segunda-feira, 24 de setembro de 2012


Neuroses Eclesiásticas.

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As Más Notícias

Uma Análise Preliminar

A hora agora é de recebermos notícias más, e nunca é agradável falar de coisas ruins. Mas vamos acreditar no que o Senhor Jesus disse: “a verdade vos libertará” - mesmo se essa verdade não for tão bonita quanto gostaríamos que fosse. Como compensação, na hora das boas notícias, novamente será a verdade quem vai nos ajudar.

Antes, porém, de falar dos nossos problemas, quero aqui reconhecer e testemunhar que a Igreja faz muito bem para muita gente. Ao longo de 2.000 anos de Cristianismo, são muitas as pessoas que encontraram na igreja o caminho do evangelho de Jesus Cristo, endireitaram suas vidas, recuperaram-se socialmente, emocionalmente, e passaram a viver muito melhor o restante de suas vidas nesta terra, sem falar na vida eterna nos céus. Isso não pode e nem pretende ser negado aqui. O convite deste livro é para observarmos a verdade de que, além de ter feito bem a muita gente, essa mesma igreja também tem feito muitas pessoas sofrerem - inclusive nós mesmos, às vezes. No dizer do apóstolo Paulo, “se nós julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados” (I Co 11.31). Esta é a intenção deste livro: um auto-julgamento, na esperança de, com a ajuda de Deus nesse auto-exame, virmos a ser mais aperfeiçoados, cristãos melhores e mais saudáveis.


O MAL-ESTAR DA IGREJA

A má notícia é que não estamos tão bem assim. Embora muitos líderes de grandes congregações e ministérios pensem de modo diferente, as constatações de muitos gabinetes pastorais e de também de consultórios psicológicos se juntam às daqueles que sentem que a igreja não está bem. E não está bem porque os crentes não estão bem.

No meio de uma sociedade que vai adoecendo seus relacionamentos, a Igreja não tem se saído muito melhor. Buscamos aqui as “neuroses de igreja” - ou “neuroses eclesiogênicas” - adoecimentos, especialmente emocionais, que são típicos de quem participa da vida de uma igreja, e ali aprendeu a se relacionar com Deus. Neuroses são definidas como um adoecimento de origem psicológica, em que os sintomas (o comportamento que se vê) são a expressão simbólica de um conflito psíquico. Não tenho a pretensão de fazer uma análise completa e abrangente de todos os quadros e tipos - nossas igrejas diferem muito entre si e minha capacidade é bastante limitada. Mas há sinais de doença emocional mais evidentes e que trazem sofrimento a muitos - vamos tentar nos focar nestes.

Não se pode considerar uma igreja boa quando seus membros não se sentem bem. Muitas vezes os membros das igrejas parecem presos a uma estrutura circular, repetitiva, em que só podem receber a graça de Deus os que estão muito mal, muito necessitados ou infantilizados (como, por exemplo, os que fazem fila para receber a unção ao final dos cultos dos irmãos neopentecostais, ou os que pedem oração publicamente nos cultos dos irmão tradicionais). Enquanto isso, a igreja incentiva testemunhos de vitória, exemplos de seriedade e compromisso, grandes conquistas, coisa que crentes infantes se sentem incapazes de oferecer. As igrejas podem até estar cheias, mas o que aconteceria se, apenas como exemplo, desligássemos os microfones e os instrumentos musicais?

Os crentes provavelmente “acordariam” para sua realidade, se perceberiam mais distantes uns dos outros, sem muita coisa para assistir, mais abandonados e carentes do que realmente lhes faria bem - contato real, humano, amoroso e edificante - e provavelmente muitos se afastariam das reuniões. Mas essas constatações de um mal-estar na igreja precisam de mais fundamento.

Que sinais enxergamos do mal-estar entre os crentes?


Loucura?

Um sinal bastante intrigante é encontrado nos sanatórios, hospitais psiquiátricos para doentes mentais em estado grave. Embora atualmente muito combatidos (por boas razões, diga-se), os sanatórios também estão cheios, e com muitos irmãos evangélicos entre os pacientes. Isso poderia apontar duas coisas: ou a igreja estaria enlouquecendo as pessoas que a procuram, ou talvez a igreja seria procurada por pessoas que estão enlouquecendo e não consegue recuperar sua saúde mental. É claro que isso não é tão simples assim - em muitos casos a igreja alivia o sofrimento psicológico dos que a procuram. Para nosso propósito, por enquanto, tomemos os sanatórios cheios de evangélicos apenas como um sinal de que algum problema deve haver; mas ainda não é suficiente para concluirmos nada.


