por Augustus Nicodemus Lopes
Introdução
A Reforma Protestante ocorrida no século XVI não foi somente um movimento espiritual e eclesiástico. Teve também aspectos e dimensões políticas e sociais. Este último aspecto é o tema deste ensaio. Embora João Calvino, um dos maiores líderes da Reforma, ficou conhecido pelo seu vasto e eficaz ministério como teólogo, pregador e pastor, existe um outro aspecto do seu ministério, menos enfatizado entre as igrejas evangélicas no Brasil, que precisa ser resgatado em nossos dias, que é o aspecto social do seu ensino e prática pastoral.
Calvino, bem como os outros reformadores, deu atenção aos problemas sociais de sua época. Talvez pelo fato de ser da segunda geração de reformadores, Calvino podia ter uma visão mais ampla e amadurecida sobre o assunto. Ele esforçou-se para entender qual deveria ser o papel da Igreja cristã na reconstrução de uma sociedade justa que refletisse a vontade de Deus em termos de justiça social. Essa questão (que era essencialmente teológica) era extremamente aguda para os reformadores, particularmente pelo fato de viverem numa época e numa situação de grandes problemas sociais. Não é de se admirar que em suas Institutas da Religião Cristã, bem como em seus comentários (onde apropriado) Calvino freqüentemente trata de questões relacionadas com a responsabilidade social da Igreja e do Estado.
Meu propósito é procurar entender e expor de forma breve qual é a responsabilidade social da Igreja segundo João Calvino. Evidentemente, este ensaio não tem pretensões de originalidade. O assunto, por sua importância, já mereceu pesquisas bem extensas e cuidadosas, como a do francês André Biéler, publicada em português como O Pensamento Econômico e Social de Calvino (Casa Editora Presbiteriana, 1990). As informações históricas da pesquisa de Biéler servem de base para nossa reconstrução histórica no presente ensaio.
Devo começar com duas considerações importantes. Primeira, ao abordarmos o nosso assunto não devemos dissociar o pensamento social de Calvino da sua teologia. Calvino era acima de tudo um teólogo, um homem da Igreja. Ele não era um político, nem ativista social, mas essencialmente um pastor e um estudiosos das Escrituras. Seu pensamento social desenvolveu-se dentro da estrutura de seus pressupostos teológicos e bíblicos. Calvino construiu a sua teologia social a partir da sua convicção de que Cristo é Senhor de todos os aspectos da vida humana, e de que a Palavra de Deus deve regular todas as áreas da vida. Por esquecerem este ponto, alguns acabam representando erroneamente as idéias sociais de Calvino, bem como os motivos que levaram o Reformador a se envolver com atividade social na sua época.
A segunda consideração é que não devemos dissociar o pensamento social de Calvino da época em que ele viveu. Embora sua teologia social brotasse de princípios bíblicos válidos e atuais para todas as épocas, Calvino só poderia dar-lhes expressão dentro das circunstâncias históricas em que viveu e labutou. Naquela época, a Igreja Católica Romana era o grande poder econômico e político. Prevalecia naquela época o sistema econômico e social medieval e a monarquia como sistema de governo. Seria injusto requerer de Calvino uma abstração perfeita do seu contexto social, político e econômico, ao ponto de antecipar a democracia, a formação de sindicatos, ou soluções completas para questões como a escravidão (embora ele mesmo tenha se pronunciado contrário à escravidão, e ensinado que a legislação acerca da escravidão na Bíblia limita, não justifica, este flagelo). Mesmo assim, veremos que Calvino é extraordinariamente atual em quase tudo que formulou nesta área.
Genebra na Época de Calvino
A cidade de Genebra foi o local onde Calvino passou a maior parte de sua vida, pregando, pastoreando e ensinando. Ali passou momentos de grande popularidade e também de rejeição. Foi ali que sua teologia social amadureceu, à medida em que enfrentava os males sociais que oprimiam Genebra bem como as demais cidades da Europa medieval.
