Fraqueza de Deus
Boa
parte do ateísmo contemporâneo baseia-se na objeção enunciada com muita
força no passado por J. P. Sartre e retomada pelos seus discípulos: “Se
Deus existe, eu não sou nada”.
Se
existe um Deus onipotente, o que ainda sobra para mim? Essa presença ao
meu lado do poder absoluto torna irrisórias todas as minhas ações.
Diante do infinito, todo o finito torna-se irrelevante. Há muitas
maneiras de enunciar o argumento.
A
objeção foi formulada desde a Idade Média, mas não conseguiu convencer.
A resposta diz que Deus e o homem não se situam no mesmo plano, como
duas liberdades em competição.
A
resposta não convenceu porque durante séculos os teólogos debateram a
questão da predestinação, isto é, da compatibilidade entre a liberdade
de Deus todo-poderoso e a liberdade humana. Assim fazendo, situaram no
mesmo plano as duas liberdades. Se os teólogos – tomistas, dominicanos e
jesuítas – tomaram essa posição durantes séculos, não é estranho que
filósofos façam a mesma coisa.
De
qualquer maneira, a pessoa sente tantas vezes o conflito entre a sua
vontade, o seu desejo e o que diz que é a vontade de Deus, que a reação
parece inevitável. Os sartreanos sustentam que, para ser livre, é
necessário negar a existência de Deus. Infelizmente para eles, Deus não
depende das negações ou das afirmações de Sartre.
A
verdadeira resposta está na fraqueza de Deus. O nosso Deus é um Deus
“escondido” – tema constante da tradição espiritual cristã.
É um Deus que se manifesta no meio da nuvem, que se faz perceptível, mas não impõe a sua presença.
A
liberdade consiste justamente nisto: diante do outro, a pessoa pára,
reconhece e aceita que exista. Abre espaço, acolhe. Longe de dominar,
escuta e permite que o outro fale primeiro. Assim Deus suspende o poder
de Deus.
Nenhuma
evidência, nenhuma ameaça, nenhum constrangimento força nem obriga.
Deus permite e deixa fazer. Deus respeita o outro na sua alteridade e
permite, até mesmo, que o outro se destrua sem intervir. A liberdade de Deus consiste em permitir e ajudar a liberdade do menor dos seres humanos. A liberdade de Deus reprime o poder. Torna-se fraca para que possa manifestar-se a força humana.
O
hino de Filipenses 2.6-11, núcleo da cristologia paulina, expressa essa
fraqueza de Deus. Pois o aniquilamento de Jesus incluía o aniquilamento
do Pai: “Esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de escravo,
tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se a
foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fp 2.7-8).
Deus
escondeu o seu poder até a ponto de as autoridades de Israel não o
reconhecerem. É desta maneira que Deus se dirige às pessoas: sem
intimidação, sem poder, na dependência de seres humanos, entregando a
própria vida nas mãos de criminosos. Quem dirá que dessa maneira Deus
faz violência às pessoas?
Como
comentou Levinas, o outro é o desafio da liberdade, a provocação que a
desperta. Diante do outro há duas atitudes: examiná-lo para ver em que
lê me poderia ser útil ou qual é a ameaça que representa para mim, ou
então, perguntar-me o que eu poderia fazer para ajudá-lo.
A liberdade de Deus autolimita-se. Diante da sua criatura, Deus limita sua presença. Deus preferiu antes deixar que crucificassem o seu Filho a intervir para impedir tal justiça. Trata-se de fraqueza voluntária.
É
verdade que durante muitos séculos, sobretudo na pregação popular, os
pregadores apresentaram uma concepção bem diferente de Deus. Usaram
temas e comportamentos da religião popular tradicional: medo diante do
trovão, medo da seca e de cataclismos naturais – entendidos como
castigos divinos –, medo das doenças recebidas também como castigos e
assim por diante.
Era
fácil despertar o temor a partir de idéias puramente pagãs ou
supersticiosas. Essa pregação de terrorismo religioso podia dar
resultados imediatos, levando milhares de pessoas aos sacramentos. A
longo prazo, porém, destruíram as bases da credibilidade da Igreja. Hoje
a maioria das pessoas deixaram de ter medo do trovão, não sendo mais
motivo para temer a Deus, como foi no passado. Naquele tempo achou-se
válido o método do temor, todavia hoje recolhe-se os frutos dessa
pastoral.
Pensou-se
que os povos precisassem temer um Deus forte – e desprezariam um Deus
fraco. Tais erros se pagam cedo ou tarde. Estamos pagando hoje esse
preço.
Deus torna-se fraco porque ama.
Quem mais ama é sempre mais fraco. Não será essa a grande
característica das mulheres? Quase sempre amam mais, e, por isso, sofrem
mais. Porém, nessa fraqueza consentida não estará a maior liberdade?
Nessa
fraqueza a pessoa vence todo o egoísmo, todo o desejo de prevalecer,
toda a preguiça de aceitar maiores desafios. Exige mais de si própria,
vai mais longe, além das suas forças. “Ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a vida por seus amigos” (João 15.13). Aí está também a
expressão suprema da liberdade.
A fraqueza de Deus vai até a ponto de se tornar suplicante.
O versículo predileto do saudoso teólogo latino-americano Juan Luís
Segundo diz; “Eis que estou batendo na porta: se alguém ouvir minha voz e
abrir a porta, entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo
(Apocalipse 3.20).
Deus
bate na porta e aguarda. Se não é atendido, afasta-se e continua o
caminho. Somente entra se é convidado. Depende do convite da pessoa.
Deus torna-se pedinte, suplicante.
*extraído de “Vocação para Liberdade“, publicado pela Editora Paulus.
by José Comblin
grifos: Ricardo Gondim via Pavablog
Nenhum comentário:
Postar um comentário