Frustração?

Um segundo sinal: o mundo está cheio de ex-crentes. Já nos anos 80, segundo o Jornal Batista, o número de ex-batistas no Brasil era praticamente igual ao número de batistas na ativa. Muito provavelmente isso também se aplica às demais denominações evangélicas tradicionais. Com o fenômeno das igrejas neopentecostais, uma nova safra de crentes evangélicos inundou o Brasil e, à medida que os anos passam e as promessas de prosperidade não se cumprem, uma nova safra de ex-crentes decepcionados deve estar voltando para as ruas, enquanto outros crentes começam uma “peregrinação” de igreja em igreja, intuindo que há alguma verdade salvadora nesse meio, mas não se sentindo seguros de a ter localizado. Essa massa de irmãos freqüenta as “igrejas da moda”, que são duramente criticadas pelas igrejas mais estabelecidas, que não admitem sua parte de culpa nessa decepção coletiva.

Esse já é um sinal mais direto. Não esperamos que a igreja satisfaça a todos que a procuram. Mas decepcionar a tantas pessoas, dentre a pequena parcela da população que se decide a entrar nela, é sem dúvida mais um indicador de que há problemas sérios que não estão sendo tratados, uns nas igrejas tradicionais, outros nas pentecostais.


Desconfiança?

Um terceiro sinal: o receio em relação à ciência, especialmente as ciências humanas, tais como a Psicologia e a Sociologia. O grande desenvolvimento da ciência moderna teve em seu princípio muita participação de cristãos. Eram pessoas que se dedicavam à maravilhosa descoberta das coisas, dos seres, do universo, em suma, a contemplar as fantásticas obras de Deus. Com o tempo, o espaço dado a Deus foi encolhendo, e hoje a ciência tem fama de ser quase uma inimiga de Deus.

As ciências humanas investigam nossas motivações mais profundas, os desejos diversos da alma humana, denunciando muitas incoerências que encontram, e a fé em Deus parece ser desafiada em todas as universidades (pelo menos é o que sentem muitos líderes cristãos). Felizmente, essa resistência tem diminuído, mas ainda persiste em grande parte do meio evangélico.

E por que o crente tem medo de consultar um psicólogo? Primeiramente, talvez, porque é difícil para todo mundo admitir que temos problemas, e mais ainda quando aprendemos (e ensinamos) a cantar que Jesus é a solução de todos os nossos problemas. Além disso, temos medo de que o psicólogo vá nos encorajar a abandonar nossa fé, a abandonar nosso casamento, ou a própria igreja, etc. Provavelmente, mesmo sem isso estar claro para nós, temos receio da psicologia - e da universidade em geral - porque talvez ela poderia desmascarar nossos cânticos, questionar nossas certezas, e denunciar nossa moral que tão custosamente pregamos aos jovens e adolescentes. Se estivéssemos mais seguros de que aquilo que cremos e pregamos é sem sombra de dúvida a verdade, não deveríamos ter tanta desconfiança, não é mesmo?

Na verdade, nossa dificuldade não é apenas com a psicologia, ou com as ciências humanas, ou mesmo com a ciência em geral. Temos grande dificuldade é em lidar com críticas. E isso só revela nossa absoluta falta de hábito de nos criticar, de praticar a auto-crítica. I Coríntios 11:31 diz: “se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados”. Quantas vezes você já ouviu um sermão ou aula sobre esse texto? A crítica envolve a difícil tarefa de reconhecer erros, ouvir reclamações, parar nosso ritmo frenético de atividades e falas e se dispor a escutar, a refletir, a examinar, a criticar. A prática da crítica implica em aceitar, sempre, um certo montante de fracasso. E isso parece que não condiz com a postura de quem tem o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores a seu lado.


Pasteurização?