O Governo de Genebra
Genebra, antes da Reforma e da chegada de Calvino, era um bispado, uma importante cidade. Seu comando estava nas mãos de três autoridades: O bispo, que era não somente o chefe espiritual da Igreja, o “príncipe de Genebra”, como teoricamente, era o soberano da cidade, com poderes para cunhar moedas, comandar a cidade em tempo de guerra, julgar apelações, e perdoar crimes. Depois vinha o magistrado, incumbido da defesa da cidade, da guarda, e da execução de prisioneiros. E por fim, o Conselho de Genebra, composto de Conselheiros de entre os moradores da cidade, que julgavam as questões criminais concernentes aos leigos (os pecados dos sacerdotes era competência do bispo), cuidavam do abastecimento da cidade, das finanças da cidade, e mantinham a boa ordem durante a noite através da polícia. Este era o sistema adotado pela maioria das cidades européias católicas.
Quando Genebra adotou oficialmente a Reforma (1536), o bispo foi despojado do seu poder, e os Conselheiros assumiram suas funções. Durante o período de bispado em Genebra, a Igreja Católica representada pelo bispo estivera acima do Estado. Com a expulsão do bispo, o Conselho assumiu suas funções, e agora o Estado estava acima da Igreja (agora Reformada). A Igreja permanecia ligada ao Estado, e estava debaixo do poder do Conselho de Genebra (cujos Conselheiros agora eram protestantes), que tinha em suas mãos o poder de disciplinar, designar os pastores, bem como a função de sustentá-los financeiramente.
A Situação Social em Genebra
Graves problemas sociais afligiam Genebra naquela época (bem como a Europa em geral). Havia pobreza extrema, agravada por impostos pesados. Os trabalhadores eram oprimidos por baixos salários e jornadas extensas de trabalho. Campeava o analfabetismo, e a ignorância; havia aguda falta de assistência social por parte do Estado; prevalecia a embriagues e a prostituição. Destacava-se o vício do jogo de cartas, que levava o pouco dinheiro do povo. As trevas espirituais características da Idade Média refletiam-se nas condições morais e sociais das massas. Essa era a situação que prevalecia em Genebra antes da chegada da Reforma espiritual, a qual deu lugar, em seguida, a reformas sociais, econômicas e políticas, mesmo antes de Calvino chegar à Genebra.
As Mudanças Introduzidas por Farel em Genebra
Guilherme Farel foi o grande líder destas mudanças em Genebra. Sob sua influência, o Conselho da cidade cria o Hospital Geral no antigo Convento de Santa Clara, para dar atendimento médico aos pobres.
O Conselho também passou a regulamentar a vida dos seus cidadãos: proíbem-se as danças de ruas, a polícia é mobilizada para manter a ordem nas ruas, são promulgadas leis que regulamentam o uso dos bares, que proíbem jogo de cartas, blasfemar o nome de Deus, e servir bebidas durante o horário do sermão. Torna-se proibido vender pão e vinho a preços acima dos estipulados; são proibidos todos os dias santos, à exceção do domingo. Passa a ser obrigatório a todos os cidadãos de Genebra irem ouvir o sermão de domingo, sob pena de pesadas multas. E a instrução pública se torna obrigatória, pela primeira vez na Europa.
Evidentemente, nem todos em Genebra estavam satisfeitos com as pesadas proibições impostas pelos Conselheiros, que por sua vez, seguiam a Farel. Embora as intenções fossem as melhores possíveis, sabemos que leis por demais severas, que excedem os limites do razoável, provocam insatisfação, mesmo entre crentes verdadeiros. Isso sem mencionarmos que pessoas não regeneradas pelo Espírito Santo rejeitam e se revoltam contra leis que refletem o caráter santo de Deus. “A carne não está sujeita à lei de Deus, e na verdade, nem pode estar” (Romanos 8.7).
Foi a esta altura que Calvino chegou a Genebra. Ele estava apenas de passagem pela cidade. Seus planos eram de prosseguir em frente e achar um local tranqüilo onde pudesse estudar e escrever. Tinha na época 27 anos de idade, e havia acabado de publicar a primeira edição das Institutas. Quando Farel soube que Calvino estava na cidade foi visitá-lo, e instou com o jovem teólogo a que ficasse ali em Genebra, para ajudá-lo no trabalho de reforma. É conhecida a história de como Calvino, após ter apresentado toda sorte de desculpas, finalmente rendeu-se, aterrorizado pela maldição que o velho reformador invocou sobre ele, em caso de recusa. Assim, ele ficou, para ajudar Farel a solidificar as reformas eclesiásticas e sociais em Genebra. Em breve, Genebra iria tornar-se o centro espiritual e social da Reforma protestante na Europa.
