivesse instruído um asno por tanto tempo, ele teria aprendido; ou um juiz inexorável: se eu tivesse batido nas rochas e nas pedras por tanto tempo, certamente as teria quebrados; não temos em mente nem que as rochas amoleçam nem que um asno aprenda, mas apenas que a morosidade do estudante e a dureza do juiz são extremas. No mesmo tom, Cristo diz: "Se estes se calarem, as pedras clamarão" (Lc 19.40); não que as pedras possam clamar, mas para mostrar que sua pessoa, doutrina e obras eram tão claras e indubitáveis que era impossível que continuassem ocultas. Há uma passagem semelhante em Ezequiel 3.6: "Não és enviado... a muitos povos de entranho falar e língua difícil, cujas palavras não possas entender; se eu aos tais te enviasse, certamente te dariam ouvidos".

XVII. Em 2 Samuel 12.8 o profeta enumera as bençãos de Deus derramadas sobre o ingrato Davi, às quais teria adicionado maiores ainda que se Davi continuasse na obediência (não com base em algum decreto condicional ou no conhecimento intermediário, mas em conformidade com a promessa feita aos piedosos). Assim no Salmo 81.14,15 temos uma promessa condicional com uma reprovação contra a ingratidão, porém nada lemos concernente à presciência de uma coisa condicional futura antes do decreto. No mesmo teor se devem entender as palavras de Eliseu a Joás: "Cinco ou seis vezes a deverias ter ferido; então, feririas os siros até os consumir; agora, porém, só três vezes ferirás os siros" (2Rs 13.19); não que ele tivesse disso conhecimento intermediário, mas porque o profeta inferiu isso pessoalmente de uma revelação divina feita indefinidamente. 

XVIII. Uma coisa é Deus prever ou conhecer a conexão de uma coisa com a outra (por exemplo, do pecado com a morte e da justiça com a vida); outra é conhecer a conexão como futura num tal objeto posto neste ou naquele estado. Isso requer que algum decreto determine o que deve fazer com esse objeto; mas o primeiro caso pode fundamentar-se somente na possibilidade e no hábito mútuo das coisas. 

XIX. Uma coisa é Deus conhecer as conexões de todas as coisas como necessárias e as causas das coisas a se concretizarem por meio delas antecipadamente ao decreto; outra é conhecer as conexões contingentes de eventos e de todas as coisas possivelmente futuras. Se a primeira fosse admitida, favoreceria o conhecimento intermediário, porém é falso que Deus conheça as conexões de todas as coisas como necessárias e para produzir infalivelmente a concretização das coisas (especialmente em atos livres) antecedentemente ao decreto do qual depende a futurição das coisas. A segunda, porém, a qual admitimos, não aprova o conhecimento intermediário, porque conexões contingentes desse gênero só pertencem ao conhecimento natural quando considerado antecedentemente ao decreto, determinando a futurição certa de suas conexões ou de seus meios.

XX. O que se concebe como provindo determinantemente de Deus também pode ser pronunciado como determinante; mas o que se concebe como possivelmente provindo dele, só pode ser pronunciado como possível. Ora, nega-se que a coexistência de um ato livre hipoteticamente possa ser concebida como determinante e antecedente ao decreto; admiti-se que seja possível. Assim é verdade que Pedro possivelmente pecaria se posto numa dada ordem de coisas antecedendo ao decreto; mas não determinantemente tornaria verdadeiro que Pedro realmente e de fato pecaria se posto nessa ordem das coisas. Isso não poderia ser certo, a não ser em decorrência de um decreto permissivo de Deus.

XXI. Necessidade e contingência têm uma relação diferente em termos simples da que têm em termos complexos. No primeiro caso, a existência é dividida em necessária e contingente, e necessidade e contingência não podem pertencer ao mesmo modo; mas, no segundo (visto que elas surgem de hábitos ou de relação diversa de causas a seus efeitos), até aqui coincidem em que, o que com respeito à causa primária é necessário, com respeito à causa secundária pode ser contingente, desde que a causa primária assim o disponha. Isso não só garante a existência da coisa, mas, à sua própria maneira, que ela é algo necessariamente necessário, contingentemente contingente. Não obstante, essa necessidade da causa primária não elimina a liberdade do livre arbítrio, porque não é uma necessidade de coação, mas de consequência ou infalibilidade, que concorre melhor com a liberdade. 

XXII. Embora Deus, anteriormente ao seu decreto, tivesse conhecimento dos vários meios que podem ser utilizados para mover a vontade (que este ou aquele pode ter uma maior influência do que outros, se empregados), não poderia saber se realmente persuadiriam antecipadamente a vontade a fornecer esses meios e a mover eficazmente a vontade a produzir o efeito. Tampouco tem alguma força a ilustração extraída do fogo, o qual Deus sabe que possui a propriedade de produzir calor, anteriormente à vontade de criar o fogo que realmente produzirá calor. Pois a razão pela qual os agentes naturais se determinam, por sua natureza, uma coisa é diferente da dos agentes livres, os quais podem ser inclinados a uma ou a outra coisa oposta. 

XXIII. A causa da existência das coisas difere da causa de sua futurição. As causas secundárias podem concorrer com Deus para produzir a existência das coisas, porque elas existem e são ativas ao mesmo tempo com Deus. Mas nenhuma causa secundária pode concorrer com ele para produzir a futurição das coisas, porque a futurição foi feita desde a eternidade, ao passo que todas as causas secundárias só existem no tempo. Daí ser evidente que a futurição das coisas de nada depende senão ao decreto de Deus, e por isso só podem ser conhecidas de antemão com base no decreto. 

Fonte: Turretini, François. Compêndio de teologia apologética: vol 1, 3º tópico, 13º pergunta, pags 293-295. Ed. CEP.

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