Mas ainda há um quarto sinal de que as coisas não vão tão bem assim conosco: a qualidade de vida que levamos. Qualidade, não em termos econômicos ou de conforto material, mas de “qualidade viva” mesmo. Nossa vida evangélica, no dia-a-dia, poderia ser chamada de “pasteurizada” (dos leites em saquinho), ou então UHT: como aqueles leites de caixinha, nossa vida sofreu um choque térmico altíssimo, e ficou estéril, infecunda, sem muito brilho nem muita cor. As pessoas de fora da igreja consideram o crente como “aquele que não faz isso, não participa daquilo, não prova aquiloutro”, ou seja, uma identidade negativa. O crente é visto como um ótimo funcionário, bom trabalhador, mas péssimo para se conviver, sem disposição de se sociabilizar.

Na política, não queremos envolvimento (e muitos que o fazem são um péssimo exemplo, buscando apenas vantagens para si próprio). Das questões sociais, movimentos e reivindicações, queremos distância. Parece que temos medo do engajamento.

A bem da verdade, esses fenômenos não são privilégio da igreja, mas acontecem em escala ainda maior e igualmente doentia na cultura secular, em nossa sociedade “pós-moderna”, que, como ensina o Dr. James Houston, descobriu que estávamos sendo enganados por nossos heróis e nos jogou num caldeirão indiferenciado, onde tudo e nada têm praticamente o mesmo valor. Aqui, porém, tal qual no Apocalipse, vamos começar o julgamento pelo povo de Deus.

Uma área que pode exemplificar isso: a música. No meu trabalho tenho contatos com estúdios de gravação profissionais, músicos e técnicos de som; não são muitos, mas são muito bons no que fazem. Perguntei a esses amigos músicos seculares o que eles achavam das nossas bandas Gospel. Eles, com muito jeito para não me constranger (sabiam que eu era evangélico), responderam que os músicos tocam muito bem, têm boa técnica, mas que a música parece “sem alma”. Certinha, tecnicamente perfeita, mas sem alma.

Acho que é um bom retrato das nossas vidas: procuramos fazer tudo certo, da melhor maneira possível; mas, por alguma razão, não tem muito sabor, não tem muita vida. (E nós pregamos e cantamos que Jesus veio para que tenhamos vida, e vida em abundância...). Talvez por isso sejamos acusados de hipócritas, de não-autênticos. Mas isso também não é verdadeiro: olhamos para dentro de nós mesmos e sabemos que não estamos querendo enganar ninguém.

Não é nossa intenção “fazer de conta” que somos espirituais. Corremos para Deus em oração, pedimos-lhe para sondar nosso coração, e sabemos que oramos com sinceridade. Mas nossa vida continua da mesma forma. Estamos preocupados, queremos acertar em tudo, pedimos a direção e ajuda de Deus, prestamos atenção nos sermões ou profecias, freqüentamos a igreja, mas nossa vida segue “pasteurizada”, meio viva, meio morta. A igreja não muda isso, e parece que ela até reforça essa “pasteurização”. Há algo errado, e isso merece uma investigação.


INVESTIGAÇÃO

Quando há algo errado em nossa casa, vamos procurar encontrar o problema, até resolvê-lo. O convite, agora, é para “aprofundarmos as más notícias”.

Vamos “entrar na igreja” para tentar descobrir o que está havendo, tentar identificar por quê uma comunidade que deveria estar gerando vida abundante está produzindo “semizumbis”, pouco vivos. Por que uma instituição que poderia ser terapêutica está ajudando a adoecer, e por que tantas pessoas que dela se aproximam saem frustradas após algum tempo?

1. O clima dentro das igrejas

O que uma ida aos templos e cultos das igrejas nos faz sentir? O que a Igreja, por si só - independentemente das pregações e canções - nos leva a lembrar, a pensar, a fazer? Arrisco algumas impressões: o ambiente da igreja (incluindo as pessoas que lá estão, durante algumas horas na semana) nos lembra da existência de Deus, como Alguém maior que nós, acima de nós, supremo, inquestionável. Estar na igreja nos lembra, ainda, da existência da eternidade, especialmente do Céu, mas também (principalmente para crianças) do inferno.

Essas duas “impressões”, experimentadas dominicalmente, contribuem para um certo sentimento de pequenez a nosso respeito, como diz o Pregador de Eclesiastes: “Deus está lá em cima e tu aqui em baixo”. Isso tem sua verdade: Deus de fato é o Altíssimo, Todo-Poderoso; mas desde Jesus revela-se como “Emanuel”, Deus conosco.