Foi ali em Genebra, trabalhando como pregador, mestre e pastor na Igreja de Genebra, e lidando com as questões sociais mencionadas acima, que Calvino desenvolveu sua teologia social. No que se segue, procuraremos sintetizar seus pontos principais, concentrando-nos no que Calvino ensinou como sendo a responsabilidade social da Igreja de Cristo.
O Ensino de Calvino
A causa dos males sociais
Fundamental para entendermos o pensamento de Calvino nesta área é termos em mente que para ele as causas da pobreza, miséria e a opressão, bem como da perversão e da corrupção da sociedade humana, estavam enraizadas na natureza decaída do homem, que por sua vez, remonta-se à Queda no Éden. Este princípio é crucial no entendimento de Calvino. Para ele, o pecado do homem havia trazido toda sorte de transtorno à ordem social: Pela queda do homem foi demolida toda ordem social, e em Adão tudo foi amaldiçoado por Deus, como está escrito em Romanos 8.20-23, onde Paulo afirma que a criação de Deus está em cativeiro imposto pelo pecado do homem.
A queda do homem introduziu perturbações profundas na sociedade humana, incluindo distúrbios na vida conjugal e familiar. Para Calvino, o caos econômico é causado pela ganância dos homens, e pela incredulidade de que Deus haverá de nos suprir as necessidades básicas, conforme Cristo nos promete em Mateus 6.
Calvino denuncia neste contexto pecados sociais como: estocagem de alimentos (trigo), monopólios, e a especulação financeira, como tendo origem no egoísmo e na avareza do homem. Ele denunciava aqueles que preferiam deixar deteriorar-se o trigo em seus celeiros, para que ali fosse devorado por bichos, e apodrecesse, ao invés de ser vendido, quando a necessidade do povo se fazia sentir.
Por identificar biblicamente a raiz dos transtornos sociais, Calvino estava em posição de elaborar uma solução que atingisse o problema em seus fundamentos.
O Senhorio de Cristo
Um segundo princípio que norteava a teologia social de Calvino era que o Cristo vivo e exaltado é Senhor de todo o universo. Os milagres que Ele exerceu sobre a ordem natural (acalmar a tempestade, por exemplo; ou tirar uma moeda da boca do peixe) demonstram esta realidade, diz Calvino.
Portanto, a obra de restauração realizada por Cristo não se limita apenas à nova vida dada ao indivíduo, mas abrange a restauração de todo o universo – o que inclui a ordem social e econômica. Desta forma, a atenção de Calvino como pastor e mestre, se estendeu para além das questões individuais e “espirituais”. Se Cristo era o Senhor de toda a existência humana, era dever da Igreja dar atenção às questões sociais e políticas.
A Restauração da Sociedade
Para Calvino, a restauração inaugurada por Cristo ocorre inicialmente no seio da Igreja. É na Igreja que a ordem primitiva da sociedade, tal qual Deus havia estabelecido, tende a ser restaurada. Na Igreja, as diferenças exacerbadas entre as classes sociais, econômicas e raciais, bem como os preconceitos delas procedentes, desaparecem, pois Cristo de todos faz um único povo (Gl 3.28; Ef 2.14).
Não que Calvino cresse na total abolição destas classes. Ele concebia a coexistência harmônica entre a Igreja e instituições como o Estado, a sociedade e a família, com as suas respectivas estruturas e funcionamento. É na Igreja, porém, que as relações sociais de trabalho sofrem profundas alterações, ensina o reformador. Os patrões continuam patrões, mas aprendem a exercer sua autoridade sem opressão, ao passo que os empregados (que continuam empregados) aprendem a serem subordinados sem recriminação. Na Igreja, diz Calvino, Jesus Cristo estabelece entre os cristãos a justa redistribuição dos bens destinados a todos. Isto se dava através da atividade diaconal, trazendo alívio para as necessidades dos pobres e oprimidos, com recursos vindos dos ricos e abastados.
Devemos nos lembrar aqui que na época de Calvino todos os cidadãos de Genebra faziam parte da Igreja, e haviam, pelo menos teoricamente, abraçado o Evangelho. Evidentemente que Calvino fazia distinção entre os verdadeiros cristãos e os hipócritas. Mas em tese a Igreja em Genebra era tão extensa quanto os limites da cidade e o número de seus cidadãos. Quando Calvino falava em restauração social, ele tinha em mente uma sociedade civil governada por cristãos reformados, que aplicassem os princípios bíblicos às questões sociais, políticas e econômicas. Ou seja, um Estado que fosse orientado pela Igreja no exercício de suas funções.
É também importante notar que para Calvino a reforma da sociedade não é completa nem perfeita, visto que os efeitos do pecado não são de todo eliminados na presente época. É uma restauração parcial, portanto. Ela não consegue estabelecer plenamente a justiça no mundo presente. Ao mesmo tempo, ela não abole determinados aspectos da ordem social: permanece a hierarquia determinada por Deus entre o homem e a mulher, o patrão e o empregado, os pais e seus filhos.
A plena abolição dos distúrbios agora presentes da ordem social (as injustiças, a opressão, a corrupção, por exemplo) só se efetuará plenamente no Reino de Deus, no fim dos tempos, para o qual marcha toda a história dos homens e do universo. Sua vinda será precedida por convulsões cósmicas. Então, Jesus Cristo regressará em glória, e o príncipe deste mundo será aniquilado. Assim, será então estabelecido o novo céu e a nova terra, onde habitam plenamente a justiça (2 Pe 3.13; cf. Is 65.17; 66.22; Ap 21.1).
Dessa forma, para Calvino, a Igreja é uma antecipação do reino de justiça a ser introduzido por Cristo em sua vinda. Como tal, ela funciona no presente como uma sociedade provisória, governada pelas leis de Cristo. Embora já refletindo estes ideais, a Igreja ainda não o faz de forma perfeita, o que ocorrerá apenas no fim dos tempos.
A Responsabilidade Social da Igreja
Quais as responsabilidades da Igreja nesta restauração provisória da sociedade? Podemos resumir o ensino de Calvino em três aspecto fundamentais. Segundo ele, a Igreja tinha um ministério didático, um político, e um social.
Ministério Didático
Esse ministério da Igreja era para ser exercido através dos seus pastores e mestres. Consistia na instrução pública e particular, através de sermões e orientação individual, quanto ao ensino bíblico sobre a administração dos bens outorgados por Deus ao Estado e ao indivíduo. Em outras palavras, Mordomia Cristã.
Tomemos como exemplo a questão do trabalho e descanso. De acordo com Calvino, a Igreja deveria através do ministério regular de seus pastores instruir seus membros no ensino das Escrituras sobre o assunto. Em suas Institutas Calvino escreveu o que possivelmente foi o seu ensino em Genebra sobre o trabalho: só Deus alimenta o homem – dele vem as forças e as condições para que o homem trabalhe, e com seu suor, compre seu pão. O trabalho, portanto, é algo eminentemente digno pois é a realização da vontade de Deus para o homem. Assim, o homem não se realiza plenamente, senão no trabalho, pois foi para isto que foi criado e vocacionado, conforme está escrito em Gênesis 1 e 2. O pecado tirou a alegria e a graça que acompanhava o trabalho no início. A queda introduziu no mundo e na sociedade humana os distúrbios sociais relacionados com o trabalho (Gênesis 3). Mas, em Cristo o homem reencontra a alegria e o gosto do labor.
Quanto ao descanso, Calvino insistia que era necessário proporcionar aos trabalhadores um dia de descanso, o sábado cristão, que é o domingo, conforme sua interpretação do quarto mandamento (Êxodo 20.8-11). O descanso físico, porém, está intimamente ligado ao espiritual – sem Cristo, não há descanso verdadeiro no domingo. Assim, Calvino via a profanação do domingo como a origem da corrupção do trabalho. Segundo ele, é necessário cessarmos dos nossos labores, como Deus cessou dos dele (He 4.3). Assim, conforme Farel já havia orientado, o Conselho de Genebra, debaixo da influência de Calvino, aboliu todos os feriados católicos e determinou que no domingo cessasse todo labor em Genebra.
Através do púlpito, exercendo o seu ministério didático, a Igreja então levantava o ânimo moral do trabalhador assegurando-lhe que mesmo os trabalhos mais humildes são honrados por Deus, e que Deus assim determinou que pelo trabalho o homem encontrasse sua vocação na vida. E que em Cristo, o trabalhador encontraria a alegria e a satisfação que deveriam acompanhar o labor diário.