Como contraponto ao distanciamento, lá dentro do prédio que convencionamos chamar de igreja desfrutamos de alguma convivência humana; temos amigos, às vezes temos rivais, há espaço para jovens conhecerem pessoas do sexo oposto.

A participação em grupos menores fortalece as amizades, e mesmo os ensaios de corais ou bandas incrementam esses relacionamentos. Isso tudo é muito bom, e acontece “aqui embaixo, cá entre nós”, dentro da “casa de Deus”. Essa vida mais social nos torna afetivamente supridos, o que reforça a separação que muitas vezes é pregada, entre os crentes e “o mundo”. Imaginamos que Deus lá do alto nos abençoa e protege, e ao mesmo tempo condena o mundo lá fora.

E enquanto Deus é sentido “lá no alto”, aqui em baixo existe uma categoria de servos especiais dEle, que de certa forma O representam: são os pastores e pastoras e, no caso dos irmãos pentecostais, também os profetas e profetisas.

É a eles que buscamos quando precisamos ouvir alguma orientação da parte de Deus, quando queremos “ouvir a palavra de Deus”. E, mesmo quando não procuramos, são eles que trazem a mensagem de Deus para nós, nas pregações dominicais (e nas eventuais profecias a nós dirigidas). Não dá para negar: mesmo que nós protestantes afirmemos a correta doutrina do “sacerdócio universal dos crentes”, no ambiente da Igreja praticamos uma separação entre ministros (pastores, anciãos, presbíteros, qualquer que seja o nome) e os irmãos e irmãs em geral, muito parecida com a diferenciação entre clero e leigos na igreja católica. Essa hierarquia amplia, no cristão comum, aquele sentimento de pequenez, de incapacidade própria.

Conseqüentemente, o mapa de atividade na igreja se parece muito com um estádio de futebol: muitos sentados assistindo e alguns poucos “heróis” correndo feito loucos, providenciando a “ação”. Como a igreja não é um clube de futebol, e como são esses poucos ativos os que fazem uso da palavra, é muito freqüente que eles confundam “viver para Deus” com “assumir alguma responsabilidade nesta igreja” (afinal, eles estão sentindo o desgaste na própria pele).

Isso nos leva à próxima área de investigação:


2. O Clima das Pregações

Tradicionalmente, temos dois tipos de pregação em nossas igrejas: os sermões para “os de fora”, chamados de sermões evangelísticos, e o sermões para “os de dentro”, para os crentes, os sermões doutrinários. As diferenças entre esses dois tipos são grandes, e bastante reveladoras. Nas mensagens evangelísticas a tônica é: “Deus te ama, e te aceita; venha para Jesus assim como está, e Ele perdoará os teus pecados; saia dessa vida e junte-se a nós”.

Antigamente quase todas as igrejas tinham cultos no domingo pela manhã (dirigido aos crentes) e novamente à noite (dirigido aos visitantes, evangelístico). Hoje apenas alguns grupos mantêm essa prática. Mas o que é pregado aos crentes, para os que já aceitaram a mensagem evangelística, decidiram crer em Jesus e se integraram à igreja?

Nas últimas duas décadas tenho visitado muitas igrejas diferentes no Brasil, tanto tradicionais quanto pentecostais, além de algumas católicas. É impressionante a semelhança do “tom” das mensagens. Quando falam aos crentes (que é a grande maioria dos casos), os pregadores sempre estão cobrando alguma coisa, sempre mostrando a necessidade de algum aperfeiçoamento. 


3. O Clima do Louvor e Adoração

Também aqui encontraremos, dito de forma simplificada, pelo menos dois formatos diferenciados (vejam novamente nossa “capacidade” de nos dividirmos): o formato “tradicional” e o “avivado” ou pentecostal. E tentando ficar no meio do caminho, algumas igrejas “modernas”, mais tradicionais na teologia, porém informais no culto.

No formato tradicional, o louvor em nossos cultos é utilizado para a transmissão de mensagens. É a forma musicada de expressarmos as mesmas coisas que são pregadas, uma espécie de continuação (ou complemento) da pregação falada. Os que tocam e cantam sentem que estão fazendo “a obra do Senhor”, e se dedicam - às vezes dramaticamente - a fazê-lo. O canto congregacional também é um complemento da mensagem pregada, com os hinos escolhidos do hinário daquela denominação, de forma a trazer mensagem coerente com o que estiver sendo dito no culto. E todas partes musicadas são previamente programadas, com raras exceções. Para os mais jovens, cânticos mais recentes com letra projetada em tela e instrumentos eletrônicos; para a geração dos pais e avôs, hinos acompanhados ao piano ou órgão. Com o passar dos anos, o entusiasmo pelos cânticos diminui, possivelmente pela mesmice.