Havia um outro aspecto do ministério didático da Igreja que consistia em repreender, através das pregações, os membros que estivessem incorrendo em pecados sociais. Assim, os pastores de Genebra, orientados por Calvino, denunciavam do púlpito a prática da cobrança de juros excessivos por parte dos agiotas. Da mesma forma denunciavam a vadiagem. Vadiagem e parasitagem é pecado, ensinava Calvino. Para ele, quando Deus criou o homem e o ordenou cultivar a terra, condenou com este gesto a ociosidade e a indolência. Não há nada mais oposto à ordem da própria natureza do que consagrar a vida à beber, comer, e dormir, sem indagar sobre o que fazer (Sl 128.3; 2 Ts 3.10-12).
Calvino também falava contra o desemprego causado pela ganância dos ricos. Privar um homem do seu trabalho é pecado contra Deus – pois trabalho é dom de Deus, e o dever que ordenou ao homem, ensinava Calvino. É tirar-lhe a vida – pois os trabalhadores pobres dependem dia a dia do seu labor para o pão com se sustentam e às suas famílias – ao contrário dos ricos, que têm propriedades, reservas, etc. Assim, promover o desemprego , na opinião de Calvino, seria um atentado à vida do pobre, e portanto, um pecado contra o mandamento “Não matarás”.
Esse era o primeiro aspecto da responsabilidade social da Igreja no pensamento de Calvino, ou seja, instruir seus membros, pela pregação da Palavra, acerca dos princípios bíblicos sobre o trabalho e o descanso.
Ministério Político
Ao lado do Estado, a Igreja tinha um outro ministério, na teologia social do reformador, a saber, o ministério político. Para entendermos melhor o que Calvino tem a dizer sobre isto, vamos primeiro entender seu pensamento sobre a relação entre a Igreja e o Estado.
Podemos resumi-lo no que Calvino tem a dizer sobre Romanos 13.1-7, uma passagem onde o apóstolo Paulo menciona as autoridades e nossos deveres para com elas. Para Calvino, a Igreja e o Estado são duas instituições procedentes de Deus (Rm 13.1-2); são instrumentos de Deus para a vinda do Seu Reino na terra. A Igreja é as primícias deste Reino vindouro, como já vimos; o Estado, por sua vez, deve manter a ordem provisória na sociedade humana. Portanto, existem entre as duas instituições laços duráveis e essenciais, e não simples relações ocasionais.
Qual a missão do Estado no pensamento de Calvino? Ainda com base em Romanos 13, Calvino sustenta que o Estado deveria manter a ordem na sociedade (conforme sua interpretação de 1 Tm 2.1-2), prover o sustento da Igreja, e promover os meios necessários para que haja a pregação fiel da Palavra de Deus entre os cidadãos. Ou seja, usando o poder civil dado por Deus, as autoridades deveriam envidar todos os esforços para que a religião verdadeira prevalecesse na terra.
Porém, para Calvino isto não implica qualquer ingerência do Estado nos negócios da Igreja. O Estado faz estas coisas através de uma boa legislação que garanta a livre pregação da Palavra de Deus. A edificação da Igreja se faz apenas pela pregação da Palavra no poder do Espírito, e não pela interferência do poder do Estado. E aqui Calvino critica os demais reformadores que desejavam uma união entre Igreja e Estado, e que o Estado tomasse conta dos negócios da Igreja (como ocorreu parcialmente na Alemanha).
Se esta era a missão do Estado, qual seria a missão política da Igreja? Para Calvino, em primeiro lugar, orar pelas autoridades constituídas (1 Tm 3.1-2). E isto, em qualquer país em que os cristãos se encontrassem, independente da forma de governo daquele pais, por mais hostis que as autoridades fossem, para que se convertam e venham ao bom senso, assim como Jeremias exortou os cativos a que orassem pela Babilônia (Jr 29.7).
Em segundo lugar, a Igreja deveria, quando necessário, advertir as autoridades, quando estas esquecessem o senso divino do seu ofício, quando abusassem do poder, quando cometessem injustiça, quando tolerassem injustiças contra os pobres, os fracos e os oprimidos. Se a Igreja cessar de vigiar o Estado, diz Calvino, ela se torna cúmplice da injustiça social, cessando de cumprir sua missão política.
Em terceiro lugar, a Igreja também deveria, como parte de sua tarefa, tomar a defesa dos pobres e fracos contra os ricos e poderosos. Ela deveria consistentemente alertar o Estado a que proteja os fracos, os oprimidos e explorados pelos ricos, os que não possuem poder político ou econômico, e não têm proteção social. Neste sentido, a Igreja deve sempre denunciar ao Estado, os ricos que exploram a miséria alheia em tempo de calamidade, os que tiram partido da sua situação social ou oficial para se enriquecerem e se porem a coberto. Calvino entendia que estas atitudes eram apropriadas para a Igreja pois refletiam o ensino da lei de Moisés e do ministério dos profetas, ao denunciarem a opressão social em Israel.
Por fim, a Igreja deveria recorrer à autoridade do Estado na aplicação de sanções disciplinares, e solicitar do Estado as medidas necessárias para a manutenção da ordem e da justiça social. Em resumo, o ideal reformado era este: uma Igreja politicamente livre, inteiramente dependente da Palavra de Deus, em um Estado que lhe respeite e lhe favoreça o ministério.
Ministério Social
O outro aspecto da responsabilidade social da Igreja era a assistência social. A Igreja, segundo a teologia social de Calvino, deveria envolver-se ela mesma no cuidado dos pobres, dos órfãos e das viúvas – enfim, dos necessitados. E isto sem fazer distinção entre os da igreja e os de fora. Ou seja, a assistência social da Igreja deveria contemplar inclusive os estrangeiros e refugiados que chegavam a Genebra.
O ensino de Calvino sobre este ponto é vasto. Ele trata do uso e desfruto dos bens materiais, e se dedica especialmente a expor o ensino bíblico sobre o pobre e o rico, e sobre a prática das esmolas.
O órgão encarregado do ministério social da Igreja, diz Calvino, é o diaconato. Foi Calvino quem primeiro resgatou esta função bíblica do ofício diaconal. Ele ensinou que os diáconos eram ministros eclesiásticos, encarregados de toda a assistência social da Igreja (Atos 6.1-7), e como tal, deveriam ser eleitos conforme as regras estabelecidas por Paulo em 1 Timóteo 3.8-13. Até hoje em algumas igrejas Reformadas a administração financeira da Igreja e o uso dos recursos para a assistência aos pobres e necessitados é atribuição da junta diaconal.
O diaconato, como braço do ministério social da Igreja, se desenvolve em três ações básicas, segundo Calvino:
1) Administração dos bens destinados à comunidade. A igreja recebia recursos para a assistência social de duas fontes: a generosidade dos fiéis nas coletas levantadas para este fim aos domingos, e o tesouro do Estado, através do Conselho de Genebra, que votava verbas para este fim. Estes recursos eram recebidos e administrados pelos diáconos.
2) Distribuição de forma justa e igual entre os necessitados. Os diáconos cuidavam que todos os genuinamente carentes tivessem participação igual nos bens destinados aos pobres. Num ambiente marcado pela opressão social e pelas desigualdades, os diáconos certamente tinham muito trabalho a ser feito, e necessitavam de muita sabedoria para faze-lo.
3) Visitação e cuidado dos doentes. As guerras, a falta de saneamento público, as epidemias, a falta de assistência médica do Estado, e a pobreza, deixavam um saldo enorme de pessoas doentes. O ministério dos diáconos incluía o cuidado para com estas pessoas, utilizando-se quando necessário dos recursos da Igreja.
É necessário observar que no pensamento de Calvino o ministério social da Igreja era de apoio ao Estado. Cabia ao governo civil cuidar dos pobres, doentes e necessitados. Mas, como se tratava de uma tarefa de enormes proporções, a Igreja vinha como apoio e auxílio, dando ela mesma assistência social onde necessário.
A Prática Social de Calvino em Genebra
Persuadido por Farel, Calvino se deixa ficar em Genebra para auxiliar nas reformas necessárias. Logo ficou claro que, para ele, isto incluía ir além das reformas eclesiásticas. Debaixo de sua influência, a Igreja passa a agir de forma marcante na vida social e política da cidade. Aquilo que ele expõe em suas Institutas procurou aplicar de forma prática às necessidades de Genebra.
O diaconato é organizado e entra imediatamente em ação. O Hospital Geral, fundado por Farel, dá assistência médica gratuita aos pobres, órfãos e viúvas, com médicos de plantão pagos pelo Estado. É criada a primeira escola primária obrigatória da Europa.
Os refugiados chegados a Genebra recebem treinamento profissional e assistência médica e alimentar, enquanto se preparam para exercer uma profissão.