No formato avivado, mais comum no meio pentecostal, existe um “momento de louvor” de longa duração (geralmente uma hora inteira). Ele tem uma finalidade diferente: servir de “desafogo” das tensões; a palavra de ordem é “celebração”. O canto e o acompanhamento musical são geralmente ensaiados e performados por um grupo grande, que, escorado na amplificação do som, faz com que a música e as canções “encham” o ambiente, enlevando o público presente (ao mesmo tempo em que afasta e irrita os vizinhos...). Assim o povo, sempre em pé, é levado a sentir emoções através da música, praticamente da mesma forma que as grandes bandas de rock secular procedem em seus shows. Na igreja, porém, são inspirados sentimentos de pertencer a Deus e a Sua família, sentimentos de alegria e participação na glória vitoriosa de Deus. O altíssimo volume da música, aliado aos comentários incentivadores dos ministrantes, dirige esse “sentimento coletivo”. E a insensibilidade para com os vizinhos fica escancarada, no máximo disfarçada de “querer encher a cidade com nossas verdades”, mas na prática está claro que não nos interessamos por eles como pessoas.

Nesses cultos, o louvor (freqüentemente confundido com adoração) tem um sentido próprio, uma unidade fechada em si mesma, independente também da pregação que o sucederá. É como se Deus fosse transmitir duas mensagens por culto (e ainda uma terceira, em caso de haver testemunhos pessoais), sem falar da hora da contribuição financeira. Mas um traço é comum em todos os lugares que praticam esse estilo de louvor: há pouco ou nenhum lugar para contrição e tristeza. A impressão, praticamente se contrapondo às mensagens pregadas, é que Deus sempre espera que estejamos alegres, domingo após domingo. Essa “injeção de ânimo” ajuda e abençoa a muitos crentes que por ela esperam. Mas com o tempo, como com qualquer remédio ou droga de uso muito repetido, muitas pessoas vão percebendo que seus estados de espírito “reais” não são bem-vindos. E a decepção piora as coisas porque, ao perceber essa menor mobilização da platéia, o dirigente do louvor lançará mão de recursos tais como:“levante-se, abrace seu irmão ao lado e diga: Deus te ama”. Naturalmente o dirigente tem a melhor das intenções, mas ele está manipulando a congregação, e se deixando guiar pelos seus próprios sentimentos e limitações (no caso deste exemplo, provavelmente será a sua necessidade pessoal de ver seu trabalho fazendo todo mundo feliz e se abraçando). Como conseqüência, é encorajada uma artificialidade dos relacionamentos, e o aspecto exterior (comportamento) substitui o interior (coração). Por mais que cantemos e repitamos a frase bíblica, não estaremos adorando “em espírito e em verdade”.

Freqüentando um ambiente assim enquanto vivem sua vida cotidiana, como estará o íntimo dos cristãos?


4. O Clima no Coração do Cristãos 

Convido você, leitor e leitora, a olhar para dentro de si mesmo, até para ver se minha observação coincide com a sua:

Imagine Deus olhando para você agora (experimente fechar os olhos por um instante) Qual seria a expressão do rosto dEle? Ao olhar para você, Deus parece feliz, sério ou triste?

Como na verdade não vemos a face de Deus, podemos dizer que nossa imaginação é uma boa medida de projeção da nossa imagem de Deus. Ou do “nosso Deus”, por assim dizer, que fomos criando e internalizando conforme vivemos no ambiente da igreja e da família.

Outra pergunta que pode nos ajudar: qual é a sua principal preocupação perante Deus? Ao estar consciente da presença de Deus, do que você lembra?

Que tipo de oração você faz mais freqüentemente?

Todas essas perguntas geralmente mostram que estamos preocupados em não errar. E que, tal qual nas pregações dominicais, Deus parece sempre insatisfeito, esperando alguma melhoria de nossa parte. Em algumas denominações, esse cuidado em não errar adquire tons mais dramáticos porque, atrás da esquina, ainda nos espreita o terror da perda da salvação.