Os pastores intercedem continuamente diante do Conselho de Genebra em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de salários para os trabalhadores. Os pastores pregavam contra a especulação financeira, e fiscalizavam parcialmente os preços contra a alta provocada pelos monopólios. Debaixo da influência dos pastores, o Conselho limita a jornada de trabalho dos operários. A vadiagem é proibida por leis: vagabundos estrangeiros que não tem meios de trabalhar, devem deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os vagabundos da cidade devem aprender um ofício e trabalhar, sob pena de prisão. O Conselho institui cursos profissionalizantes para os vadios e os jovens, para que ele possam entrar no mercado de trabalho.
E finalmente é digno de nota que havia uma vigilância da parte de Calvino e demais pastores de Genebra contra a má administração pública. Houve inclusive o caso de um funcionário corrupto que foi despedido por influência de Calvino.
O próprio Calvino levava uma vida modesta, apesar de todo o seu prestígio e influência. Na prática, procurou viver intensamente os princípios que defendera em sua teologia social. A sua influência estendeu-se além do seu tempo.
Os Puritanos, autores da Confissão de Fé de Westminster e dos dois Catecismos, foram profundamente influenciados pelo ensino de Calvino, e sua teologia social não foi exceção. No capítulo sobre o Magistrado Civil (Cap. XXIII) a Confissão de Fé reflete o ensino de Calvino sobre a vocação social e política dos cristãos (par. 2), a independência da Igreja do Estado, para gerir seus próprios interesses, e o dever do Estado de proteger a Igreja cristã (par. 3), o dever do Estado de assistir e proteger os necessitados independentemente das convicções religiosas dos mesmos (par. 3), bem como o dever dos cristãos de honrar e de submeterem-se ao Estado (par. 4).
Um outro exemplo são as contínuas referências à questões sociais e econômicas nestes símbolos da fé reformada. A exposição no Catecismo Maior do sexto mandamento, “Não matarás”, inclui como deveres exigidos “… a justa defesa da vida contra a violência… o uso sóbrio do trabalho e recreios … confortando e socorrendo os aflitos, e protegendo e defendendo o inocente”. Como pecado, são incluídos “… a negligência ou retirada dos meios lícitos ou necessários para a preservação da vida … o uso imoderado do trabalho …. a opressão …. e tudo que tende à destruição da vida de alguém”.
Conclusões
Quero concluir este ensaio com duas observações sobre o ensino social de Calvino. Primeiro, que ele estava profundamente enraizado em sua teologia e em sua interpretação das Escrituras. Era fruto de suas convicções teológicas. Portanto, é impossível entender as reformas sociais que empreendeu em Genebra sem os pressupostos da sua teologia.
Segundo, o pensamento social de Calvino tem produzido abundante fruto na história da humanidade, após a Reforma. Muitas das universidades, escolas, e asilos de que temos notícia foram fundados por calvinistas. Boa parte das críticas feitas contra os calvinistas, de que são levados à inércia e paralisia social por causa de sua ênfase na soberania de Deus em detrimento da responsabilidade humana, simplesmente revela um desconhecimento (proposital?) dos fatos e uma ignorância do que seja o Calvinismo.
E finalmente, cabe-nos perguntar em que sentido uma teologia social calvinista poderia nos ajudar hoje, aqui e agora, no Brasil. Evidentemente existem profundas diferenças culturais, políticas e religiosas entre a Suíça do século XVI e o Brasil do século XXI. Mas existem muitas semelhanças também, particularmente no que se refere aos problemas sociais. Além do mais, os princípios elaborados por Calvino para atender às questões sociais e econômicas são válidos para nós hoje, pois são bíblicos. Quer na Suíça medieval, quer no Brasil moderno, permanece como verdade imutável o fato de que a raiz da opressão social é espiritual e moral, como Calvino apregoou. Bem como o fato de que Jesus Cristo é o Senhor de todas as coisas, em todos os lugares, e em todas as épocas, e que seu reino se estende à política, à sociedade e à economia tanto de genebrinos quanto de brasileiros.
Assim, creio que a Igreja evangélica brasileira (especialmente os reformados) deveria envolver-se em todos estes aspectos, usando os meios apropriados, lícitos e legais para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos opressores e os pobres preguiçosos, e exercitando obras de misericórdia e assistência social através de uma diaconia treinada e motivada.
Todo este envolvimento social deve acontecer sem perder de vista que a missão primordial da Igreja é promover a reforma (parcial e provisória) da sociedade através da proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita a plena justiça de Deus.
Fonte: Teologando
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