Os cristãos temos medo de errar, de tomar decisões erradas. Nos dedicamos a combater o pecado. Por isso, naturalmente, temos receio de nos envolver com iniciativas de outros grupos, especialmente se forem de fora da igreja. Nossa maior preocupação, nossa maior busca, é por saber “a vontade de Deus”.

A supremacia em nosso coração é do DEVER: o que é que eu devo fazer? O que é certo?

Perguntas como “crente pode isso?” ou “É pecado tal coisa?” revelam o mesmo sentimento, e a nossa preocupação mais íntima: temos medo de errar.

Por isso, a não ser que tenhamos certeza de que aquilo é a vontade de Deus, melhor não fazer. Certo?


5. A qualidade de nossa membresia - a roda viva 

Ao mesmo tempo em que estamos preocupados com não errar, essa pergunta de “o que é que eu devo fazer” encontra resposta rápida na igreja. Parece que, na falta de bons relacionamentos, que dêem prazer simplesmente por estarmos juntos, nos dedicamos a criar várias atividades na igreja, que nos mantenham sempre ocupados e “produtivos”. Assumir cargos na estrutura da igreja é uma velha forma das igrejas tradicionais engajarem alguém. Já as igrejas pentecostais multiplicaram o número de cultos, seja no templo, seja nos lares, também como forma de manter participantes um maior número de pessoas. Na igreja tradicional “precisamos” de pessoas para cantar nos corais, para distribuir folhetos de casa em casa, para dirigir ou auxiliar em diversos departamentos, com atividades no sábado e em todo o domingo. Nas comunidades pentecostais, as pessoas “precisam” comparecer aos cultos quase todos os dias da semana, com destaque para a participação na equipe de louvor. Ambas as igrejas formaram uma espécie de “grade de programação” que precisa ser preenchida (e acompanhada) pelos membros. É uma espécie de roda-viva, como aqueles moinhos dos tempos antigos, empurrados por animais ou por escravos, em que a pessoa era acorrentada a seu tronco para empurrar sem cessar, e sem poder sair. Geralmente a gente só percebe a loucura desse ativismo quando o vê de fora. Para quem está nos papéis centrais, como os pastores, só dá para pensar na próxima “necessidade” a ser preenchida (precisa alguém para trazer a palavra, alguém para dirigir os cânticos, alguém para dirigir a oração, alguém para dar os avisos, etc, etc, etc,) Para pessoas que vivem solitárias ou não têm bom relacionamento familiar, a igreja com tantas reuniões acaba até ajudando a suprir a carência de relacionamentos.

Mas para aqueles que têm vida em família, a igreja acaba prejudicando a qualidade de relacionamentos, por praticamente não permitir que façam programas entre si (nos sábados, jovens e adolescentes têm atividades; nos domingos, a obrigação é todos estarem na igreja - e novamente divididos por faixa etária). Quando é que pais e filhos podem passear, ter lazer em conjunto? Durante a semana, quando todos têm escola e trabalho?

Toda essa participação em cultos e atividades é ensinada como sendo “para Deus”. Dedicar seu tempo para Deus (na verdade, “para a igreja”), então, acaba sendo entendido como retirar tempo de convívio com seus familiares, e utilizálo para as atividades da grade de programação da igreja. É claro que alguma dedicação é positiva, e faz bem para nós próprios também; mas com esse nível de ativismo de nossas igrejas não é de admirar que pouco ouvimos falar de versos 9 da Bíblia tais como I Timóteo 5.8: “Se alguém não cuida dos seus, e especialmente dos da sua família, tem negado a fé, e é pior que um incrédulo”.

Muitas vezes, na ânsia por obedecer e por fazer a vontade de Deus, temos praticado o mesmo pecado que Jesus condenou nos fariseus: em vez de cuidar dos nossos familiares, dedicamos “a Deus” nosso tempo e dinheiro (na verdade, dedicamos à igreja), e descuidamos da família. A começar por nós pastores...(para a continuação da leitura deste livro, clique abaixo e faça o download do mesmo).

Fonte: Livro "Neuroses Eclesiásticas e o Evangelho para Crentes. Clique aqui para o download". 


Autor: Karl Kepler, psicólogo, pastor, professor de Teologia e presidente do CPPC (Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos).
Dica: [PavaBlog]
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